quinta-feira, 25 de julho de 2013

DELEUZE E O IMPODER


Em carta a um amigo japonês, Kuniich Uno, escreveu Deleuze, sobre como se sucedia a sua colaboração com Guattari, com quem urdiu três livros nucleares, O Anti-Édipo, Mille Plateux, e O que é a Filosofia:
«Pouco a pouco, um conceito tomava uma existência autónoma, de modo que por vezes nós continuávamos a compreendê-lo de maneira diferente - por exemplo, nunca compreendemos da mesma maneira o “corpo sem órgãos”. Nunca o trabalho a dois tendeu a uma uniformização, sendo mais uma proliferação, uma acumulação de bifurcações, um rizoma».
Raramente vimos manifesta uma liberdade tão viva e uma tão expressa paixão pelo múltiplo. Os dois pensadores colaboravam para poderem convergir e divergir, numa pulsação contínua, sem receio de se contradizerem ou necessidade de afinarem os argumentos, até apararem as linhas de fuga.
Nunca lhes passou pela cabeça a disputa ou a necessidade de domínio na relação e, de imediato, prescindiram da supérflua tentação de armar os argumentos para terem ou não ter razão; pelo contrário, sem reservas, numa porosidade em acto, a aventura de penetrarem em espaços desconhecidos (os que “a resistência” do outro abria na escuta de cada um, com a maravilha duma nova perspectiva alargar o âmbito, perspectivar-se na projecção de novos conceitos ou na súbita ambivalência do pensamento que se julgava “fechado”) tornou-se prioritária.
Eis uma colaboração que prescindia de negociação, porque o conflito estava desactivado de antemão, não havia confronto entre forças/opiniões polarizadas, não se tratava de uma dialéctica, mas de estar aberto a um fluxo que faz das suas sombras matéria para, como Deleuze diz, numa exaltante proliferação, modelar o pensamento pela virtualização do múltiplo.
Testemunhamos aqui um verdadeiro “encontro”, que activou a possibilidade de cada um deles - face a face, nesse diálogo que ia tecendo o seu próprio percurso - superar as fronteiras de um pensamento condicionado pela inércia da opinião. O que só pode acontecer quando seguimos as linhas da água e à “vontade” preferimos o “impoder”.
      O contrário do que defende Bertrand de Jouvenel, no seu livro basilar sobre o Poder,  para quem “um homem sente-se mais homem quando se impõe e faz dos outros um instrumento da sua vontade”, atitude que é hoje a mais comum e, lamentavelmente, a única disseminada.
O “impoder”, contudo, esclareçamos, não é um signo de impotência mas um reforço da potência que nasce da liberdade a si mesmo e às marcas de representação. O que talvez explique que Michel Serres tenha dito de Deleuze que era o único caso que conhecia de alguém a quem o pensamento trazia felicidade.
A mesma liberdade também se patenteava no jesuíta Richard Wilhelm, tradutor do «I Ching» para o Ocidente, ilustrada quando afirmou que aquilo que mais se orgulhava na vida fora, em trinta anos de missionarismo na China, nunca ter feito uma conversão ao cristianismo.
É desta grandeza humana que estamos necessitados, da qualidade de gente que se dispõe à luta para “não ter poder”.

terça-feira, 23 de julho de 2013

DEPOIS DE TER REVISTO O TIGRE E A NEVE



Escreveu Mahler à sua mulher: «Eu não sou senão um arqueiro que atira no escuro”. Neste arqueiro cego encontra Salah Stétie a metáfora para falar do poeta.
Também eu me sinto vizinho dessa concepção, o que não nos traz certezas nem futuro mas essa imensa liberdade que nos dá o encontro com algo imemorial. De entre as mitologias em torno do poeta e da poesia é a que prefiro – a de uma escola de ignorâncias, como diria Ramos Rosa.
Também eu, no começo de todos os equívocos, quis ser um poeta maldito. Felizmente a vida pregou-me a partida e deu-me filhos, o que me fez entender que tudo recomeça sempre e em todas as direcções, mesmo o mal recomeça sempre, ainda que refractado.

Um maldito é um homem de um só vinco, que toma a prancha partida da piscina da sua infância por todas as pranchas do mundo e que teima em dizer «não» quando a melhor negação é dizer sim.
Se o vinho nos põe alegres, por que teimar em ter mau vinho? Há por aqui uma enorme pose, uma estapafúrdica falta de sabedoria.

A única forma eficaz da nossa indignação contribuir para uma mudança no mundo é dotá-lo de algo que nos religue e quebre a inércia do tanto que nos quer separar. Da beleza, por exemplo, que é a forma momentânea com que damos uma melodia ao informe.
Esta é com certeza o transe que nos impele à colaboração mais activa, numa realidade que, apesar de nós, se desagrega. E não importa o quanto se desagrega, mas o que fizemos para sair da linha recta e para a olhar duma perspectiva que a re-encantou. Uma vez, na adolescência, dum mau poeta, li uma imagem que nunca mais me esqueci: na cidade que tombou num manto espessíssimo de nevoeiro dois homens aproximam-se. Não se vêem, mas um deles assobia a melodia do Casablanca, e quando cruzam as nubladas ausências, o que ia calado, sem se dar conta, começa também a assobiar a mesma canção. É tudo o que é possível fazer e julgo ser o pequeno estribo que nos salva do ganido dos cínicos.

Também eu lastimo o estado das coisas e me zango e atabalhoadamente me atiro num galope de sentenças e imprecações, de recusas que ziguezagueiam como eu, mas persistir na ira só me daria a impaciência que não me deixa ver. Há que saber que em cada momento o escuro pulsa com uma cadência diferente de modo a conseguirmos orientar a flecha na noite. Para onde ou para quê atiramos, desconhecemos, só intuimos que é nessa direcção. Um poeta maldito, e há muito poucos que o sejam genuinamente, é-o, apesar de si, de relance, e não em preocupada demonstração de zelo. Não fazem profissão.
Uma vez tive um poeta amigo tão furibundo que (dir-se-ia) torcia as colheres só de as olhar. Ficou em apuros. Todas as semanas jogávamos bilhar a dinheiro e eu perdia sempre. Era a única forma de se deixar ajudar. Depois insistia em passar pelo cemitério e em ir mijar nas campas. Percebi com ele que afinal não queria ser um poeta maldito, e que não urinar nas campas não queria dizer que as enchêssemos de licores.

