quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

SE AS COISAS NÃO FOSSEM O QUE SÃO, I

Eu risco e dobro as páginas dos livros. Sou um horror. E ao ler pela quarta vez o Se as Coisas não Fossem o que São, do Helder Moura Pereira, dei conta de que tinha dobrado todas as páginas. A cada leitura as suas preferências, como os estratos na terra. Não há aqui um poema dispensável, mesmo os que parecem ser (e já lá iremos). À primeira leitura lembra um livro «desajeitado, muito maluco», que nos agarra como quem não quer a coisa, à espera que aconteça algo que ao fim percebemos ter sido a própria experiência do livro acontecida em nós: «Acendeste a luz/para me veres a cara e viste/ um lugar obscuro e todo vazio». Quem é que acendeu? O leitor.  
Talvez seja este um dos aspectos que faz a adesão crescente que a poesia do Helder tem conhecido: esta escrita convoca-nos, não a lemos como observadores distantes mas no acto de deambular por dentro duma floresta que se nos assemelha. Ficamos imersos. Lê-lo é retomar uma conversa inacabada.
Este livro começa com a fala de um morto e tem, no poema tremendo que a meio do livro fecha o terceiro movimento - onde se relata o encontro do narrador com a sua figura já morta -um dos seus pontos focais, mas não quero para já ler o livro como uma catábase, ainda que o quinto poema do primeiro ciclo seja um belíssimo poema de amor («Metáfora? Nem penses, os teus abraços/são quentes e é por isso que finjo/ ter frio o tempo todo.») onde é sugerido que só o outro nos pode devolver a temperatura do mundo, a carne dos vivos e, nele, no livro, o sentimento da morte esteja omnipresente: «A morte e o seu cheiro presentes no beijo/ da criança a uma velha com pêlos no queixo,/ que ainda por cima depois retribuía – oh/ céus – com outro beijo lambuzado na bochecha.// Pois esse cheiro inesquecível está de volta, /acompanhou-nos nos piores momentos/ e invadiu a casa como frango assado. (pág. 32)».
Como neste último verso, os signos do quotidiano, as frases bordão, os lugares-comum, os clichés são combustível para os poemas, mas o Helder nunca esquece a lição de Hitchcok: deve-se partir dos clichés para os transfigurar e não chegar a eles. De igual modo, também nunca se esquece de que os “intervalos” da vida passamo-los com as matérias menos nobres. Foi o que separou Bataille de Breton; às sublimidades do último, Bataille contrapunha os rigores dos baixos fundos, as contingentes unhas (porque será que ganham em velocidade com a idade?), os pés, os cheiros, os descasos, a urina, toda a matéria ímpia. Na sua pureza, lastimava Breton a Voznessenski que o Cocteau desse cabo da sua poesia, e exemplificava, horrorizado: «La guitare, bidet qui chante», enquanto o poeta russo, constrangido, retorquia, que, pelo contrário, essa imagem lhe agradava muito e que adoraria encontrar similares. Aí está uma coisa com que o Hélder concordaria, ele que há muitos anos deixou de cultivar os brilhos na poesia e se limita a «rasurar a experiência/ e pôr em palavras a razão da sua banalidade».
Para o Hélder não há uma prévia comunidade de destino, há o a fazê-la. O que o fez distanciar-se das grandes narrativas agregadoras ou da tentação oracular do poema alquímico:  «(…) Já não há sangue/ que nos una. Ou oiro que derreta/ qualquer símbolo na porta do céu. Eu/ tu. Já quase não estamos, pó que somos (pág.32)»
Esta separação, a cesura que permeia «eu e tu» é essencial. Para percebermos porquê terei de contar uma história.
Algumas vezes me escolheu o Helder para apresentar os livros dele e nunca percebi porquê. Suponho que era a vaidade que me levava a aceitar, para além de ter gostado do livro e da amizade. Mas uma coisa é gostar e outra arrancar daí alguma coisa que faça sentido. Mentir é fácil, mais difícil é acertar. Tenho uma memória difusa mas menos ruim do prefácio que lhe fiz para uma antologia em francês – Feuille de Vent Amour, Orfeu/ Livraria Portuguesa, Bruxelas 1995 -; já me vergo de vergonha à lembrança de um lançamento no Porto – do Nem por Sombras, da Afrontamento – com uma sala apinhada de gente que sabia o que o poema deve ser – Gastão Cruz, Echevarria, Fernando Guimarães – enquanto eu andava às aranhas para explicar que aquele livro representava um paradigma diferente, na pluralidade a que a poesia tende. E senti-me mirado até ao osso, na triste figura de alguém que tenta soprar as velas numa gelatina. Um texto absolutamente inócuo, ao lado, e inapropriado – lembro-me vagamente que discorria sobre os mecanismos do sonho e como estes contaminavam aqueles poemas. O Helder nunca me disse uma palavra sobre o meu “desacerto global” e continuou a rir-se nos almoços que se seguiram. Mas senti-me, naquela situação, bastante desconectado, sem perceber ainda que experimentava afinal um dos temas essenciais ao poeta.
