quinta-feira, 30 de junho de 2011

QUEM CALA A RAPOSA E O GRILO?

Na minha adolescência vi um filme interessante que ao tempo me atraiu porque a banda sonora era dos Pink Floyd. Chamava-se «La Vallée» e a sua trama desenvolvia-se em torno de um tema sempre actual: será possível esquecer o conhecimento? É possível, na esteira de Nietzsche, dar um salto para lá da lei, da gramática, dos secretos ditames que pelos ardis da linguagem expressam ou impõem a sujeição que deve ficar secreta?
Se me recordo, um grupo de aventureiros motivados pelo impulso muito rousseauniano de se desligar da civilização chegava a um vale perdido numa imensa floresta onde vivia uma tribo ainda virgem de contacto. Face a esse novo limiar rejubilavam com a possibilidade de um recomeço. Só que paulatinamente não apenas os eventos que se sucediam à presença deles se emaranhavam em equívocos preceitos, que iam desvirtuando a “inocência” da comunidade “primitiva”, como progressivamente eles se davam conta de estarem irreparavelmente ancorados nos pré-conceitos de homens educados nas balizas simbólicas da sua cultura de origem.
Um dos motores da modernidade artística constituiu o que Paz baptizou como a «tradição de ruptura», i.é., cada movimento pretendia fazer tábua rasa de tudo o que havia para trás e começar de novo, de forma inaugural. Mas será possível fugir ao contágio do adquirido, e à influência do nosso tempo?
O poeta inglês Ted Hughes foi um caçador entusiasmado, inclemente, até aos seus catorze, quinze anos. Depois, como refere, «a minha vida tornou-se mais complicada e a minha atitude para com os animais mudou. Acusei-me então a mim próprio importunar as suas vidas. Comecei a olhá-los, por assim dizer, a partir do ponto de vista deles.»
Teremos de introduzir aqui uma nuance que o poema que citaremos em seguida autoriza. Em vez de uma simples empatia (o ponto de vista deles), esta conversão engendrou na verdade um terceiro ponto de vista, que foi quem detonou o poema: não é ele (o poeta), nem eles (os animais), mas a intersecção entre eles quem opera. Rejeitado o predomínio de um sobre o outro, não se trata de uma simbiose, mas de algo diferente dos dois e que emana do contacto e da interacção. Algo análogo ao devir-animal de Deleuze:
«Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimésis), mas é encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação, de maneira que já não nos podemos distinguir de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: e que não são nem imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto mais singularizados numa população. Pode-se instaurar uma zona de vizinhança com qualquer coisa, com a condição de que se criem os meios literários para isso, como com o áster, segundo André Dhôtel. Entre os sexos, os gêneros ou os reinos, qualquer coisa passa. O devir é sempre “entre” ou “dentre”: mulher entre as mulheres, ou animal dentre outros animais. Mas o artigo indefinido não efectua a sua potência a não ser que o termo que ele faz devir seja, ele próprio, desapossado dos caracteres formais que fazem dizer o, a (“o animal que aqui está”). Quando Le Clézio devém-índio, é um índio inacabado esse, que não sabe “cultivar milho nem talhar uma piroga”: em vez de adquirir características formais, entra numa zona de vizinhança.»
O que se comprova no poema A Raposa-Pensamento:

Imagino a floresta neste preciso instante da meia-noite:
há mais qualquer coisa viva
para além da solidão do relógio
e desta página branca onde os meus dedos se movem,

através da janela não vejo nenhuma estrela:
vejo qualquer coisa mais perto
embora no interior da escuridão profunda
a entrar na solidão:

frio, delicado, como a neve escura,
o nariz da raposa toca ramos e folhas;
dois olhos servem o movimento já
a deixar, outra vez, outra, e outra,

nítidas pegadas na neve
entre as árvores, sombra manca
que as raízes do chão atrasam da silhueta
de um corpo arrojado por ousar passar

entre clareiras, um olho,
uma energia expansiva e intensa,
luminosamente, concentradamente
agindo na sua actividade própria

até que, de repente, com o seu cheiro penetrante e forte,
a raposa entra no orifício obscuro da cabeça.
Da janela ainda não se vêem estrelas; ouve-se um tiquetaque,
a página está impressa.
 