Há uma grande vantagem em não ser um poeta maldito: não sei o que vou rejeitar amanhã, não sei sequer como vai ser amanhã, e o futuro e o passado encadeiam-se num presente discrepante, mas aberto, com sombras e flashes de luz atordoadores. Um homem vário e ondulante, diria o Montaigne, dá quanto muito uma profissão de fé, que é igual a dizer que na mão só se leva o vento, às rabanadas.

Um maldito-de-profissão ainda está na orbe do poder, procura ser um contra-poder, eu prefiro os refractários que, sem muita convicção, apenas porque não conseguem ser de outra maneira, semeiam o “impoder”. Pode até amar o mal, uma certa configuração que lhe dá textura aos tecidos. Desde que ame, que não finja amar. Aí os tigres brilham na neve.     

 
QUATRO OU CINCO TREMOÇOS ACHADOS NUM CADERNO

1
O poeta é o único bombeiro
que apaga o fogo
com um incêndio.

2
A sombra de Argos
desenhou-me no calcanhar
uma elipse
com os caninos
- intuo
que não sou Ulisses?

3
Sempre
que atirava o laço
a corda dava um nó no ar
antes de salpicar
o que quer que fosse.

4
A turquês e o alicate,
um casal inconsútil
dançam um tango
no arco da aorta.

5
Se bem que inestimáveis,
ara do desejo,
aqueles calendários
tinha o ar
do tempo
que já passara.


6

Incoercível
a força com que a corola
impele para o alto
a pélvis azul
do céu.

 

domingo, 21 de julho de 2013

ONDINA, O POSFÁCIO DA EDIÇÃO PORTUGUESA


O Nazir Can, um jovem académico que se graduou em Barcelona e que agora pertence aos quadros da USP de S. Paulo, ainda não tinha desaguado nos 30 quando, há cinco anos, desembarcou um dia em Maputo por causa de uma investigação que o levaria a escrever, um ano depois, uma magnífica tese de doutoramento sobre a obra de João Paulo Borges Coelho, e que neste momento está no prelo, em Portugal e em Moçambique.
Foi um encontro de grande empatia e ficámos amigos e por isso quando se pôs a hipótese de publicar A Maldição de Ondina, disse-lhe que gostaria que fosse ele a escrever um posfácio para Portugal. É o que sai na edição da Abysmo e que aqui divulgo, embora truncando o primeiro parágrafo:

 (…)

Partindo de vivências reais para homenagear as estórias literárias que se fundem nos seus universos mentais, Cabrita congrega e articula, no thriller policial A Maldição de Ondina, diversos saberes: o histórico, antigo, imediato e imaginado, i.e., dos tempos que “foram”, dos que “são” e dos que “poderiam ter sido”; o político-social moçambicano, doente, alvo de contínuo diagnóstico; o cinematográfico, infinito, paixão sempre revisitada; o fotográfico, envolvente, que produz pausas em movimento no relato; o crítico-literário, sedutor, com os seus apelos e aporias; o geográfico, eloquente, respirando história; e até mesmo o gastronómico, metonímico, caracterizando-se pela transformação, deglutição e reaparição. Tudo isso para celebrar, como referimos, o saber literário, melancólico e abrangente, desencantado e desenfadado - o verdadeiro pai de todos os outros.

Este caldeirão de sabores, remexido com uma batuta experimentada, ganha forma por via de uma estética que valoriza o abalo e a provocação, demandando uma reação, cativa pela economia narrativa de alto pendor imagético, casando descrição e reflexão, e fundamenta-se na musicalidade e no estilo, aliando o linguajar oral (de Moçambique e de Portugal) à expressão escrita mais clássica. As epígrafes de Aristóteles e de José Lezama Lima funcionam, pois, como uma pista, uma espécie de índice programático da obra, visto que clamam pelo gesto poético, mesmo quando este se socorre de atos reais e de ações verosímeis, e sintetizam a condição do poeta que o agencia. Isto é, resumem o destino deste ser abandonado que se deixa levar pela condição que lhe calhou em sorte e que, nadando com as mãos amarradas num tonel de vinho, almeja tão-só a raiz das coisas.

O romance relata a história de César, escritor e professor universitário, do seu amigo Raúl, que segue as pistas de um assassino em série (pelos vistos muito letrado), da sua mulher Beatriz, professora universitária e investigadora de literaturas africanas, da sua ex-mulher, a intelectualmente sedutora Argentina, da sua irmã Filipa, médica, e ainda de Aurora, sua cozinheira. A partir desta última personagem, e dos seus amores secretos com o maldito e irresistível malgaxe Jean-Joseph (na própria cama em que o príncipe Ali Khan jurava eternidades à diva do cinema Rita Hayworth, no palácio da Ilha de Moçambique), o romance convoca ainda o fait-divers histórico para, de certo modo, desvirtuá-lo, privilegiando o cariz enérgico e inesperado, sensual e erotizado de um quotidiano que, ao contrário dos discursos sobre a História, não é contido, não sabendo nem querendo domesticar-se.

O autor surpreende o leitor desde a primeira página, sobretudo pela plasticidade de uma linguagem capaz de produzir inopinados vaivéns entre a expressão mais clássica e a mais coloquial. Ao ponto mesmo de torná-las massa da mesma matéria, e de fazer confluir o significante no significado. Tudo isso através de uma rítmica proveniente da poesia: “Não param de manducar, de clamar por bebida, de vasculhar tudo na casa, metediços. A casa de banho ficou ocupada vitaliciamente (descobriu que o mais novo penteia o bigode com a sua escova de dentes), nos intervalos de emporcalharem lençóis, as toalhas de mesa, os sofás, de ranho e merda e vinho e esperma. Mal acorda, ainda enevoada, vê-os a adejar pela casa, sem decoro, os maxilares infatigáveis com que retalham o dia, enquanto plangem guitarras nas marrabentas...” (p. 19). Enquanto estrangeiro em terras que têm o condão de espantar, o autor não se abstém de refletir sobre a diferença cultural. Esta, porém, se mantém onde lhe convém, i.e., precisamente no campo das diferenças: O martelar da música desde o primeiro dia, extravagando indiferente ao silêncio exigível a um luto, ao recolhimento da viúva, punha às escâncaras a intrusão. Mas o quinhão de infortúnio que a cada um é destinado viver é intransmissível, não lhe cabe imiscuir-se” (p. 23). Para descrever a diferença, como se pode observar, o narrador socorre-se de duas máximas sentenciosas, articuladas pelo fio musical: a primeira afirmando a posição de perplexidade e desconforto da personagem estrangeira; a segunda reconhecendo a inutilidade de referida posição num cenário que lhe é diariamente outro.

