quinta-feira, 26 de julho de 2018

JE SUIS OXANA SCHACHKO



JE SUIS OXANA SCHACHKO
Tinha o nome de uma princesa maia, de leve
reminiscência ucraniana: Oxana Shachko.
Nos seus olhos havia watts
para abastecer os luzeiros, da terra ao céu
e volta, embora lhe fosse triste
o sorriso. Aos doze anos cismou entregar-se
a um convento e pintar ícones
como André Rublev. Aos vinte e dois,
num idêntico fervor místico,
desnudava os seios e gritava
em lugares públicos palavras de ordem
contra a violência falocrática e
os esbirros de Putin. Era sua
a cara da República e admita-se finalmente
que a sua beleza foi quem tentou
a serpente no Paraíso, insistir
no contrário é pura ideologia.
Aliava à voz macia a decisão
de uma mártir e, benza-a
Deus, possuía uma fotogenia
que a fazia tremendamente única, mesmo
se a acompanhasse pangolim.
Por isso bebo há dois dias inconsolável,
ensaiava uma declaração e
o Edgar Pera gravar-nos-ia a boda.
Adorava enforcar a corda
com que se suicidou, aos trinta e um anos,
a diva do Je suis Femen. E nem sequer
falo do esplendor da luz na sua pele
ou das suas pinturas da Virgem
porque, bárbaro como sou,
fico embargado.

 

sábado, 14 de julho de 2018

ESPALHAI A PALAVRA!

foto de ana cristina rodero 


As minhas crónicas desta semana, a do Savana e a do Hoje Macau, que é claramente neste momento um dos melhores jornais em língua portuguesa. Se ainda não deu conta, veja aqui: https://hojemacau.com.mo/. No Savana, seguindo o exemplo de Maradona, fundei uma igreja. Claro que esta semana já se acumularam os dissidentes.