Desde o primeiro verso, somos situados no laboratório do demiurgo. E sentimos que a raposa está viva, que chega de fora para penetrar no «orifício obscuro da cabeça», onde devém-poema; experimentamos nas costas da mão a sua força expansiva, a delicada humidade do seu nariz; enxergamos o nítido recorte das suas pegadas na neve – tudo isso o poema nos transmite, de forma soberba. Mas não só, inclusive o poema envolve-nos na criação da raposa, por metonímia: «a página está impressa». O leitor participa no acto-de-linguagem que se-fez-mundo. Mundo não meu, ou teu, mas de vizinhança.
Este tipo de despontar mágico duma triangulação que acorda outro, assim como o universo de Ted Hughes, são ainda um eco de uma reminiscência romântica, contudo o modo como ele cumplicia o leitor e o leva a reconhecer a experiência do poema sinaliza uma inescapável marca do seu século.
Aparentemente nos antípodas, Alexandre O´Neill, mais próximo das safadezas de Dada que da propensão oracular de algum Surrealismo, fazia do riso uma arma com que desmontava as ilusões da teleologia poética. O seu é um riso que afirma, ou, antes, que desactiva pela afirmação uma energia reactiva, pelo que também não hesita em explorar todas as ambivalências, mesmo quando se articulam de forma desconstrutora.
Peguemos numa das suas facécias mais conhecidas:

O GRILO

O grilo
não só de ouvido
eu cri-qu´ria sabê-lo
não só de gaiola cati
vá-lo mas dáctilo
grafá-lo copiar
seu abc de pobre
 

o poema começa por ser “um achado tipográfico” que desenha meia gaiola – a outra metade desenha-o o leitor. Depois traslada a natureza para a linguagem pela metamorfose aliterante do vocábulo «grilo» em «grafá-lo». Segue-se que, no próprio coração do texto/gaiola, o poema em vez de falar da linguagem do grilo, encarna-a: cri-qu´ria.
Isto é, inclusive quando parece retirar à poesia a ganga romântica, dessublimando-a, o poema acaba por cumprir um dos desideratos românticos: nomear as coisas que se ama com a linguagem das coisas que se ama.
E temos, à vez, riso, experimentalismo, ludismo… mas também, a contrapêlo: celebração e elegia.
Só há uma forma de agirmos em vez de sermos agidos pela cultura que nos condiciona as virtualidades da deliberação:
é apoderarmo-nos o mais profundamente de todas as suas florações até que, pela comparação, possamos potenciar uma distância crítica; visto não haver quaisquer hipóteses de nos ser devolvida a idade da inocência, a subtracção agramatical.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

PRESS RELEASE


CONVERSA DE ANTÓNIO CABRITA COM O SEU GATO
SOBRE O CURSO DE FILOSOFIA E ARTE
NO INSTITUTO CAMÕES, DE TANTOS A TANTOS
(INFORME-SE HOMEM, A CURIOSIDADE É O PRIMEIRO PRATO!)