A dita relativização não envereda, no entanto, pela via fácil e politicamente correta do autor metropolitano que faz ouvidos de mercador quando sobre África escreve. E isto porque Cabrita não tem pejo em denunciar, satirizando, tudo aquilo que rechaça neste recanto do mundo onde se decidiu inspirar: “Quem aterra em África dá conta, nos primeiros dias, de uma descomunal expansão do instante. Uma hora ramifica-se em duas, é como a criança que entrevê o Éden na porta giratória: nem se entra nem se sai (...) Entrasse Ulisses num banco africano antes de regressar a Ítaca, já encontraria Penélope casada” (p. 33). Daí que este romance faça um passeio elegante e eloquente, por vezes mesmo aterrador, pelas insidiosas formas de violência e práticas de poder existentes em Moçambique, esta terra que se transformou com o correr dos tempos num “exército de órfãos” (p. 215): desde a violência de género que atravessa o país de lés a lés, e que é acompanhada pelo desdém político e pelo eterno álibi da tradição (“Devem estar a chupar-lhe tudo, pensa, malditas tradições. Vamos lá a ver se não a violam, à conta do kutchinga” – p. 23), passando pelas estratégias de manipulação da autoridade (e do tal “comportamento de fusão, de irrefletida unanimidade, que é uso na terra” – p. 45) e do cíclico processo do qual esta última é motor e cúmplice activa (“As drogas, o tráfico de toda a ordem, serão negócios dominados por Momade, o qual distribuirá as benesses por capangas, clubes desportivos e Partidos, até que o ímpeto emergente de um rival lhe traga os dissabores que agora administra” – p. 222), culminando nas rupturas familiares mais cruas e inquietantes.

Para estas últimas, Cabrita socorre-se de um arsenal metafórico original, cuja função, para além da vizinhança de sentidos entre realidades díspares que está na origem deste recurso, passa ainda por um roçar, ou mesmo por um escavar, do real mais palpável e sorumbático: “Um mês depois o marido envolveu-se num motim na prisão e foi abatido. Há dez dias. Separada do seu homem há dez dias, por uma bala que lhe engarrafou a alma. Dez dias separam a memória fresca do marido daqueles lábios grossos de sangue coagulado que agora, de viés, pedem, insistentes: – Ma-ma-mã, pe-pe-ço sardinha!” (p. 21). O resultado catastrófico destes esquemas de exceção é sintetizado em sentenças que, esvoaçantes por todo o romance, elucidam a solidão das personagens e da sociedade em geral. Estas máximas constituem-se, além disso, em autênticos achados de estilo e de significado: “É provável que não haja memória para além do sulco das feridas” (p. 60); “É difícil gerir tanta coisa à distância. E pior ainda quando isso implica um sentimento que cava uma distância de nós para nós mesmos” (p. 153); “Os judeus viveram o exílio na diáspora, o negro vive um perpétuo exílio interior porque vive imerso numa imagem que perdeu a referência” (p. 186); “há vários dias que sentia o seu coração esfacelado pelo turbilhão de gaivotas que da sua janela via sobre a lota” (p. 192).

Nesta narrativa ambiciosa, composta por micronarrativas que se encaixam no texto-mãe, fazendo-o fluir e outorgando voz, a espaços, a narradores outros, cabe ainda (como não?) a reflexão sobre os processos de escrita: tanto da escrita que se aventura (“Descobrir como imprimir ritmo a uma frase é um transe de que não se recupera e perdê-lo, deixar escorrer entre os dedos esse tônico, faz ressoar um alarme similar ao do atleta que descobre que no seu coração mirra o músculo papilar” – p. 46), quanto daquela que procura, sem encontrar, um porto-seguro: “Agora, falta-me a linha, o posicionamento, o vislumbre de guelra aberta numa frase eficaz e sinto-me um remoinho estéril onde, a verdejar alguma coisa, não se avista cardume” (p. 47); tanto da escrita literária que fica aquém do re-presentado (“words, words, words, refratárias ao mínimo sopro de vida, à imprevisibilidade com que o existente filtra a alma de um fundo amorfo” – p. 59), quanto da escrita dos “intérpretes” literários, que desconhecem a descoberta: “um exegeta literário nunca terá a temeridade dos samurais, que teciam um haiku enquanto praticavam o hara-kiri, nós estamos viciados em experiências diferidas” (p. 202). Obra total, aberta, naquele sentido dado por Eco, i.e., plurissignificativa, dinâmica, com uma estrutura que adapta e sustém as restantes estruturas que emergem no/do seu interior, A Maldição de Ondina põe o mundo à espera e, como compete à boa literatura, nada oferece sem um retorno tácito. Neste audaz exercício meta-literário, realizado minuciosamente por um autor com dotes de equilibrista que defere, i.e., que traz algo de um lugar para outro, o leitor permanece em vigília, sendo também ele convidado, ou forçado, a provar as várias facetas de uma mesma realidade. E a incomodar-se.