ANATOMIA DAS RELIGIÕES
Ao Maradona ia-lhe dando um treco por ver que o seu bispo Messi não deu xeque-mate no relvado. E eu, pesaroso porque lhe batia a asa resolvi ler sobre a Igreja Maradoniana, que tem meio milhão de adeptos repartidos por vários países, inclusive no Japão. E numa reportagem flagro esta passagem:  
«“Que a minha mulher não me ouça, mas eu gosto mais do Diego do que dela. É mais forte o que sinto por ele. Eu morro por ele. Calculei que a minha filha nasceria perto do Natal e decidi batizá-la primeiro na Igreja Maradoniana”.
Outro crente, Lionel Díaz, sabe tanto de Maradona que ganhou um concurso num programa de TV da ESPN no qual foi submetido a todo o tipo de perguntas sobre Maradona. A final do concurso era uma disputa contra o próprio Maradona, para ver quem sabia mais sobre a vida do ex-jogador. Lionel respondeu mais rápido que o seu próprio “Deus” - e ganhou.
O casal de namorados Fabián da Silva e Elizabeth Galvani observa todo o folclore em torno do futebol com um brilho nos olhos. No meio de tantas canções de louvor a Maradona, pouco mais podem fazer - ambos são surdos.»
Eis porque resolvi fundar a minha igreja. A Igreja do Lobo Que É Filho do Homem, de Inspiração Cabritiana.
Fui campeão nacional de pingue-pongue em todas as categorias até que tive um treinador japonês que me fez descobrir o saké e o primeiro postulado da minha religião: «se fazes algo muito bem é porque ainda não descobriste algo que farás ainda melhor!».
É o meu caso, neste momento em que me invisto como Deus.
Todos os que são humildes e mais querem sê-lo e maior felicidade não concebem do que serem finalmente um selo numa carta para Tampico, no México, têm agora o seu cenáculo de Inspiração Cabritiana, na Igreja do Lobo Que É Filho do Homem. Justifica-o a bondade dos fiéis e eu ter decidido que irei ao México buscar uma profetiza. A primeira. Nos meus templos só perorarão as mulheres. O homem entra calado, dado estudar para navio e ser apenas transporte da fé. A mulher é quem oficia e ama, o seu Deus. Vou ter cinco profetizas – uma por cada continente, doze Apóstolas e Quarenta e Nove Bispas, o número dos degraus a que são sujeitos os neófitos na sua iniciação.
Estes cargos só se ocupam por nomeação. Para Pastoras é que abro já as inscrições. Paga-se 5000 meticais de joia. E cobram-se uma geleira e uma máquina de lavar roupa pelo primeiro Aprendizado: Ajuste às Naturais Emanações de Deus, com Drink e Ar Condicionado, em vinte sessões. Só se aceitam moças com certificado do Physical, que estejam no pino da forma. Na nossa igreja não aceitamos uma fé com osteoporose – é tudo a doer.
Na nossa Igreja não mentimos e devolvemos todo o Amor aos Fiéis. É o Fiel que tem de ser Portador do Amor, o Portador da Credulidade, o Portador da Paciência. Nós, como Deus só cobramos! Se sente uma grande necessidade de servir, a maior necessidade em ser servil; se sente que precisa que tomem as decisões por si; se necessita desesperadamente de delegar as suas responsabilidades em entidades abstractas; se não vive sem ritos e se pensar lhe causa os pruridos do feijão-macaco, nós EXIGIMOS O SEU MAIOR ESMERO! Se costuma ter pesadelos quando tem a sua bexiga cheia, nós PROVIDENCIAMOS O DESPERTAR! Se desconhece o nome das árvores e das plantas que lhe atravessam quotidianamente o caminho, nós SOMOS A SUA MORADA. Se já lhes conhece o nome nós SOMOS A FELIZ MORADA DO ESQUECIMENTO.   
Na nossa igreja não existe a noção de Pecado. Gastar as palavras em vão? Somos a primeira Igreja a compreender que SE NÃO PROIBIRMOS AS COISAS ELAS DESAPARECEM POR SI.
Pelo mesmo motivo não certificamos Milagres nem apoiaremos qualquer candidato à Câmara de Maputo, e como damos a César o que era de César não lhe chamamos Dízimo: não, nós Cobramos a Fé Sem Recato Porque o Amor Custa.
Os nossos Dez Mandamentos:1. Para quê ser só pobres se também podemos ser tolos!? 2. Se vir que alguém já roubou o suficiente dê-lhe também a sua filha. 3. Ter sempre gémeos, para não descurar as estatísticas da mortalidade infantil. 4. Se vir que o seu filho quer ser um Cristiano Ronaldo compre o Real Madrid. 5. Se a sua filha estuda por gosto entregue-a à Igreja Cabritiana, nós agenciamos o seu futuro. 6. Na Igreja do Lobo Que É Filho do Homem não se aceitam ursos. 7. Toda a violência será revogada pela obrigatória redacção de Epitáfios. 8. Se encontrar um gato parecido com um guarda-chuva troque-o por uma cautela. 9. Nesta Ordem Celeste aceitam-se Adeptos mas não Discípulos.10. Em dando conta que o programa para a roupa de lã chegou ao fim desligue a máquina de lavar.
Esta igreja só reconhece outra igreja: a da Missa Paga. Perdão, Pagã.
Donativos e contributos podem ser enviados para o NIB 212121 05344 14560001, do BIM. Advirta-se que, depois do donativo, se se sentir “maltratado de miolo” este é um primeiro efeito benéfico. Dúvidas: tirem-se junto da primeira secretária, Teresa Noronha (que gosta mais de mim que do Maradona). Reunidos os primeiros 200 milhões de meticais informaremos sobre o paradeiro do Templo.    
  