Refila o Sebastião:
- Não sei se gosto do nome que me deste… Sebastião.
- Sebastião era o nome dum jovem rei português que perdeu uma batalha tendo com isso levado a que Portugal perdesse a independência durante 60 anos. Mas como o seu corpo nunca apareceu pensava-se que esse rei voltaria para libertar Portugal num dia de nevoeiro. Ora, como a ti, meu gatão, também ninguém te ouve chegar, parece que chegas sempre envolto em nevoeiro.
- Então porque não me deste o nome de Bruma? Sempre era mais inventivo.
- Tens toda a razão, é esta mania da antropomorfização, chegou-me com os gregos. Os gregos davam a tudo as características do homem, até aos deuses…
 - Só me falta dizeres que eles inventaram os seus próprios deuses?
- Ah, já sabias?
- Não posso, é verdade isso?
- Para muitos estudiosos sim, os deuses gregos eram projecções das qualidades ideais dos homens, formas de interpelação de cada um de nós com o melhor de si representado numa figura, mas os africanos também fizeram isso…
- Aldra…
- Estás-me a chamar aldrabão? O animismo africano é uma forma de antropomorfização, vê como nas histórias tradicionais africanas o coelho, o leão e o elefante falam e reflectem os problemas dos homens…
- Eu não tenho nada a ver com gregos.
- Estás enganado. Muitas das histórias orais de Cabo Delgado são iguais às fábulas de Fedro. Ora, os macondes não lêem grego. Nem os gregos a língua dos macondes. Ou essas histórias chegaram aqui por contágio, ou os homens em qualquer lugar, face aos mesmos problemas, oferecem respostas semelhantes com uma variação mínima. Na verdade temos todos os mesmos números de ossos. E por isso cada ateniense é um maconde potencial e vice-versa.
- Mas porquê um curso de filosofia?
- Se, contra qualquer bom senso, eu me ponho a atravessar a estrada num momento de grande fluxo de trânsito é porque decidi primeiro que a vida não vale a pena sem o risco, e resolvi enfrentar o destino, o que os antigos chamavam Fatum. É um jogo, onde enfrento o inevitável. Sem saber estou a encenar o começo da Tragédia. Em todas os nossos gestos do quotidiano, em todas as nossas acções existe uma escolha onde damos um significado à nossa narrativa, e nisso, sem o sabermos estamos a questionar o que está para a trás, as causas, e a abrir um novo espaço de virtualidades no futuro. Isso é filosofia…
- Balelas, se quero atravessar a estrada nessas condições é apenas porque estou com pressa.
- Ora enganas-te. Não existe a pressa, existe apenas a adequação do ritmo ao acontecimento, e isso chama-se o Kairos, como na parábola da figueira no Novo Testamento. A figueira não amadureceu a tempo e quando Cristo passou por ela não havia figos e por isso ela perdeu aí o encontro com o numinoso, que era como os antigos chamavam ao Sagrado, e perdeu a sua Salvação. Se tu atravessas a estrada com demasiada pressa, sem te ajeitares ao ritmo do fluxo podes ser atropelado, mesmo que vás com pressa tens de coordenar com a ocasião… esta sincronia é também uma chave filosófica, só que tu não sabias.
- Hum. É isso que vais ensinar?
- Transmitir, ou antes: insinuar. Ensinar não é possível. Não é possível transmitir a experiência do sarampo pelo telefone. É preciso estar infectado com o sarampo para compreender. Mas enfim, tenta-se…
- E porquê a arte?
- A arte é o que faz a um gato parecer um tigre na sombra.
- Queres tu dizer que sou um tigre?
- Eu acho que és um tigre que sonha que é um gato.
- Já me estás a confundir.
- É bom estares confuso, é dessa nuvem que saem as luzes.
- Eu cá quero ver tudo claro.
- Erro, ver claro vêem os cegos, os outros aprendem a discernir… É aí que tudo começa.
- É caro o teu curso, no Camões?
- É quase ao preço da chuva, é um Curso Livre. Esse quase que se paga é o que dá dignidade à chuva. Mas é barato, para poder ir quem quer ser infectado.
- E qual vai ser o prato?
- Cem gramas de Pitágoras, duzentas de Platão, uma pitada de Aristóteles e para a sobremesa Plotino com banana frita. E tem imagens e filmes à mistura.
- E africanos, não falas de africanos?
- No quinto módulo, aí é só África. Do Egipto até ao Achille Mbembe.
- Hum, não sei se vou.
- É pena, vai ter gatas.
- Gatas?
- Onde há filosofia há o Eros, o elo da atracção mútua. É o que o Platão ensina no «Banquete».
- Hum, isso não te dá fome?
- Vamos lá então ao nosso pequeno-almoço. E dou-te um brinde para ruminares com a torrada, é do Heraclito: «aquele que não espera pelo inesperado, não o verá chegar».

DEZ QUATUORS



LÍVIDA NEVE

Sim, o pavor faz-me revirar os ossos
que chiam gemebundos como as lágrimas
de cão que limpam as ramelas à lívida
neve, que nunca exagera.


O SEGREDO

Adejava de terra em terra
sobrevoando as linhas restritivas, lagos
e lameiros, em busca do segredo
que o liquefazia numa árvore.


O QUE SOBRA À PORTA

Eis a porta que se abre para dentro
de si mesmo, contundida, à cata
de orifícios que a aliviem de estar tão absorvida
pelas sensações que lhe deixaram a batente.