Assim, em A Maldição de Ondina, notamos a veia do poeta no músculo do romancista que, também aqui, num género literário distinto, mantém o afã de sentir tudo de todas as maneiras. Veja-se, a título de exemplo, duas manifestações radicalmente opostas do gesto erótico, este acto que, afinal de contas, constitui por excelência a linguagem do corpo. O confuso e eufórico, de Aurora e Jean-Joseph: “Jean-Joseph, abeirou-se pé ante pé, na cozinha, apertou-lhe o seio enquanto a boca lhe roçava o pescoço e a outra mão lhe subia as saias, numa decisão comandada por espíritos. Aurora deslinda dois caminhos convergentes para a pulsação que lhe umedece o sexo: ou grita, denunciando Jean-Joseph, o que era o mesmo que separar a sua sombra a punção e martelo, ou cala, gemido a gemido, despendendo o recato, enquanto da batedeira suspensa o chocolate escorre para o chão” (p. 64); o ritmado e disfórico, de Argentina e Litos: “Litos penetra-a e entrança-lhe o corpo nos braços e Argentina ouve a bola de basquete no piso de cimento do campo de treinos, nas traseiras da casa. Argentina agarra-se ao sincopado ritmo da corrida dos miúdos, aos seus gritos, ao sorvo de ar na trajetória da bola, ao repique da bola, saltitante, suspensivo, no arco do cesto. Argentina procura adivinhar o posicionamento dos jogadores, a sua evolução no campo, a natureza das faltas, o jogo das mãos no despique do esférico, enquanto Litos a embucha poro a poro, nem reparando que ela está meio seca, tão seca como o baque da bola quando rebenta” (p. 141). O denominador comum desta constelação de sensações contrapostas é a expressão, de quilate superior, repleta de imagens (esta “fantasmata” sem a qual, no dizer de Aristóteles, não é possível a memória), de associações (sem as quais não é possível a comunhão de sentido) e de ritmo (sem o qual não é possível a fruição), que criam o contorno necessário para a maceração silenciosa do leitor.

Obra de uma rara riqueza intertextual, capaz de fazer interatuar Baudelaire, Octavio Paz, Camus, Shakespeare, Dickens, Juan Gelman, Cervantes, Melville e Pessoa numa mesma cenografia, onde ainda cabem As Mil e Uma Noites, Charlot, Felini, Mamoulian, Orson Welles, Monet, Brueghel, etc., A Maldição de Ondina caracteriza-se, pois, pelo contato de imaginários aparentemente díspares, pelo ritmo e destreza, pela plasticidade e elegância, e pela crueza na denúncia; fundamenta-se ainda na economia poética, ou seja, numa linguagem capaz de abarcar a riqueza ou a pobreza dos seres e das coisas apenas e tão-só com as palavras necessárias. Neste sentido, um café da capital, que resiste como pode às vicissitudes do tempo, é apresentado da seguinte forma por um narrador cáustico: “Não conhecia os meandros da história do café Continental, mas sempre lhe parecera bizarro que o capitel das colunas fosse ornado de chocalhos e os azulejos tivessem farfalhudas vacas estampadas, como se o dono do lugar quisesse transmitir às pessoas que a sina da vida é condenar-nos ao estábulo, à condição de bestas” (p. 96); já Quelimane, ou melhor, um dos seus bairros, é a testemunha estripada, dezoito anos volvidos, da guerra civil: “Quadriculado convulso, uma cidade que desaprendeu a mansidão, se desdobra aos baldões e se acama em escombros, aquela parte recôndita de Quelimane – enegrecida pelas deficiências da iluminação pública e por casas esventradas pelo desleixo dos homens e a erosão da guerra. O asfalto fora há muito corroído pela lama e urina dos cães, a pontapé naquele canto; tal como as folhas de jornal enlameadas que crianças sujas esgaravatam num afinco inexplicável” (p. 213). Estamos perante lugares relegados, subordinados pela história, e que, por respirarem de maneira diversa, são aqui alvo de uma atenta diagnose; tal como algumas das personagens-figurantes deste romance que, não sendo coral (não visa dar voz a ninguém a não ser a si mesmo), outorga um olhar a tudo o que respira: “verdadeiramente insólito era o seu olhar metálico, insondável, de quem desde tempos imemoriais já só tem passado” (p. 121); “uma mulher de pôr qualquer sentinela às avessas, uma mulata clarinha com sardas na canela, boca carnuda e peitos ideais para vender a fiado” (p. 122); “um homem vestido de marinheiro, com galões de oficial, e sem mais características de nota, além do cabelo extremamente louro e fino, que apertava de têmpora a têmpora a abóbada calva do crânio, e da barba ruiva, flamejante, em contraste com aquele magote de negros combalidos e embrutecidos pela tristeza” (pp. 146-147).

A Maldição de Ondina é um cativante exercício meta-poético, com uma cadência, uma musicalidade e uma seleção do material discursivo a todos os níveis eficaz. O que retemos nestas leituras de Cabrita sobre África e sobre o ser humano em geral é essa sua capacidade em aliar descrição e reflexão sem nunca perder a mão sobre a narração (qualidade que o autor tanto admira em outros escritores, mas que pratica tanto ou mais que os mesmos), essa ausência (clássica) de pudor em sentenciar, atirando harmoniosamente em todas as direcções (inclusivamente na que vai de si para si mesmo), essa experimentação sobre a própria experiência, seja ela mundana ou artística (que, para o autor, como se poderá notar, se alimentam mutuamente), sem contar os divertidos, vivazes e tensos diálogos mantidos entre as personagens. E, claro, como todo bom romance, A Maldição de Ondina não podia deixar de exigir algo ao seu leitor – do leitor ativo, que estabelece um pacto, obviamente; e não tanto daquele que desfruta do dado de borla das eventuais notas de rodapé. Àquele leitor, dizíamos, lhe competirá resolver um espinhoso quebra-cabeças: como prosseguir sem se atulhar no ressentimento e, simultaneamente, sem negar os factos?

       Agudo no seu propósito ético e arguto na dinâmica estética que o entretece, António Cabrita revela neste belo romance – que é simultaneamente localizado e universal, que fala da memória e da impossibilidade de esquecer, das marcas físicas e dos exílios interiores – os inquietantes umbrais de um país que, no mínimo, contagia. E que de tanto contagiar e de ser contaminado se tornou no pano de fundo de uma maldição metamorfoseada que o autor, agora, trata de nos oferecer. Saudemo-la, pois, sem a esquecer. Porque, afinal, “As coisas belas transformam aquilo que em nós está ainda informe” (p. 154).


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sexta-feira, 19 de julho de 2013

OS DINOSSAUROS SÃO SEMPRE RETRÁCTEIS



Em Dezembro de 2011, o arquitecto e crítico de arte Manuel Augusto Araújo escreveu no seu blogue, Praça do Bocage (pracadobocage.wordpress.com), o texto que segue em baixo sobre A Maldição de Ondina, o meu romance publicado no Brasil e que conheceu agora, finalmente, a sua edição portuguesa:

Não tem título porque não consigo encontrar um título que exprima a minha perplexidade, para não usar ou acrescentar outro adjectivo. Chega-me às mãos um recorte do Guia da Folha de S.Paulo, o mais lido no Brasil e com circulação nacional,  com uma crítica literária que destaca “A Maldição de Ondina” de António Cabrita, em que o crítico literário Nelson de Oliveira, um dos mais conceituados do Brasil, o considera Imperdível! e lhe atribui a classificação Óptimo!

