Na verdade não pode haver um armistício sereno entre o que fui e o que sou.
Fui pedra, fui fisga, fui uma lâmina intrometida entre o selo e a carta, uma lâmina que de cotovelos colados ao rebordo da palavra assistia ao meu parto,
fui aquele relógio, que aparvalhou o Stockhausen, capaz até de florir.
De criança saíam-me serpentes pelo rabo e sorria, e só de um relance manipulava os diafragmas
e fui aquele que me esqueci de retocar as cabrinhas de Giotto meio delidas porque me entretive com a filha do curandeiro
e fui o traidor que esqueci que a poesia é o que hoje na ciência se chama um atractor estranho - uma orelha para onde convergem cerejas.
Diga-se de antemão: nunca me alistei na imensa vaga dos homens que anseiam pertencer, fundir-se, nem quis amarrar-me ao amor como se amarra um cachorro ao poste, nem mesmo ao poste da poesia
todavia não pode haver armistício, pois placidamente fui-me convertendo à clorofila.
Vivo num país onde o riso é privado, onde se sua as estopinhas sobre ovos moles, mas o escândalo é só um: não sairei vivo de mim mesmo, do meu corpo.
Como é que eu me pude esquecer? Quem me arranca à automoribundia do alheamento?
Como é que me pude esquecer que os pais de Sócrates se chamavam Sofronisco e Sefarete, e que isso não lhe bastando, arranjou uma mulher com nome de palha-de-aço: Xantipa, onde depositou três ovos: Lampoclés, Sofronisco (um júnior, quem diria?) e Menexeno (a ferrugem que dá às algas). Depois deste descalabro (bem sei que em grego), onde é que o pensamento haveria de conduzir senão ao cárcere?
Com tais precedentes como não perdoar-me por ter esquecido que o poder é repulsivo como os dedos do barbeiro e não admite relaxe – que nenhum medíocre é inocente?
Porém, tinha o dever de não esquecer que derrotar os hábitos é o mais difícil, que a criança que cresce entre ervilhas se julga um gafanhoto.
Como é que, lentiforme, larvar, me puz em dissídio comigo e se tornou redonda a minha face como a grande algazarra onde faísca o silêncio.
Qual é o máximo de palavras vãs antes que a boca acorde selada?
O que me vale é que já me esqueci de quem sou senão teria de me recordar de quem me desiludi.
Cabrita,
ResponderEliminarapreciei o desencontro de quem entra numa segunda-feira sentindo que preferia um dia de Páscoa com banda de música abafada pelo foguetório!
Um abraço
Fernando Vieira
Tenho que recorrer por vezes, com gosto, ao dicionário para te ler... mas confesso que é um enorme prazer!
ResponderEliminarAbraço,
Ricardo