TATUAGEM

Corria atrás do vento
para lhe tatuar no dorso a toutinegra.
corria atrás do vento, escorreita
e nervosamente prismática.


COM GANAS

Já o passado exibia ao ombro
a minha pele esfolada
e daí, se não se importam,
com ganas me escapuli pró presente.


O BETUME

O betume impermeabiliza.
O nome não. O vento também não.
Há três dias que os pássaros comentam isso:
algo impermeabiliza o que não sabem designar.


DA INVISIBILIDADE

Lá se haviam estabelecido beduínos.
A bem dizer, lá continuam a brotar os beduínos,
ainda que ninguém o saiba. Perguntei à miúda
que me serve a cerveja - nem cerejas nem beduínos.


PULSAM

Quando a fenda se rasga no horizonte
a dança compõe a aridez da paisagem
e as tuas pernas, expansivas,
numa fímbria de saliva, pulsam.


DELAGOA BAY

Não há surfistas em Delagoa Bay. E, nela, rara-
mente mudam as copas dos coqueiros em hélices
destemperadas, como oráculos no vento.
Por isso se calaram os tambores.


O BEIJO-DE-MULATA
                                                               à dita
Reincidente, floresceu o beijo-de-mulata,
naquele canteiro. É um milagre, numa terra
que continuamente se revolve, mais presta
à erosão que uma fieira de cometas.