Por cá, o livro não existe. Quem o quiser ler terá que encomendar pela internet ou numa livraria com ligações ao Brasil, onde foi editado pela LetraSelvagem.

Não deixa de ser estranho que um livro de um autor português não seja publicado por uma editora nacional e que faça, posteriormente, o seu caminho no Brasil. Não se conhecem autores brasileiros que tenham feito esse percurso.

António Cabrita está há seis anos em Moçambique, onde ensina no Instituto de Cinema e desenvolve intensa actividade nos meios culturais desse país. Entre outras coisas da sua sempre vulcânica agitação intelectual, alimenta um blogue interessantíssimo. Escreve muito e escreve bem. Um dos seus últimos livros, de literatura infanto-juvenil, O Pastor de Ventos, é uma obra-prima. Passou quase sem uma referência tal como “Tormentas de Tintin e Mandrake no Congo”, um retrato carregado de humor de uma geração que deambula entre amores e desamores, bons e maus costumes e que, de quando em vez, é varrida por transes melancólicos.

O que aconteceu agora ainda é pior. Não encontrou editor em Portugal para a “A Maldição de Ondina”. Bateu a várias portas onde delicadamente, isto é tudo gente de refinada educação, foi posto do lado de fora. Alguns até permitiram que pusesse o pé lá dentro, numa insinuação que o deixariam entrar se seguisse sábias recomendações de carpintaria que tornariam o livro publicável. Umas aplainadelas na truculência. Aligeirar o peso do texto, que isto do peso imaterial dos livros é muito pior que o seu peso real, veja-se a quantidade de confitables books, para os mover quase exigem meios mecânicos, que se vendem como milho na época de envernizar de cultura o natal. Arrancar uns pregos que podiam ferir os dedos do leitor arrasado por intertextualidade e referencias que continham o perigo oculto de curto-circuitar as milhares de conexões sinápticas entre os biliões de neurónios do leitor médio português. Perigo de catástrofe nacional a somar à catástrofe em curso, orquestrada pela troika internacional e seus serventuários lusitanos, desastre iminente que nem o anticiclone dos Açores alimentado a espinafres seria capaz de deter, pelo que os diligentes editores teriam que actuar preventivamente. A protecção civil também passa pela literatura.

Um sobressalto. Que raio será esse animal: leitor médio português! Pela quantidade de títulos que são publicados e a não correspondente qualidade, pelas listas dos tops poder-se-á ter uma ideia do que será o leitor médio de um país onde a iliteracia é o que se sabe (é fazer uma passagem rápida pelas centenas de comentários às noticias dos jornais desportivos – três jornais desportivos diários com tiragens arrasadoras, um record europeu talvez mesmo mundial depois de tratamento estatístico), onde os escritores que mais vendem têm a extraordinária peculiaridade de não saberem escrever.

No meio de tanto papel impresso, livros magníficos de várias literaturas mas também livros de escritores que são excelentes escritores mas de quem se publica tudo e mais alguma coisa, muita dessa coisa é despicienda só salta para os escaparates com canina esperança editorial nos compradores desavisados que irão ferrar o dente não no conteúdo mas no nome do autor. Livros de ensaios nas mais diversas áreas, completamente descartáveis, em que os que derramam o pensamento são mais astrólogos que investigadores ao lado de políticos a proclamarem inanidades e mais uns tantos impudentes pensadores. Livros de auto-ajuda e transes esotéricos para arredondar as esquinas da vida. Entre tantos livros bons, assim-assim e assim-assado, para não falar dos livros que não são livros e que nem devem cumprir bem o seu melhor uso endireitar mesas ou sofás coxos, não há espaço para a “ A Maldição de Ondina”?

O leitor português não médio tem que ir ao Brasil se o quiser ler?!

Não serei tão ditirâmbico quanto o Nelson Oliveira, sou amigo do António Cabrita que fez o favor de mo enviar via electrónica antes de ser impresso, não me ficava bem classificá-lo de imperdível, mas “A Maldição de Ondina” é um dos melhores livros em língua portuguesa publicados em 2011 e lá ficará para além da sua primeira edição.

Não deixa de ser indignante que nada aconteça aqui, tudo aconteça do outro lado do atlântico. É um livro a ler e que exige aos leitores portugueses um esforço acrescido para o lerem por incúria do nosso concentrado editorial. Enquanto por cá o silêncio continua a ser de chumbo, no Brasil as recensões literárias sucedem-se. Leiam o posfácio de Adelto Gonçalves para melhor se entender este inexplicável, mais um adjectivo cordato, buraco negro editorial.

 

 

Leia-se então o posfácio de Adelto Gonçalves:


 
ANTÓNIO CABRITA E O FUTURO DA LUSOFONIA- Posfácio de Adelto Gonçalves



A África não dorme. Vive em eterna vigília. Essa é a metáfora que explica A Maldição de Ondina, do português-moçambicano António Cabrita (1959), livro que tem tudo para empolgar o leitor brasileiro não só por suas qualidades literárias como pelas marcas de várias culturas afins ao Brasil que impregnam suas páginas. Como toda boa metáfora, o título A Maldição de Ondina tem duplo sentido. Ou seja, explica o fenômeno que faz parte da natureza intrínseca dos golfinhos, mamíferos que não podem dormir jamais, já que, para sobreviver, necessitam vir à tona de cinco em cinco minutos para respirar. E, portanto, não podem esquecer a condição em que vivem, sob o risco de desaparecerem.

Não se pode esquecer que a referência à Ondina, ninfa das águas na mitologia germânica, serve também para qualificar uma rara síndrome – em 2006, havia apenas 200 casos conhecidos no mundo –, cujas formas graves exigem que a pessoa receba ventilação mecânica 24 horas por dia. Ou seja: vigília ininterrupta.