cristina rodero
//

OS CONTOS DO TRÂNSFUGA


Ruben Dario (1867-1916), praticamente, nasceu trânsfuga, numa Nicarágua natal que só lhe conheceu a infância, o começo da juventude e o ocaso.
Pelo meio, foi educado pelos tios, por extravio do núcleo familiar, e novo saiu da aldeia natal para visitar El Salvador; no trespasse da adolescência passa a residir no Chile – um pé em Valparaíso e outro em Santiago -, após o que assentou arraiais na Costa Rica e no Guatemala, aportou várias vezes ao Panamá, viajou até Espanha – dando então o primeiro salto a Paris; a errância fá-lo instalar-se ainda na Argentina, em Buenos Aires, (como cônsul da Colômbia), sem dispensar uma transumância permanente entre a América e a Europa, aonde igualmente visitará a Itália e Maiorca. Em 1910 desloca-se ao México, que está no umbral da grande revolução; seguir-se-á Nova Iorque, antes de regressar à Nicarágua, à sua aldeia natal, Chocoyos (hoje Ciudad Darío), morrendo aí em 1916 com apenas 49 anos, embora muito calcinados pelo vinho e o uísque que vazou a rodos.
Todo este cosmopolitismo fê-lo um partidário ferrenho da unidade centro-americano, utopia política de alguns e nunca cumprida, e a enjeitar os nacionalismos, declarando com humor: porque «ao homem, como aos cogumelos, não exige Deus a escolha de uma pátria» (frase colhida no conto Arte e Gelo, incluída na antologia que é pretexto desta prosa).
É desta criatura plectórica e vital no dealbar de um século para outro e que rompeu com o provincianismo colonial para se revelar um dos aríetes da literatura em qualquer coordenada em que tenha tomado assento, que agora se edita uma genicosa coletânea de contos, o volume Curiosidades Literárias e outros contos, com selecção, versões e notas de Rui Manuel Amaral, na colecção por si dirigida, a Colecção Avesso, para a editora Exclamação!, do Porto.
Curiosamente, muitos contos estão identificados com os locais que visitou, literalmente ou através de leituras, e temos o conto parisiense, o conto hebraico, o conto russo, o conto grego, o conto passado em Londres, a lenda mexicana, etc. Embora não haja nestes contos apenas um impulso mimético em relação aos lugares e aos diferentes estilos que evocam, antes se certifica neles, muito para lá da feição simbolista que de comum se lhe associa, o profundo ecletismo do autor. E temos narrativas de cunho simbolista, de cunho fantástico, de recorte realista, fábulas e até anedotas de amplexo mitológico. É isso que o torna uma fonte de surpresas e profusamente actual – isso e um humor subterrâneo que de vez em quando aflora:
«O asno (embora nunca tenha conhecido Kant) era especialista em filosofia, como se costuma dizer» (pág., 48);
«Orfeu saiu triste do bosque do sátiro surdo, disposto a enforcar-se no primeiro loureiro do caminho.
Não se enforcou, mas casou com Eurídice.» (pág. 52)
«Que doutor Z seja ilustre, eloquente, conquistador; que a sua voz seja ao mesmo tempo profunda e vibrante, e o seu gesto avassalador e misterioso, sobretudo depois da publicação da sua obra A arte do sonho, talvez se possa discordar ou aceitar com reservas; mas que a sua calva é única, insigne, bela, sone, lírica se preferirem, oh!, isso é indiscutível, estou certo!» (pág.93)
Darío é tão fascinantemente eclético que até antecipa Lovecraft, em O pesadelo de Honório, que, coitado, num sonho revisita todos mas todos os rostos, perfis, caretas, esgares, e máscaras que tiveram lugar numa sucessão formigante desde o princípio do mundo e que se guardarão no provável armazém que configurará o inconsciente de Deus – multidão que devém a interminável soma de singulares que aterrorizaria qualquer mortal -, ou antecipa os artifícios dos experimentalistas do OuLiPo, no conto que fecha esta antologia, Curiosidades Literárias, e que transcreve uma narrativa – deliciosamente intitulada Para Fracassar Basta Amar – que dá um bigode a Georges Perec, pois constrói-se a partir da interdição do uso não de uma vogal mas de quatro, só sendo autorizado o recurso ao a.
Para se perceber a riqueza do conjunto e como em Darío até as anedotas têm duplo sentido, citemos esta:
«No paraíso terrestre, no luminoso dia em que as flores foram criadas, antes que Eva fosse tentada pela serpente, o maligno espírito aproximou-se da mais bela rosa, no momento em que esta estendia, à carícia do celeste sol, a encarnada virgindade dos seus lábios.
– És bela.
– Sou – disse a rosa.
– Bela e feliz – prosseguiu o diabo – Tens a cor, a graça e o aroma. Mas…
– Mas?
– Não és útil. Não vês estas vastas árvores carregadas de bolotas? Além de frondosas, dão alimento a multidões de seres animados, que se detém sob os seus ramos. Rosa, ser bela é pouco…
A rosa – tentada como seria depois a mulher – desejou então a utilidade, de tal modo que houve palidez na sua púrpura.
Passou o bom Deus, depois do romper da aurora.
– Pai, disse aquela princesa floral, agitando-se na sua perfumada beleza – quereis fazer-me útil.
– Seja minha filha – respondeu o Senhor, sorrindo.
E o mundo viu então a primeira couve.»
É extraordinário esta anedota. Não somente pela sugestão de que não há funcionalidade desejável para além daquela que concerne a cada forma, mas também pela ideia herética de que cada ser, criatura, entidade, planta ou nuvem pode ter sido tentada no paraíso. O que pessoalmente, perdoe-me o leitor, acho uma ideia retumbante.
Para além dos contos referidos outros realçam, como a curta fábula Febea, na qual a pantera “domesticada” não mente a Nero sobre os seus dotes artísticos, até ao auto-irónico O último Prólogo, corrosiva diatribe contra a condescendência literária com um desfecho surpreendente, ou não, se o associarmos às contradições dalguns escritores do actual friso dos escribas portugueses que se querem “malditos”.
Reconheça-se por fim que a fluidez e eficácia destes contos devem muito à imperiosa qualidade da tradução de Rui Manuel Amaral, sem a qual esta diversidade e tensão frásica manquejariam.