domingo, 26 de junho de 2011

A PAIXÃO SEGUNDO JOÃO DE DEUS III



4

Calhou-me a mim, a rifa. No Vává*, o Chico Antunes, o pássaro-bisnau, que era comissário de bordo na TAP, apresentou-se lamentoso porque os voos cheios do fim de ano lhe haviam trocado os turnos, lixando-lhe a concertada dessa noite na Gulbenkian, e já tinha os bilhetes comprados. O programa, lia o pássaro-bisnau, pomposo, compunha-se da peça para ballet com que Stravinsky fechou o seu período neo-clássico, Orpheus, e de duas obras de Robert Gerhard, Set Haikai, e Pandora Suite, também esta escrita para uma pequena orquestra de ballet.
O Alberto e a Solveig** escusaram-se, andavam numa fase de ‘música concreta’ e não queriam contemplações com «o reaças» do Stravinsky. O Lopes*** tinha plenário de trabalhadores na RTP. Eu, danado para as contemplações e as borlas, e ciente que a ressaca com que acordara nesse dia não me deixaria ir mais longe, chamei a mim os bilhetes.
Orpheus – delicado, ovos de borboleta e limões amarelos - fez-me entender que o estampanço de Almada no painel do átrio da Gulbenkian é um declive que não é só dele. Na arte, apenas a música pode aplicar o número de ouro sem sufocar no esquema. A divina proporção fazia daquele morceau de Stravinsky um airoso passeio pelas dunas, à cata de conchinhas e de estrelas do mar. O ideal para uma ressaca.
Nos Set Haikai passei pelas brasas. Falta à miniatura japonesa a gordura que faz da picanha um menu e que entreabre o barroco ao infinito. É como a pintura minimal, aprecio num museu mas um Rotkho na sala (apesar da temperatura, é o que mais aprecio nele, o revérbero quente que dá às cores) actuaria sobre mim como a tsé-tsé. A música era bem composta, magnificamente estruturada, capazmente interpretada, mas sem a outrance que me faz alçar o ouvido.   
Contudo, anagrama de conduto, senti aos primeiros acordes de Pandora que a minha ressaca tinha encontrado a sua retrete turca. Não há violência como a que experimenta o que apanhou uma carraspana na véspera se a retrete da baiuca onde combate o torpor das veias a cafeína e água com gás é turca. Tal abaixamento do centro axial do corpo aliada à baixa tensão arterial provoca uma despressurização que desequilibra o mais pintado. O primeiro andamento de Pandora, The Quest, exercia esse tipo de efeito. Era uma vertigem sem princípio nem fim, de um desamparo abisal, como dizem os espanhóis, o que o Gerhard nunca deixara de ser. Sentia-me a respirar sob quatro ou cinco atmosferas; o pânico, sentado ao meu lado, abria a navalha para o descasque. The Quest era le morceau idéale para a centuplicação do drama no ataque dos pássaros em Hitchcock.
Felizmente que, em Psyché and the Youth, o 2º andamento, o piano abrandou a vertigem e à entrada das flautas eu já recuperara o sangue frio. Pouco ouvi (sobreponha-se aqui a voz pomposa do pássaro-bisnau) das variações orquestrais ao Ad Mortem Festinamus, cançoneta entoada pelos peregrinos do século XIV que visitavam o mosteiro catalã de Montserrat: a minha desesperada análise do que me acontecera nos minutos precedentes atirara-me para milhas dali.
Fui então tocado por uma luz e empanzinado por uma ideia que à época me parecia estupidamente nova: os perigos de Pandora não chegavam da sensualidade bruta e desregrada, da licenciosidade dos costumes sob influência súbita dos raios gama nos aparelhos reprodutores dos Faustos & Margaridas desta vida, o que se destapa na caixa de Pandora não é o intenso cheiro a sexo que nos exalta e atrapalha, mas o fedor da amnésia com que as sociedades modernas querem esconder a morte e exaltar a juventude.
Levantei-me, de supetão, na plateia, e gritei três vezes Eureka, precisamente à entrada do terceiro andamento, Pandora´s Carnival, mas a minha sintonia não colheu o apreço dos chatos dos arrumadores e seguranças, que me convidaram a sair. E o público, diga-se, bardamerda para o público… foi conivente.               
Dois dias depois… ainda me arrepio, de contar. Se contar se fundisse com o que aconteceu seria proibitivo fazê-lo pois as retinas dos leitores seriam respigadas por cal viva.