Mas explica também o sentir e o estar africano ao longo dos séculos. Um povo – feito de muitas nações, etnias e tradições milenares – que está condenado à permanente vigilância, diante daqueles povos que se mantêm sempre à espreita para espoliá-lo, como fizeram os europeus por séculos a fio. E, agora, ao que parece, fazem os chineses, os colonizadores do século XXI, que estão a explorar as florestas do Norte de Moçambique até o ponto de transformá-las em vasto deserto. Sem esquecer aqueles que saem do próprio povo africano – que, afinal, é resultado de muitas e distintas etnias – e que, no poder, acabam também por espoliá-lo. Mas essa não é uma característica do africano, mas da espécie humana, seja lá qual for a sua matiz de cor.
Portanto, não se quer dizer aqui que, se a África tivesse ficado imune à presença do europeu e de povos como indianos, hindus, goeses, mouros, cojás e tantos outros que a assolam desde tempos avoengos, teria tido um destino melhor. Ou que, hoje, seria um continente sem problemas, um paraíso terrenal em que Deus pudesse passear tranqüilo no jardim pela viração do dia.

Pelo contrário. É provável que estivesse imerso em mais obscurantismo, ao menos sob o prisma da visão eurocêntrica que nunca iremos perder. Não é isso o que se contesta aqui: até porque essa é uma opção irreme-diavelmente perdida na História. E que remete ao lamento do poeta Manuel Bandeira (1886-1968) sobre a vida que podia ter sido – e que não foi.

A África é o que é hoje. E ponto final. Entrecruzamento de raças e etnias, suas mazelas – a miséria de muitos povos, a falta de perspectivas para muitos, a opressão de uma classe sobre outras – são iguais às de todos os homens que vivem na Terra – uns mais, outros menos. Uma espécie de Brasil nenhum pouco às avessas. Se aqui o partido que se dizia de esquerda e defendia os oprimidos chegou ao poder pelas vias da democracia chamada burguesa e, naturalmente, não o quer largar, ainda que tenha de recorrer a meios inconfessáveis, ao estilo das antigas máfias napolitanas, lá o partido dos oprimidos, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), alcançou o poder pela força das armas, depois de ter, primeiro, colocado o colonialismo para correr e, em seguida, em meio a anos de contendas e mortandades, destruído pelos fuzis adversários que tinham os mesmos objetivos.

No poder, num congraçamento entre “marxistas-leninistas arrependidos” e oportunistas incrustados nas máquinas partidárias, tanto lá como cá, os partidos e seus dirigentes logo esqueceram os miseráveis que tanto defendiam, deixando-se levar pelas delícias do dinheiro fácil das grandes corporações nacionais e internacionais, que, afinal, ninguém é de ferro e a vida é uma só e tem de ser vivida à larga, ainda que à custa da dilapidação do patrimônio público, da corrupção generalizada, do gangrenamento da vida da nação e da destruição dos bens naturais do país. Tudo em troca de “consultorias”, “sobras de campanhas” ou “numerário não contabilizado”, conhecidos eufemismos brasileiros para a maldita taxa de corrupção e outras formas de enriquecimento ilícito. Obviamente, sempre revestidas por “bazófias patrióticas”, como diria o autor.

É o que se pode sentir neste romance de Cabrita, um retrato de uma África pouco conhecida no Brasil, mas facilmente reconhecível, que se desenha na vida de meia dúzia de personagens: César, luso-moçambicano, professor e escritor de romances policiais; Raul, amigo de César, policial; Beatriz, mulher de César e professora universitária na área de Literaturas Africanas; Argentina, concubina de César por dez anos e gestora numa ONG; Aurora, antiga ama-seca de César e sua cozinheira; e Filipa, irmã de César e médica. Além de outros personagens secundários apenas citados, como a famosa atriz Rita Hayworth (1918-1987), estrela de Gilda (1946), que, entre outros casamentos, viveu com o príncipe Aly Khan, de 1949 a 1953, num palácio na Ilha de Moçambique, para quem, no romance, Aurora – provavelmente, macua ou maconde – teria prestado serviços culinários.

Por trás de tudo, um pano de fundo facilmente reconhecível: uma estrada de terra batida é aberta só para que presidentes (das câmaras) de duas cidades e secretários do partido se visitem; um presidente da câmara de Maputo é atropelado de modo acidental, mas ninguém acredita na versão oficial; enfim, crimes que nunca se explicam, como aquele com o qual o policial Raul se vê às voltas com investigações a respeito de pessoas que desviaram dinheiro para o partido, mas para os quais o partido volta as costas. Como nesse tipo de regime o agente policial anda sempre sobre o fio da navalha, dependendo das facções que estão no poder, Raul trata de colocar as barbas de molho, pois teme que o seu fim possa estar próximo. E pede a César, que nunca teve filhos, que leve o seu “miúdo daqui para fora”, pois não quer que fique com a mãe, em Quelimane, pois “isso seria condená-lo a uma vida medíocre...”. (pág. 159).

Observador arguto do linguajar moçambicano, Cabrita constrói os diálogos com fidelidade à oralidade, o que permite suspeitar que, em pouco tempo, o idioma de Camões estará totalmente substituído pelo de Shakespeare não só em terras que foram do sultão Mussa Bin-Mbiki como em todo o antigo e vasto império Monomotapa e nas antigas terras do reino do Ndongo, cobrindo todo o “mapa cor-de-rosa” imaginado, um dia, pelos colonialistas lusos. Até porque a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), como organismo internacional, não passa de uma bela fantasia. E, até prova em contrário, pouco faz em defesa da lusofonia. Que o digam os rebeldes da Casamansa, província do Senegal, que desde 1982 empreendem uma inglória guerra de guerrilha para se livrar da opressão do governo de Dakar e virar país independente na órbita da CPLP.

Cabrita nasceu português de quatro costados, pois é do Pragal, freguesia do concelho de Almada, cidade do distrito de Setúbal, que fica à entrada do rio Tejo, em frente a Lisboa. Mas, como muitos de seus ascendentes, achou de tentar descobrir na África, não a árvore das patacas dos quinhentistas, porém outra maneira de viver. Quem sabe, menos morna e asséptica, porque sob o sol africano e em meio a ameaças físicas e até contagiosas. Como gosta de viver na contramão, foi para Maputo há poucos anos, a uma época em que raros lusos se dispõem a ir para a África e os que de lá retornaram choram até hoje o “império colonial derramado”. Não se arrependeu, pois encontrou material, o chamado “tecido da vida”, para escrever novas e surpreendentes histórias como estas que o leitor brasileiro tem a oportunidade de conhecer.

