sábado, 9 de janeiro de 2016

REGRESSO A MAPUTO

 
Depois de dez dias, entre o mar, as ameijoas e as leituras, retemperados para o ano novo? As nossas sombras, minha e da Teresa, e as miúdas na cavaqueira. ou a fracção das gerações?
No rescaldo do retorno, a Teresa escreveu uma bela e melancólica cronica e um poema. Que aqui posto:

Regresso a Maputo. Sem vontade. Regressar a esta realidade é sempre duro, mesmo se nos distanciamos por poucos dias. Não que a realidade tenha apenas um rosto, mas o rosto visível de Maputo para mim, o rosto que se me apresenta depois de afastar o olhar e voltar a ver é um rosto corroído pelo tempo, devastado pela fealdade, pela decadência, por algo que não foi capaz de se acomodar ao seu tempo, à mudança. Que foi apodrecendo em vida, ainda que à vida sobrevenha uma outra vida que fervilha e teima em multiplicar os seus fermentos. Cheiro, sim é um cheiro que se me entranha na pele.É acre, ácido de detritos. Em breve me habituaria a ele como sendo uma extensão de mim se me não recusasse a isso, se isso não fosse a minha forma de resistir.
Ali a poucos quilómetros estendeu-se diante de mim a outra face deste tempo. Aquela que ficou esquecida pelos poderes, por todos eles e que por isso arrasta as pessoas como enxames de abelhas à procura da cidade, da flor que desconhecem ter entretanto definhado, num solo que se foi tornando dia a dia mais árido à força de uma sobre utilização. Esquecidos por todos,só lhes resta esquecerem-se, perderem a raiz, o tempo, a face,e partirem. Trazem sonhos, esperanças ou simplesmente uma bagagem feita de nadas onde tudo se destina a vir, a ser, a devir. Ou então esperam, ali onde nasceram e morrerão, do outro lado do rio, esperam sabe-se lá o quê, e quando. Ali naquele mar que se estende, uma rede de pescadores é lançada ao mar. Vinte homens e mulheres de todas as idades puxam-na. Quase uma hora para retirar a rede às garras tenazes do mar. Vinte pessoas, quarenta braços. E ao fim de uma hora, precipitam-se sobre a rede quarenta olhos expectantes. Aproximo-me também expectante. Desta rede depende a fome ou a saciedade de vinte bocas e de outras tantas que em casa esperam os frutos daquela jornada, que o mar como soberano concede ou não aos seus súbditos.Os braços contraem os músculos sacudindo a rede para juntar os peixes. A partir daquele momento os olhos perdem toda a expressão. Os músculos relaxam-se, as pupilas renunciam ao foco, como se lhes fosse indiferente o número de peixes que ali se encontram. Não é. Mas, simultaneamente só pode ser. Porque o resultado não é uma equação matemática que depende ao mesmo tempo do trabalho feito, das horas a que se levantem, do empenho que coloquem nessa tarefa. Não depende de ninguém, nem sequer de todos. De facto, não depende. O resultado está à vista, mas eles ainda não viram, embora os olhos estejam fixos na rede. Na rede onde saltam ainda nem mais nem menos do que cinco peixes. Cinco, como os dedos da mão. Cinco peixinhos ainda plenos de vida. Vinte famílias, quarenta olhos postos em cinco peixes. A quietude do dia que nasce como um entre tantos outros num infinito sem espera, num infinito sem esperança. Tranquilo como a morte e a vida. Assim, simplesmente parado, sereno, o barco torna-se um fardo que se recolhe, os braços puxam a corda do barco de novo para terra. Sem um gesto de desânimo, sem um som de revolta. O silêncio do sagrado: aceitar a dádiva ou a recusa do destino. Vinte homens colocam o barco no lugar, como colocam o silêncio, como colocam o tempo, num lugar parado, adiado. Como se dali não dependesse comer ou morrer de fome. Tranquilamente, conformados, voltam as costas, caminham sobre a areia, trocam algumas palavras e regressam a casa.
Para nós aquela mesma praia representa o reverso da cidade. Para ali transportamos os nossos víveres para dez dias. Tudo o que é necessário para sobreviver durante os dias que ali vamos ficar, porque em quilómetros nenhum comércio se oferece. Carregamos tudo e de volta nada ali deixamos. Parasitamos este lugar durante dez dias distendidos entre a tepidez das águas, o som das ondas que rebentam perto quando o sol penetra docemente no corpo, em cima de nós quando mergulhamos à beira do mar, ou ao longe quando adormecemos numa rede a contar as estrelas. Imagens de um paraíso onde perdemos as imposições do tempodas obrigações, e nos entregamos ao sabor dos pequenos gestos, sem qualquer atrito.  
Atravessamos no batelão, ao lado de seis carros que procuram o mesmo que nós. Paz, silêncio, nada, beleza, suavidade, o desenrolar do tempo sobre uma paisagem límpida e natural, à ausência de agressões, de atritos outros que as ondas que cortas no mar, sobre os teus sentidos.