Faltavam duas horas para o ano novo e não se via vivalma na cidade, só os mânfios, os cães sem dono e os tesos como eu. Arrastava-me pelo Largo da Misericórdia, de montra em montra de alfarrábio. Cismava em como havia de desviar alguns dos tomos expostos, e, só por descargo, dei uma espreitadela no Expresso, rezando por companhia. Nada. Tinham-me deixado sozinho. Cravei ao sr. Carlos uma bifana e uma lourinha, bebi a fiado mais duas, e resignei-me a voltar para casa.
Curvei para a Trindade*** e ao passar na esquina da Opinião**** chama-me um polícia.
É o senhor João de Deus?
E daí?
O senhor desculpe, como costumo vê-lo por aqui…
E os pombos também…
Temos uma chatice e não temos mais ninguém para identificar… o morto.
‘Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los’.
Que diz?
Nada, disse-lhe eu acendendo o cigarro, pensava em Pessoa… Que morto?
Um senhor que costuma estar nesta casa, com os senhores.
Aqui na Opinião?
Sim.
Aqui só há cães e cachorros…
Não é assim que lhe chamam, sei que ele tem a alcunha de um animal mas não é cão…
Lá tive de acompanhá-lo à morgue. Não ia totalmente contrafeito. O relato circunspecto daquele fim de ano sempre me daria para um mês de cravanços.
Entrei na sala frigorífica e havia um corpo coberto em cima de uma mesa de alumínio.
É este, indaguei.
Não, o sr. Enfermeiro vai abrir a gaveta.
O enfermeiro abriu a gaveta frigorífica e vi logo, enquistado em sarilhos, o Cabeça de Vaca.
Estava a pedi-las… - deixei cair, num encolher de ombros.
O senhor confirma que o conhece?
Apeteceu-me brincar:
Não sei, deixe-me ver este, a ver se não há engano.
Num puxão puxei o lençol, para os pés do cadáver.
Senti um pontapé no esterno. À minha frente, nua, estava Ofélia, a Ofélia pintada por Sir John Everett Millais. De uma beleza que a aguarela da morte apenas intensificava e que agora me deixava a vida tão sedentária e vazia como os guindastes do porto. Fora uma infâmia a vida ter-se esquecido de me colocar na rota dela, pior a perspectiva de, aurora sobre aurora, entreabrir os olhos e não ser o guardião da morta. Seria para sempre o que não nasceu para isso. Não sei se me entende: não a queria ressuscitar, que para tal se me dissiparam os dons. Nem esconder a sua morte. No caso dela não era necessário: a sua imagem abria uma brecha na morte, sem ter de a iludir. Aquela resina fria que alastra sob a pele dos mortos e os enrijece como mármore, não ia ter efeito com ela, a luz que a sua pele emitia não mentia. Você sabe o que aconteceu ao Pessoa, quando lhe abriram a túmulo para o trasladarem para os Jerónimos, cinquenta anos depois do falecimento? Estava inteiro. Teve de ser cortado às postas, como o bacalhau, para caber na urna que lhe fora reservada. Era o que lhe iria acontecer. Queria andar com ela, de cidade em cidade, para que vissem que a morte não é o fim, que não precisamos de fingir e que a beleza pode existir para além dela. E que o pecado só enodoa quem não colheu amoras, nu, à beira de um regato, enquanto por cima flauteiam os primeiros acordes do Don Giovanni. 
Com dificuldade, gaguejei para o polícia:
Este é o meu morto.
O sr. João de Deus não está a compreender. Trouxemo-lo para identificar aquele senhor…
O idiota estava morto há muito, este cadáver está tão vivo que me deixa… morto para sempre…
O polícia tentava levar a coisa a bem.
Diga-nos só como se chama aquele falecido.
Sei lá, não compreende, homem? Eu agora sei que morri, que não há nada depois disto…
Enregelava dos pés à cabeça. Sabia que se a onda fria me chegasse ao coração eu encomendaria a alma aos pinguins. Era preciso reagir, e pus-me aos gritos com o polícia:
Saia… saia…
Ele fitava-me, siderado. Insisti:
O sr. Agente importa-se de sair?
O polícia esboçou tirar o cassetete do cinto e eu antecipei-me, esmurrando-o. Aviei-o num instante, tinha aprendido tudo com o James Cagney, e pu-lo fora da sala frigorífica, mais ao enfermeiro, um medricas.
Depois fechei a porta por dentro e tive uns momentos de recolhimento diante da alameda de frésias que a contemplação do seu corpo se me abria; aquele anjo estava nimbado por um brilho, uma harmonia que nunca mais entrevi. Estremeci, a pensar no que seria aquela alma de olhos abertos.
Começaram a arrombar a porta. Tive de me decidir. Abocanhei-lhe o sexo, frio mas majestoso, e à dentada arranquei-lhe alguns pêlos púbicos, que recolhi depressa no bolso pequeno das moedas, antes de rebentarem com a porta e de me prenderem os movimentos.