quarta-feira, 4 de julho de 2018

O BLUE DA MAJIKA 1



Foi uma das experiências felizes da minha vida.
O ano passado, em Outubro, o ceramista moçambicano Jonas Donato convidou-me para fazer um texto inspirado nas diferentes recriações que ele fez dos instrumentos tradicionais moçambicanos, e um mês depois da proposta dele íamos buscar à tipografia o livrinho, com o título O BLUE DA MAJIKA.
MAJIKA era como se chamavam as guitarras feitas de lata, nas periferias de Maputo.
É o que passo a transcrever, em vários posts: 

                                           o Jonas Donato,preparando-se para tocar trompa



COSMOGONIA

E no princípio era o Vento.
Que regateava à esquerda e à direita
no desespero de encontrar os seus cabelos
de os sentir nos ombros e como declinavam
nas omoplatas até à região lombar
só então se sentiria capaz
de sentar a chuva nos desertos
um momento que fosse
e de apagar aquela lâmpada sempre acesa
no tecto azul que fizera para o céu

O Vento não descurava nenhuma das suas tarefas
Mais inaparentes como emplumar com as penas do pavão
as escovas no grão de trigo
reencontrar o rasto do dente perdido do pangolim
ou sondar atrás do esterno o coração do xirico
Pelas manhãs observava a relha que ralhava na terra orvalhada
e sopesava as estrias nas águas do poço,
pensando o que podia ter sido é uma abstracção
mais vale radiografarmos aquilo que é

