segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

NÃO HÁ ARMISTÍCIO POSSÍVEL

Na verdade não pode haver um armistício sereno entre o que fui e o que sou.
Fui pedra, fui fisga, fui uma lâmina intrometida entre o selo e a carta, uma lâmina que de cotovelos colados ao rebordo da palavra assistia ao meu parto,
fui aquele relógio, que aparvalhou o Stockhausen, capaz até de florir.
De criança saíam-me serpentes pelo rabo e sorria, e só de um relance manipulava os diafragmas
e fui aquele que me esqueci de retocar as cabrinhas de Giotto meio delidas porque me entretive com a filha do curandeiro
e fui o traidor que esqueci que a poesia é o que hoje na ciência se chama um atractor estranho - uma orelha para onde convergem cerejas.
Diga-se de antemão: nunca me alistei na imensa vaga dos homens que anseiam pertencer, fundir-se, nem quis amarrar-me ao amor como se amarra um cachorro ao poste, nem mesmo ao poste da poesia
todavia não pode haver armistício, pois placidamente fui-me convertendo à clorofila.
Vivo num país onde o riso é privado, onde se sua as estopinhas sobre ovos moles, mas o escândalo é só um: não sairei vivo de mim mesmo, do meu corpo.
Como é que eu me pude esquecer? Quem me arranca à automoribundia do alheamento?
Como é que me pude esquecer que os pais de Sócrates se chamavam Sofronisco e Sefarete, e que isso não lhe bastando, arranjou uma mulher com nome de palha-de-aço: Xantipa, onde depositou três ovos: Lampoclés, Sofronisco (um júnior, quem diria?) e Menexeno (a ferrugem que dá às algas). Depois deste descalabro (bem sei que em grego), onde é que o pensamento haveria de conduzir senão ao cárcere?
Com tais precedentes como não perdoar-me por ter esquecido que o poder é repulsivo como os dedos do barbeiro e não admite relaxe – que nenhum medíocre é inocente?
Porém, tinha o dever de não esquecer que derrotar os hábitos é o mais difícil, que a criança que cresce entre ervilhas se julga um gafanhoto.
Como é que, lentiforme, larvar, me puz em dissídio comigo e se tornou redonda a minha face como a grande algazarra onde faísca o silêncio.
Qual é o máximo de palavras vãs antes que a boca acorde selada?
O que me vale é que já me esqueci de quem sou senão teria de me recordar de quem me desiludi.

2 comentários:

  1. Cabrita,

    apreciei o desencontro de quem entra numa segunda-feira sentindo que preferia um dia de Páscoa com banda de música abafada pelo foguetório!

    Um abraço
    Fernando Vieira

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  2. Tenho que recorrer por vezes, com gosto, ao dicionário para te ler... mas confesso que é um enorme prazer!
    Abraço,
    Ricardo

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