Lamenta-se o Hamlet: «o tempo está fora dos eixos: ó sorte malvada, ter nascido para o endireitar!». Vejamos como o Helder deslocaria esta asserção tão nobre, imaginemos: «O tempo está fora dos eixos,/ ó sorte macaca, ter de ir ao endireita!». Brinco, falo todavia de algo muito sério, de um redimensionamento ético inerente a quem sabe que não pode endireitar o mundo, não só porque tal tarefa ciclópica estafou em equívocos o século XX como também porque afinal o mundo está dentro de nós e não lá fora – não é uma prótese que se corrija ou substitua facilmente. E esta nova atitude face ao político projecta-se também no relacionamento interpessoal.
A poesia do Helder é (na recente poesia portuguesa) a que expõe com maior insistência as desordens, falácias e atritos da comunicação humana e da sua vertente amorosa. Porém, considero-a «reservadamente sarcástica»(Blok), isto é, apesar de às vezes embarcar numa auto-ironia que não teme a corda bamba considero erróneo conectá-la de imediato com a disforia, pois, o que nela se constitui como afirmativa força propulsora nutre-se, afinal, dos impasses, das aporias, dos desajustes ou das pequenas e grandes alegrias fugazes do relacionamento interpessoal. Além disso Helder foi apurando o humor, a força paródica.
Mas de facto, como temas dominantes, Helder fala do eu, do tu, das falências da comunicação, das cesuras com que a vida aparta amantes e amigos, dos pormenores insignificantes que vão rasgando os afectos, e – esta é a sua força moral – da negociação permanente a que isso nos obriga, mesmo que estejamos absolutamente impreparados para ela e seja tarde: «Já quase não estamos, pó que somos».
Durante anos não percebi nada do que o Helder andava a fazer – havia coisas de que gostava muito e outras que me deixavam desconfiado mas não sabia deslindar os pontos nos is. Uma vez íamos de carro, ele dava-me uma boleia, e, com o meu feitio metediço, inquiria-o sobre a necessidade de publicar tanto.
Eu estava ainda encharcado do que a poesia deve ser e chateava-me que ele me contrariasse tão a miúdo – devia ser isso.
Íamos das Picoas para o Marquês de Pombal e ele explicava-me que para si a poesia era um fluxo e uma presença e que portanto ele não podia alhear-se momentaneamente, nem suspender a viagem para ficar a desenhar um itinerário ideal; e que no percurso tudo o que eventualmente se repetisse seria objecto duma deslocação natural.
E estava neste divagar e não sei se de forma inconsciente ou deliberada demos duas voltas à rotunda do Marquês, antes de desembocarmos na nossa rota. Nunca lhe perguntei se na segunda voltinha ele havia voltado aos carrosséis mas fiquei a matutar naquilo e dei conta que ele ao dobrar o círculo estava a dizer-me o mesmo que serviu a Ingmar Bergman para explicar a repetição da mesma história, numa cena fulcral de A Máscara: a história que se conta nunca é a mesma que é escutada. O Helder trabalha no que fica entre, nas refracções, na procura de emparelhar (como na conversa) os pontos de vista, e paciente, de livro para livro, as suas variações vão sobrepondo a deslocação à repetição, mostrando-nos como mudando de lugar a paisagem também muda. As cem vistas do Monte Fuji, de Hokusai.
Porém, não se julgue que estamos a ouvir música minimal repetitiva, trata-se antes de um affaire de microtonalidades que oferecem tanto mais ao receptor quanto mais expansiva for a sua atenção.
E há uma dimensão que temos de considerar diante desta poesia e que a vem tornando, para mim, um dos lugares cimeiros da poesia portuguesa dos últimos vinte anos: a sua extrema liberdade em relação ao que seja o literário, nas tintas para “a arte” de escrever bem, para os efeitos, o seu arrojo é outro: transmitir com eficácia as ilusões, burlas e inabilidades da comunicação, num preito que projecta a solidão num lugar inabitável se não compensado pelo ethos da partilha.
(… a suivre)

1 comentário:

  1. Aguardo, ansioso, as cenas dos próximos capítulos. Vamos ver onde é que isto vai parar.
    Que o Poeta não se transforme num rebuçado...

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