O Vento não deixava de espantar-se com a fertilidade
do planeta que inventava
à medida que gatafunhava páramos e galgava as serras
enquanto voltava pelo direito as luvas de Deus
Tinha o Vento muito cuidado com as palavras
e por isso enxotava as sílabas do verbo que se mostrassem apressadas
ao mesmo tempo que capturava o infinito com as turbulências
da memória- uma unha que nunca lhe caíra,

e um dia enxertou com urgência na juba do leão a macieira
para que a mansidão chegasse aos rios
Mas ferindo-o ao de leve a solidão o Vento
começou a procurar nos lábios que inventava a raiz
dos espelhos os seios de uma nuvem
o desosso das amoras
imaginava que se fartava o Vento
como encher de massapão os abismos

ou viajar clandestino na primeira classe de uma língua
Uma vez o Vento distraía-se a abafar um incêndio com o sumo de um limão
e quase sem dar por isso criou a laranja
e depois tão absorvido ficou que criou o homem para desfrutar a laranja
e o porco para desfrutar das bolotas
e o galo para disputar as manhãs
e criou o mercúrio
para ensinar os termómetros a ler

Até que rebentou aos ouvidos do Vento a algazarra
e viu como crescia a soberba entre as criaturas
o alarde da zanga entre o azeite e o vinagre
como cada nó de uma porta reclamava uma atenção exclusiva
bocejavam as pedras assim que a girafa as cumprimentava
e os corvos não atendiam aos pedidos do gala-gala
e até as próprias palavras como entristadas viúvas bigodudas
deixaram de encontrar os recíprocos
E viu o Vento que o silêncio já fazia paciências com o ar marasmado
de quem extraviou o erre e respira aos apitos, arritmicamente,

e que até Deus assistia a tudo de pálpebras congeladas
de pé sobre um tímpano
que não se sabia para que servia
E o Vento compreendeu
tinha de fazer propagar um filamento sonoro
que anelasse os ritmos e fizesse o coração
das criaturas sentir-se menos só
O Vento criou então os instrumentos musicais

e como o que podia ter sido era uma grande abstracção
o Vento pôs-se a tocar no primeiro dos instrumentos o que era
e o próprio tempo pôs-se a dançar e deixou de dissipar-se
e nunca mais lhe doeu o corpo
quando o Vento o atravessava,
e aí os pássaros imitaram-no
e glu-glu ouviu-se por toda a terra
quando as árvores se embriagaram naquela aurora:


//


MBILA

Ressoa em mim um rio
que descendo ao fundo das grutas
e aos navios naufragados nos golfos
acaricia as placas tectónicas
magnificando os sonhos
dos adormecidos terramotos.

O erro mais clamoroso de Da Vinci
foi não ter intuído que n’ A Última Ceia
os doze apóstolos eram devotados marimbeiros
e que maior paliativo não havia
para as dores do infinito.
O milagre do pão? Insonso amuleto.

Em Zavala quando nos reunimos
o nosso murmúrio
é o recobro dos anjos caídos.
E sou profundamente feminina
a pontos de que em perpassando-me
o vento nas cabaças este ganha a espessura do mel.







DO QUE ME CONTOU UM RÉGULO EM TETE: O PANKWÉ

Até o pénis e a vulva terem caído do céu a minha mãe tapava
um buraco que ela tinha com caril de amendoim

e o meu pai ia à caça cada vez mais intrigado
com a forma das setas por não conhecer nada parecido
no seu corpo que desse a vida
enquanto o seu passo projectava no chão uma sombra.

E viviam tristes, de lágrimas e vitualhas insípidas porque se sentiam sós.

Então nesse dia choveram milhares de pénis e as vulvas.
Eram de barro mas amoleciam se manejados.
A minha mãe punha-se a cantar e ululava quando o pai se acercava.
O meu pai passou a ornamentar-se com plumas.


Louvado seja o Senhor que levou o mar aos búzios!

Aí a minha mãe criou o pankwé.
As duas cordas são os grandes lábios
a cabaça o útero
- do que aí ressoa nasci eu!
Eu e mais um cento de cabritos.

E desde então o meu pai só faz o que gosta:
sobe aos imbondeiros e abre cisternas.






BALADA DO CIÚME PARA CHIGOVIA E BERIMBAU

Já não gramava de maçaroca
porque gosta dos seus dente!
Não gramava de mandioca
porque gosta dos seus dente!
Não gramava de mulala
porque gosta dos seus dente!