Foram meses de pranto, os olhos secos para o mundo. Aquele anjo deixara-me pregado na ombreira do inferno. Não foi por passatempo que Pessoa escreveu, Grandes são os desertos e tudo é deserto. E ele só conheceu uma ténia chamada Ofélia, não esbarrou na legítima.
Felizmente que o João César faltava a quase todas as promessas que fazia, pelo que não iria precisar de mim tão depressa.
Errava de autocarro, sem destino, de uns para outros, o dia inteiro, como uma caligrafia que cospe em si mesmo até se esborratar. Não queria ser visto, voltar a fixar os olhos em mais ninguém.
Um dia, ou antes, no dia 1 de Maio de 1976, o autocarro, que subia a Joaquim António Aguiar, engasga-se na multidão que descia das Amoreiras para se juntar à grande manifestação dos trabalhadores que ia ter lugar, e dali não saiu. Desci, vi que para cima e para baixo era a mesma mole humana densa como um mal-entendido, e no meu passo de sonâmbulo fui em frente, na direcção do Parque Eduardo VII. Acabei por desembocar à entrada da Estufa Fria, que não visitava há anos. Estava fechado (- o 1 de Maio ainda é feriado obrigatório, vai uma aposta em como em 2012 isso muda?) mas um dos guardas não escondeu o maço de cartas que tinha na mão e num impulso, o meu primeiro sinal de vida de há meses àquela data, perguntei se podia alinhar na jogatana. Lerpa. Jogo em que defenestrei muitos. Passadas duas horas trocava as lecas acumuladas – os gajos, baratinados de todo – por um passeio nu, na Estufa. Eles galhofavam, incrédulos, mas era alinharem ou depositarem na minha mão um terço do ordenado. Antes o passeio do louco.    
Serenou-me aquela luz coada de verde no meu corpo nu, o refrigério de alguns recantos, o transpirado silêncio da clorofila. Acabei por adormecer, como Adão, deitado num banco à sombra de uma piteira gigante.
Seriam cinco da tarde quando me acordaram:
Tens de te pirar, vamos mudar de turno.
Desci pela rua de Santa Marta e no cruzamento com a Rua das Pretas vi que um afluente da manifestação desviava da Avenida e subia para virar à direita, metendo pelas portas de Santo Antão. Era um grupo ordeiro de formigas no carreiro e intrigava-me a marcha compassada de silêncio, sobretudo vindos de um ruidoso metralhar de palavras-de-ordem.
Chegando ao edifício do Coliseu, a maioria punha um ar subitamente comprometido e, torcendo o pescoço à esquerda e à direita na busca de discrição e de uns gramas de invisibilidade, entrava numa porta barrada por um tecido vermelho. Acima das cabeças lucilava um tubo de néon verde e, em esmeralda, o nome da casa: Bar 25*****.