Sem carro, uma das muitas e nossas anacronias, dependemos de que alguém nos venha buscar para percorrer os cinco quilómetros de picada que nos separam da casa que o nosso amigo generosamente nos empresta. Ligamos para um dos complexos turísticos que fica a 200 metros da casa e meia hora passada um sul-africano com quem trocamos pouco mais do que sorrisos e uma dose de cumplicidade não-verbal aparece para nos transportar numa carrinha de caixa aberta que nos sacode até ao destino onde descarregamos os garrafões de água, a arca térmica com a carne e peixe e os sacos com a comida, para além de uma dezena e meia de livros que finalmente vamos ter tempo para ler. Cinco para cada um de nós que elas também ganharam o vício, graças a deus. 
O alpendre poupa-nos da inclemência do sol e enterra-nos como estacas aquele habitat. Ali permaneceria para sempre se fosse arbusto ou ave ou até insecto.
Regresso.  
Lembro-me de quando dezoito anos volvidos sobre a minha partida, regressei. Os lugares eram os mesmos, seguramente, Sim, alguns edifícios tinha surgido entretanto. Que digo? Muitos. A marginal, debruçada sobre a baía que me acolhia, à vez, sonhos e desesperos, transformara-se numa alameda de mansões. Não a reconheço como a cidade da minha infância. E naquele momento senti que ao longo de dezoito anos me acostumarasem o saber a ruas onde os rostos desfilam, individualmente distintos. Ali na terra que me vira nascerconfrontava-me como se fosse pela primeira vez com uma massa anónima onde os rostos se sobrepunham. Nada do que via, estava guardado e inscrito na minha memória. Nada daquilo existia naqueles sítios que eu percorrera vezes sem conta, sem me dar sequer conta do que via.
Ao longo destes onze anos de retorno a uma possível pátria a estranheza não só não desapareceu como se acentuou. Não foi possível acostumar-me, mais ainda, recuso-me a acostumar-me. E, no entanto, a vida foi-me empurrando gradualmente para a interface de uma cidade que foi envelhecendo longe dos cuidados hospitalares. Assim, o quarteirão que me leva a casa e de onde velozmente me afasto dela, cobre-se diariamente de uma mole de gente que chega da periferia amontoada em camiões a que chamam carinhosamente “mylove” ou nos “chapas” onde as mais das vezes em vez de doze transportam vinte almas. A magia? Não encontro. Deve estar onde os meus olhos não penetram, onde o meu espírito desconhece os segredos que a desvelam.
As mulheres retiram a capulana quando entram na cidade. Caminham sobre uma mistura de terra, sacos plásticos, urina, restos de lixo ou apanham um outro veículo meio destruídos pelas inúmeras voltas ininterruptas e pelos milhares de pessoas que diariamente sobem e descem gritando “paragem”. Às vezes as gentes amontoam-se de tal forma que não se distingue o rosto de alguém do braço, perna ou qualquer outra parte do corpo do outro… Os corpos perdem-se do seu indivíduo e passam a ser do domínio público.    
É com o mesmo desespero do dia em que a deixei, sitiada pela guerra, que a observo.
Percorro a longa avenida que distancia os vários países desta cidade. Alguém me diz: numa ponta estamos em Beirute, noutra queremos acreditar que ainda não saímos de Lourenço Marques.
Saio para a rua caminhando sobre os restos das vendas da rua do dia anterior. Sapatos desirmanados emaranham-se em cuecas usadas que ninguém quis comprar. Assim, sem mais, lembrando outras vidas que já os usaram. Uma dança de sacos plásticos e de areia rodopia em torno das nossas cabeças. Começam a chegar os vendedores da manhã. Vendem café, sandes de ovo, de badjia, vendem tomate e alface e laranja ao lado de mochilas e roupa usada.
Ando dois quilómetros e sento-me numa esplanada. “anybodyneeds a apartement to rent?” ouço e o olhar de ave de rapina do homem que oferece neste inglês macarrónico um apartamento ao preço de Novo Iorque alterna-se com um sorriso cândido, prestes a saltar sobre a presa ou a bater em retirada.
Um português acredita que está no Nicola “uma tosta e o sumol da praxe” sentencia para o empregado que se acostumou também com o linguarejar dos tugas.
Assim, sem mais escrevo, como quem resiste… como quem insiste em viver apesar de tudo.


A Teresa nos anais do msiro e depois

MAR DE PRATA 

Estende-se a prata dos dias
num braço de mar quieto
donde partem navios.

Também me quis nómada
ou não quis
Karma ou destino
cigana e sombra
de silêncios ancestrais

Junto as peças
uma a uma
uma enorme clareira
dobra-se sobre o passado
e estende-se como um mar
anterior a mim.

Mergulho
sinto na pele a frescura de uma água
que não me é estranha
aflora dalguma fresta
desta sombra prateada
que se desenha ao fundo do meu leito.

Tacteio a água,
os seus contornos
escavo uma onda.
Ela é breve.
Resta-me outra para escavar
a primeira já é espuma
rosto apagado na areia

Estende-se a prata dos dias
e escavo numa gota o mar inteiro.