A minha dama agora é moça da cidade
e ofusca o mundo no seu batom
mas faz-me maka aceitar a informalidade
que o resto do mundo lhe deva amar.

Também gramo da cidade quando o néon
fala da labareda do seu nome
e a sombra dos seus olhos a noite arreda.
Mas ai do que meter o bedelho
entre mim e o seu batom vermelho.
Aí o meu Santo ‘spírito encrava
e sobre o magano eu deito a lava!

Perdão, meu amor, não lhe estou a negá
mas faz-me maka aceitar a informalidade
que o resto do mundo lhe deva amar.

Se já não gostava de maçaroca
Porque gosta dos seus dente!
Não gostava de mandioca
Porque gosta dos seus dente!
Não gostava de mulala
Porque gosta dos seus dente!

Aí o meu Santo ‘spírito encrava
e sobre o magano eu deito a lava!




GOCHA




Enquanto catar as migalhas
como quem colecciona astros
pode o pobre
ter orgulho na sua gocha?

Mas nunca esqueças
a vida são só ossos palustres
quando acima deles
ainda sonha a carne.

Dança! Afugenta os espíritos!
Faz do seu esconjuro
o cansaço de cada dia:
e um dia o sol cairá na tua tigela!






BLUE DA MAJIKA 

Meus caros, em ouvindo os acordes
da minha primeira corda saibam, não foi à toa
mas tentando melhor sorte
que abalei para Guanabacoa.

Meus queridos, se acharem que dedilho
a segunda corda e que ela se anuncia
intranquila, imaginem  que limpo o gatilho
deitado numa rede, em Salvador da Bahía.

Mas, estimados, a terra seca não mente
e antes que a miséria me morda, o ré
que punge a minha terceira corda
zarpa com os flamingos para oriente.

O meu afecto é vosso mas se ‘té o lobisomem
não vive de alho não há-de o homem
ter outros acicates, agasalhos e cismas
mais justos que o alicate desta rima?

(refrão)
Saudosos, não foi a quarta corda da magika
que me levou para terras sem chão
mas o desplante com que o poder trafica
a alma do seu irmão, a alma do nosso irmão.

domingo, 1 de julho de 2018

AMÊIJOAS NO MIRAMAR, EMBRIÃO PARA UMA PEÇA




AMÊIJOAS NO MIRAMAR, EMBRIÃO PARA UMA PEÇA

Há uns anos, a partir de um encontro inesperado e da história de vida, dura, durinha, de uma rapariga moçambicana criei este diálogo – dramático? -, que aqui fica em armazém:

//

Ela chora, sentada no muro da esplanada. Convulsivamente. O corpo varado por pedradas invisíveis.
Ele observa-a da mesa, o seu estado perturba o ritmo com que ele leva as amêijoas à boca. O incómodo cresce, e ele decide-se a ir ter com ela, aborda-a:
ELE
Há alguma coisa que eu possa fazer?
Ela vira-se e abraça-o de imediato. Num aluvião. Soluça:
ELA
Ele quer matar-me…
ELE
Calma… calma… se calhar o melhor é ir à polícia!
ELA (convulsa, incrédula)
À polícia?
ELE
É o mais natural nestes casos, quando nos sentimos ameaçados…
ELA
Tal…vez…
ELE
Não há que hesitar!
ELA (soletrando, lacrimosa)
Ma-tar-me-me-a-á-gui-guia…
ELE (atónito)
Hum… Sentamo-nos?
Sentam-se na mesa. Ela empapa de lágrimas os guardanapos da mesa, o lenço ele que lhe emprestei, enublava o céu azul. Ao fim de cinco minutos, ele brinca:
ELE
Começo a acreditar na história do dilúvio…
A piada surte efeito. Ela começa a travar os soluços, limpa o ranho, recompõe-se.
ELE
Quer-me contar?
ELA (murmura)
A águia…
ELE
Aqui em Maputo? (retoma um tom galhofeiro) Conheço corvos e abutres… mas águias, nem no zoológico. Você sabe que o leão do jardim zoológico de Maputo está tão magro que dá flor?
ELA (sorrindo, triste)
É uma tatuagem.
ELE
Ah! Sua?
ELA
Ya.
ELE
Onde?
Ela tira a alça do ombro esquerdo e mostra-lhe a omoplata. Uma águia soberbamente tatuada a azul celeste, de asas abertas.
ELE
Uau! Apetece tocar neste voo… Muito bonita, parabéns.
ELA
Não é ela ser bonita… é a minha alma.
ELE
Chama-se Alma, a águia?
ELA
Não…
ELE
Não entendo…
ELA
Em miúda tive um sonho em que subia a Cabeça do Velho…
ELE
No Chimoio?
ELA
Sim. Sou de Chimoio.
ELE
Galgavas a serra? É alta!
ELA
Ia lá maningue vezes, com o padre Stuart.
ELE (graceja)
Ah bom, logo com um padre…
ELA
É escocês.
ELE
Se é escocês, muda de figura… são dados à pinga.
ELA
Eu era miúda, o padre Stuart salvou a minha mãe de ser levada pela Renamo e tirou uma bala do peito do meu pai… aqui… (Aponta o peito esquerdo). Eu estava num internato em Adialua, distrito de Namapa, aí os bandidos invadiram o internato e capturaram alguns de nós, eu fugi pela janela, e fui a casa do mano mais velho… que vivia perto desse internato. Mas quando cheguei lá não apanhei ninguém, os vizinhos disseram-me, as chaves estão lá… eu abri a porta e fiquei à espera… Só que os bandidos saíram do internato e foram às casas em volta, queriam levar mulheres para eles… bateram à porta, eu tinha que sair, com o meu irmãozinho, que era pequeno e que entretanto tinham ido deixar lá em casa… Os militares perguntaram, você quem é? Eu sou aluna e estou em casa do mano… eles pegaram tudo, depois um deles disse, É muito bonita esta menina, não a podemos deixar… Quem segura esta menina? Um deles pegou-me pelo pulso…E então percorremos uma distância grande, com esse grupo, à procura de pessoas, de mulheres, que eles escolhiam, para levar… enquanto outros combatiam… mais à frente…
ELE
Você tinha quantos anos?
ELA
Uns treze. Encontrámos uma mulher sob um alpendre, que tinha parido naquela mesma noite…
ELE
Ali, ao relento?
ELA
Sim. Eu disse, Parem lá, vamos ajudar essa mulher que tem gémeas… «Pega lá essas crianças aí», mandou o soldado… A mulher não tinha como fugir… não havia maneira. E foi o que nos valeu… os militares afastaram-se um pouco convencidos de que não podíamos sair dali. Mas eu peguei nas duas crianças, num braço, e no outro braço levei o meu irmãozinho… e comecei a correr com aquela mulher… ela como podia… Quando já nos tínhamos distanciado eu dei-lhe os bebés e disse-lhe… eu agora vou na minha, porque aqueles ali querem-me levar…
ELE
O seu irmãozinho tinha que idade?
ELA