O que se lê neste romance, para quem conhece a vida nas favelas e subúrbios das grandes e médias cidades brasileiras, não haverá de surpreender. Talvez uma ou outra expressão autóctone que o escritor esclarece devidamente em notas de rodapé. Um personagem era bem visto pela comunidade porque colocara a filha a estudar – já estava na 11ª classe –, ainda que o seu verdadeiro negócio fosse o tráfico. Outro, que exibia uma cara da ratazana, tinha duas mulheres e nove filhos e vivia de biscates. Um terceiro, professor primário, fora abandonado pela mulher, depois de tê-la espancado até quase à morte, com oito meses de gravidez, por causa de ciúmes do pastor.

Em meio a uma natureza paradisíaca, a violência doméstica é corriqueira em algumas aldeias, onde o isolamento parece enlouquecer os homens. “As pessoas catanavam-se à primeira, por medo, cativos. À mínima tensão o marido acusava a mulher de feitiço e a família dele acabava por cataná-la, a cobro da noite (...)”, diz Beatriz (pág. 200). Catanavam-se, ou seja, cortavam-se com facão.

O estilo de Cabrita é de fácil e envolvente leitura, ainda que os capítulos em flash nem sempre permitam acompanhar o foco da narrativa ou o fio-condutor da trama com facilidade, exigindo novas e detidas leituras. O texto, porém, vale por si mesmo, pois não deixa de explorar todas as técnicas desenvolvidas pelos grandes mestres da literatura. Com mestria, Cabrita recorre ao discurso indireto livre sempre que pode: “(...) A sua mãe, farta daqueles modos, resolvera voltar a casa e levar as crianças, advertindo-a na porta, esta gente não presta, se armarem confusão fala com o polícia do sétimo”. (pág. 19).

A história, porém, é conduzida em torno de César, uma espécie de alter ego do autor, professor, intelectual que vive rodeado de livros, casado com Beatriz, mas que teve uma amante com o sugestivo nome de Argentina. Filho de “boa família portuguesa”, que é como se diz daquelas famílias que conseguiram amealhar um bom patrimônio e dinheiro no banco, César não hesita em chantagear o pai, em troca de que este o deixe levar consigo a amante negra para com ele estudar em Lisboa. Afinal, o pai sabe que ele sabe de sua segunda mulher, “a quem instalara casa nas Torres Vermelhas, em Maputo”. O silêncio vem “em troca de uma passagem para Argentina e de um aumento chorudo na mesada”.

Se não conseguiu entrar no curso de Direito como o pai ansiava, enquanto Argentina concluía o de Economia, César ganhou fama com seu primeiro romance policial, a que se seguiram outros. Quando se sentia secar por dentro, retornava a Moçambique em busca de reciclagem e renovação. Depois de anos com Argentina como amante, resolve casar a sério com a professora Beatriz, talvez em busca de uma união estável. Mas aqui não há como deixar de pensar que, para ele, as “pretas” só servem como amantes, ainda que Argentina seja uma mulher extremamente culta. Ranço do racismo colonialista, quem sabe. Mas, quando o casamento com Beatriz entra na fase morna, César volta a Moçambique, atrás novamente de Argentina, que, a essa altura, também voltara para a África de olho num mestrado no Zimbábue.
Quando está às vésperas de reatar com Argentina, quem sabe para finalmente constituir uma família e uma velhice tranquila para ambos, o destino o leva para outro rumo. Por lealdade a Raul – morto numa cilada em Quelimane, provavelmente por um colega de profissão, vítima de alguma intriga política –, terá de assumir o filho do outro para colocá-lo longe da África. E garantir-lhe uma vida melhor.

Eis a metáfora de volta: na África nunca ninguém poder dormir, o que significa que não se pode esquecer o passado, essa assombração que vai aonde quer que se vá. Em outras palavras: como não podem esquecer o que lhes fizeram, os africanos não conseguem superar o ressentimento e atingir o perdão. Nem perdoar os outros nem a si mesmos. Essa é a maldição que paira sobre a África. A maldição de Ondina.

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* Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003)

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segunda-feira, 15 de julho de 2013

A ARTE E O ENGENHO

Fui ver o filme Os Mestres da Ilusão.
Gostei e odiei.
Gostei por ser de facto um grande espectáculo, de que se sai momentaneamente saciado.
Odiei porque o guião é absolutamente desonesto para com o espectador e a solução «deus ex-machina» com que a narrativa no final ata os seus nós é tão engenhosa como da ordem do embuste. Apesar da trama ser congruente com as “leis” do ilusionismo, e de o artifício ser anunciado desde o primeiro instante – portanto nada a obstar do ponto de vista da construção de uma trama para a qual a verosimilhança não é chamada.
As minhas objecções são morais.
Este filme faz-me lembrar outro êxito e outro filme engenhoso, cuja chave só se dava no último plano: Os Suspeitos do Costume. No qual, só no fecho sabíamos que o coxo afinal não era coxo mas o maior dos vigaristas.  O “problema” é que o espectador havia sido induzido por uma mentira desde o princípio e quando as regras é não se ter regras então “tudo é possível” e aquilo que aparecia como um grande achado (final) no fim de contas não passava de um processo imaginoso mas que não era verdadeiramente imaginativo, ainda que o parecesse (e a diferença entre uma coisa ser imaginosa ou imaginativa é vital para a distinção entre a arte e o comércio).
Gostei mas este não é o meu tipo de cinema e como escritor (e de guiões também) teria dificuldde em embarcar na facilidade/felicidade com que a construção desta trama manipula a boa-fé do espectador, mas pronto, este é uma escolha e um prurido meu. Parvo sou, e é tão fácil, basta enganar o espectador – pão e circo, lembram-se?
Aposto que o Inferno do Dan Brown, estará a caminho do 1º milhão de livros vendidos.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

O MIRADOURO MURILO, COMO DURA!

O único desgosto que Murilo Mendes (1901-1975) me deu na vida foi informar-me que René Char detestava Michaux. De resto, com as suas mãos repletas de milagres, sempre me encantou. É, com Jorge de Lima, o meu ‘béguin’ brasileiro. Não há hipóteses de jogar à defesa com ele, ainda agora abri ao acaso uma página e saiu o seu “retrato-relâmpago” de Homero, que termina assim: «O vento analfabeto atira-lhe pedras». E fica-se desdentado de saber que uma imaginação assim é rara. Para o parafrasear, quando a gente acorda de bom humor é sinal de que está em Murilo.
 