Na altura tinha uns cinco. Quando a grávida se escondeu, não sei quem me viu e voltou e contou aos militares, Aquela menina fugiu… aí começaram a me perseguir… Mas eu ouvi as botas de quando eles vinham, era uma estrada com capim, e o tempo estava chuvoso, não podia deixar de lhes ouvir, e disse, são eles, e logo recuei, recuei, encontrei um cajueiro, deitei-me com o meu irmãozinho peguei no capim e pus por cima de nós… eles passaram rente, a praguejar, «onde é que se meteu aquela puta?»… apanharam um homem, bateram-lhe, Por onde passou aquela menina bonita, perguntavam aos gritos, o homem pôs-se a chorar, Nem vi… e nós debaixo do capim… aquele homem sofreu, deixaram-no ali como morto… por nossa causa… e fugimos para o mato… Quando nos vi a salvo não quis voltar mais na vila, tinha na cabeça ir para casa da minha mãe, que era longe da vila e onde me sentia mais segura… Comecei a apear com o meu irmão, tinha medo de ir pela estrada, íamos pelo mato… perdi a direcção, o padre Stuart apanhou-nos ao acaso, eu contei, Há bandidos naquela direcção desde ontem, quiseram capturar-nos, e nós fugimos, ando à procura de Majuco…
ELE
Era a sua zona?
ELA
Sim. Majuco não é aqui, Majuco é lá para trás, disse o padre Stuart e arrancou uma mandioca e me deu, deu-me água, bebi… e o mano também, depois fomos embora… ele acompanhou-nos, apeámos, apeámos, apeámos… ele disse, Vamos apanhar a estrada asfaltada, vais reconhecer a estrada para a tua terra… chegámos à estrada e eu disse, Você pode voltar, já sei onde é… Mas ele não quis, tinha medo que nos acontecesse alguma coisa… e continuou connosco…
ELE
Isto tudo faz quantos dias?
ELA
Foi no mesmo dia…
ELE
Você vive muitas coisas num só dia…
ELA
Mas quando apanhámos a estrada eram já 16h, já era tarde…Foi aí que me cruzei com os meus irmãos à minha procura, porque lhes tinham dito que eu tinha sido capturada e então eles iam de bicicleta à vila para concretizar a informação… Levaram-nos na bicicleta para casa da minha mãe, que chorava e dizia, Vou-te amarrar… não estou para me enforcar por causa da minha filha… Graças a Deus todos ficámos bem… Foi assim que conheci o padre Stuart… e não voltei ao internato…
ELE
Compreendo. Conta lá o teu sonho. Posso tratar-te por tu? Se já me contas sonhos...
ELA
Sim... Eu subia a Cabeça do Velho. E lá em cima havia águias. O padre Stuart apontou uma e disse-me: é a tua alma.
ELE
Era assim azul?
ELA
Era. Voltei a vê-la. Voltei a sonhar com ela, dois dias antes de fazer a tatuagem.
ELE
Sentiste-te diferente, depois de fazer a tatuagem?
ELA
Ya, dantes estava perdida, como se em pequenina me tivesse partido em bocados e lançado ao vento… sentia-me…
ELE
Incompleta?
ELA
Depois chegou-me a sorte, nunca mais tive medo de querer alguma coisa…
ELE
Há quanto tempo fizeste a tatuagem?
ELA
Vai pra cinco anos.
ELE
E mudou tudo, desde aí?
ELA
Sim, vim para Maputo, estudei, arranjei um job, calhou-me o amor…
ELE
Calhou-te? Dantes não te calhava o amor?
ELA
Não. Fui deixada, sempre.
ELE
Este não te deixa?
ELA
Não.
ELE
Então, por que choras tu? És uma rapariga de sorte...
ELA
Ele pede que eu apague a águia…
ELE
Em nome de quê? Quem é a alimária?
ELA
Quem?
ELE
Desculpa, é uma forma de dizer. O teu namorado…
ELA
É um italiano.
ELE
Um italiano quer que tu tires a tatuagem? Mamma mia! Dantes queriam tatuar uma etíope no peito…
ELA
É por causa da família. O pai é do banco do Vaticano…
ELE
E que tem?
ELA
O pai arranjou-lhe um lugar lá dentro. Mas não fica bem a um cargo alto do Banco do Vaticano ter uma mulher com uma tatuagem…
ELE
Quem disse? Deus?
ELA
O bispo Tornatore.
ELE
Bom, esse manda mais que Deus… Deve ser difícil desobedecer a um pai que é do Vaticano. E tu que vais fazer?
ELA
Não sei escolher entre o amor e a alma…
ELE
Repete lá isso…
ELA
Não sei escolher entre o amor e a alma…
ELE
Olha, digo-te: antes a “bolsa ou a vida”…                              
Fecha a luz