TEXTO DÉLFICO
 
(fragmentos)
 
Nas sandálias da manhã o pássaro sem poeira.
 
O povo dá à fantasia o que o povo não lhe dá.
 
Acontece que os deuses mandam discar um número, mas o telefone está ocupado: outro recebe a chamada.
                                                                             
Ao largo do horizonte circulam águias: “os deuses pegam-nas como moscas”.
 
Os deuses passam o passado e o presente a reconstruir fragmentos do futuro.
 
Tenho fome de pedras, diz Rimbaud. Sirvam-lhe fragmentos do Parténon, mesmo requentados. Ou de qualquer outra pedra anónima, ainda fria, de Delfos, Delos ou não.
 
O grande oliveiral olhiverá? Já que olhiviu a paz.
 
A silenciosa aguardente dos deuses.
 
Os deuses jejuam de pão e tudo mais. Menos de metáfora.
 
A cem metros de qualquer ponto está o Oriente.
 
Os deuses vingam-se dos homens, morrendo.
 
A glória do diamante impede a borboleta de dormir.
 
O agouro, agora na ágora, agrega os agressores.
 
O oráculo não tem pés.
 
Tomar o remo em qualquer parte – inclusive no mar.
 
As sombras de vez em quando perdem-se umas das outras.
 
O cérebro do cérbero, caos latindo.
 
O sol visto ao microscópio esperneia.
 
As esferas dormem. Os triângulos vigiam.
 
Bebi da vida. Suportei dos deuses. Acrescento-me da morte.

sábado, 6 de julho de 2013

A ANÁLISE POLÍTICA: ATCHIM!

                                                               Portas, "o tunisino"

A demissão de Portas era “irrevogável” para a sua consciência mas não “impreterível” para o país, daí o volte-face. Na verdade, lendo a sua declaração de demissão na íntegra não encontramos aí nada de irrevogável, i.é, de irreparável, para além da ameaça do adjectivo – nada mais que um signo flutuante. É um texto contido, educado, tão calculado que não existe nele uma aresta, um imprevisto, um adjectivo imperdoável, aquele pequeno excesso de humano – furor e vergonha - que encontramos em todos os divórcios.

Não, este era dominado como a esteira rolante que imprime um ritmo uniforme. Ora, não é possível a alguém zangar-se de facto sem que um mínimo da sua respiração se altere. A não ser que não esteja zangado de facto e só queira mostrar que está. Aí escolhe uma palavra oca como uma noz bichada e mete-a em cima da mesa. Espectáculo. Azar dos outros se depois a noz afinal está vazia.

«Entretanto – leio em Hannah Arendt –, é função de toda a acção, como distinta do mero comportamento, interromper o que, de outro modo, teria acontecido automaticamente, tornando-o previsível». Repare-se na distinção que a autora faz entre acção e comportamento, que é importantíssima para o élan político e os seus efeitos.

É aqui se manifesta a diferença entre Passos Coelho e Paulo Portas: Passos Coelho está absolutamente obcecado com o comportamento, tomou para si um desígnio e segue-o obedientemente sem concessões, por isso foi incapaz de escutar as razões de Portas para a escolha de Maria Albuquerque. Portas é de outra inteligência – ele sabe que de vez em quando é preciso interromper o processo para que a acção tenha lugar, e a sua via ser inesperada só lhe dá força. É o que acontece agora – ele volta e Coelho está refém, e o país, que ficou refém da sua demissão irresponsavelmente grandiosa fica agora cativo pelo grandioso sacrifício com que volta, apesar da sua consciência.  Ah, heroicidade!

Numa coisa ele tem razão – o que falta à vida política de hoje é acção. É tudo previsível. A oposição unicamente reage à agenda do governo, e nas redes sociais só parece haver uma única vontade: derrubar o governo. Não passam de comportamentos. E por isso estão as redes sociais dependentes dos mais inaparentes flatos. Não há um grama de invenção política, só anedotas e opinião. Só Portas parece perceber a força e a mobilização do inesperado.

Por isso pôs todo o mundo a falar dele, e um terço a pedir-lhe que voltasse. Debaixo de tantas luzes as sombras não são possíveis e por isso o que era um recorte – a irrevogabilidade – deixa de o ser. Ou seja, o seu golpe de teatro torna-se destino porque lhe dão importância. E não interessa se vai voltar realmente ao governo ou se fica nos bastidores a manobrar os cordéis – a vitória é sua.

Haverá quem se indigne com o descaro de Portas e os seus volte-faces, como se ainda estivéssemos numa época de homens com carácter. A tipologia agora é outra, o gesto, a dignidade, a honra já não organizam sentidos; agora, como diria o Sócrates, a “narrativa” justifica tudo. Não interessa mais se a moral se torna lábil, a narrativa dará um remate feliz à soma de vergonhas. O importante já não é ter uma moral mas parecer ser o dono da sua narrativa.

Daí a importância que se dá no facebook às opiniões e aos likes – é o modo de cada um decalcar uma ilusão de protagonismo num comportamento tribal: protesta-se protegido por um sentimento de unanimidade. Mimeticamente. No mesmo impulso com que Passos Coelho imita o desígnio que traçou para si. E numa adição de curiosos pensamentos e emoções diferidas, que não se vive mas se “partilha”.

O que era necessário para que a gente que pulula hoje na política fosse varrida? O contra-golpe narcísico.
Se durante uns meses as pessoas calassem a sua gritaria em relação à espuma política os políticos ao princípio achariam que tudo estava bem no reino da Dinamarca e depois começavam a assustar-se porque não sabiam do seu imago e ninguém lhes apontava o cheiro fétido.
Ao fim de seis meses, com o medo de se terem tornado realmente irrelevantes, tomavam banho para parecerem iguais aos outros, porque o mimetismo governa, infelizmente, todas as relações humanas.
Como os cães do Pavlov estamos reféns da reflexividade entre o FB e a política e aí temos os Portas e Coelhos que merecemos e as carraças voltam porque sentem que fazem falta a quem se coça.

(Chiça, que hoje acordei com os vóltios do avesso, amanhã hei-de voltar a achar que o fb é um fórum necessário e que toda esta verborreia: atchim…)