Fachada do Coliseu, o Bar 25 ficava na última porta, à direita, entrava-se franqueando uma cortina vermelha
Entrei. A atmosfera era glauca e num pequeno balcão forrada a napa vermelha, ao canto esquerdo, compravam-se umas fichas que custavam exactamente vinte e cinco paus. A ficha dava acesso a umas cabinas, donde, de vez em quando, saíam homens com o ar encantado de terem sido vacinados contra a morte.
Perguntei ao tipo do balcão, apontando as cabinas:
O que é que temos aqui?
Um peep show.
Que consta em?
Nas minhas costas, uns miúdos riram com a minha ignorância. Um deles esclareceu-me:
Se tiver alguma coisa contra uma boa sarapitola, dê o seu lugar aos novos.
Há décadas que não ouvia aquele termo: sarapitola. Sorri:
… compreendi… - Dei uma moeda ao empregado – Dê-me lá uma ficha, quero estar a par das novidades.
Esperei por vez. Era o sétimo da fila e o único que não estava a fumar (tinha a bolsa nas encolhas), restava-me o desconcerto das mãos no justo momento anterior aos jogos malabares.
Os homens saíam das cabinas num estado de enigmática gratificação. Não me ocorriam sarapitolas com tais efeitos, a não ser nas primícias, quando o corpo é ainda o continente negro que a catana desbrava. Ver para crer.
Finalmente vagou a minha cabina. Pus a ficha na ranhura e a porta abriu-se magicamente. A cabina estava forrada de alcatifa escura e tinha uma cadeira diante da janela de vidro. Sentei-me e fixei a cena, que me estarreceu.
Uma rapariga de cabelo comprido, ondulado, sobre os ombros e olhar plácido, enrolada num manto, velava um bebé deitado sobre palhas, numa improvisada cama de cruzetas. O bebé dormia, mas de vez em quando agitava as pernas como se no sonho fugisse da subida da água na praia. A dado momento, ela fitava fixamente o vidro e, tal e qual a ventosa de um polvo, palpava o nosso olhar. Literalmente. Irradiava uma paz que descia pelo tronco e nos fazia arfar. Então, num recato, lentamente, subia o manto sobre a cabeça. Misteriosamente, senti-me acossado por um espasmo. Assustei-me quando atrás de mim, na cabina vazia, ouvi mugir uma vaca e senti o hálito quente de um burro. Saí da cabina confundidíssimo, mas nimbado por uma sensação de perdão.
Como falar desta experiência? Fiquei cá fora, a digerir o que me tinha acontecido e a observar os homens que saíam do Bar 25. A todos aparecia a Nossa Senhora, vestida, imaculada, ilesa de sexualidade? Teria sido perfurado por uma alucinação? Como explicar a flagrante tensão, o cuidado, a crispação à chegada, e o ar descongestionado, relaxado, levemente beato, que exibiam à saída? A maior parte, homens curtidos, de boina aos quadrados e bigodaças sombrias, calejados pelos solavancos de um país clivado em heranças atávicas e dogmas revolucionários, entrava de cenho cerrado e saía como se asas escondidas lhes acabassem de nascer nas axilas.
Resolvi esperar por ela, segui-la, decifrar o enigma. Era, à altura, uma experiência inconfessável e só agora, quase trinta anos depois, falo disso sem embaraço. Mas intui ali que toda a agitação política da época não passava da espuma abaixo da qual se movimentavam as verdadeiras correntes. Estava tudo perdido, os homens no fundo só anseiam pela estabilidade perdida.
Era ela. Apesar da minha determinação, das ganas com que a seguia, os pés, que lhe pairavam sobre o chão respondiam às minhas acelerações, mantendo-a a uma invariável distância de mim. Quinze metros me separavam do enigma, quinze metros que não conseguia encurtar.
Apanhei o eléctrico atrás dela, mas nem lá dentro me consegui aproximar, uma estranha reacção magnética impedia-me. Saí atrás dela, em Pedrouços, e seguia-a na direcção do cais. Perguntei na bilheteira para onde ela comprara bilhete e pedi um para mim. O destino era a Trafaria. 
Na Trafaria segui-a pela cerrada malha labiríntica do bairro dos pescadores, até ter entrado dentro de um pátio. A noite pusera-se. Uma noite de lua nova, escura. O pátio servia quatro casas e seccionava-o três compridas cordas com roupa estendida, mas apesar das luzes acesas e dos rumores das televisões ligadas não se via ninguém. Na casa da direita acendeu-se uma luz, era a casa dela. Esperei cinco minutos e a coberto dos lençóis e toalhas de mesa estendidos, confiado no negrume da noite, avancei.
As cortinas eram de musselina transparente, mas apesar dela tomar banho, numa tina de água, a sua nudez nunca seria comparável à de Valéria Messalina. Aquele corpo harmonioso não fora contagiado por ideia de volúpia; partilhava a inexplicável mansidão da banhista de Ingres. Escondido, sentia crescer em mim a dor cruciante de divisar uma roseira sem espinhos. Apetecia-me, em nome da humanidade, tirar desforço; derrubá-la, devassar-lhe as guaridas do corpo, semeando-lhe na sombra um desejo arrebatador, pegajosamente sexual. Mas algo me inibia, decididamente do meu contacto com aquela mulher indecifrável nunca se diria: «o velho bode lambe o sexo da cabra».
De repente levantou-se, embrulhou-se numa toalha, e desapareceu. Esperei algum tempo, nada acontecia. Só por curiosidade, encostei a mão à porta e, para espanto meu, ela abriu-se. Assomei a cabeça e, acabei por penetrar no corredor escuro. Não se ouvia vivalma, embora despontasse luz num aposento ao fundo do corredor. Entrei no quarto com a tina. Fui espreitar a água. Milhares de reflexos de olhos gulosos boiavam à superfície. A água que lhe escorria do pano molhado que comprimia nos ombros, limpara-lhe a pele da conspicuidade de uma tarde de trabalho, largava-lhe o lastro. Reconheci naquela alcateia de olhos ébrios de desejo os meus. E no meio, junto à menina do meu olho direito, boiava um pêlo castanho claro, de uma zona do corpo que me é particularmente cara. Meti a mão em concha e resgatei esse exemplar único. A mão tremia-me. Um barulho vindo do fundo do corredor fez-me abrir a janela de guilhotina e sair de um pulo.
Desde então, como Calígula, sonhei repetidas vezes que conversava com o espectro do mar. 

*Vavá, café nas Avenidas Novas, que foi o poiso certo da geração de cineastas dos anos 60
**Alberto Seixas Santos e Solveig Nordblund, dois dos cineastas dessa geração, que nessa altura eram um casal
***Trindade, a mais famosa e maior cervejaria de Lisboa
****Opinião, na rua da Trindade, antiga livraria e galeria, em vários andares e com bar no último andar, onde hoje fica a sede da editora Cotovia
*****Bar 25, um bar de peep-show e de streap que se localizava no rés-do- chão do edifício do Coliseu em Lisboa, e muito famoso em 75 e 76  


MELHOR MADRINHA DE GUERRA NÃO HÁ

Há uma prática dos Gabinetes de Atendimento às Mulheres e Crianças Vítimas de Violência Doméstica na polícia moçambicana que é no mínimo surpreendente.
 As vítimas, depois de três dentes quebrados, um olho arrombado e um braço ao peito, vão à polícia fazer queixa e esta, em vez de proceder ao acto, dá-lhes uma intimação para entregarem ao agressor.
Portanto, elas entregam ao marido violento a prova da sua delação.
Muitas delas depois não chegam a ter tempo de passar de novo pela polícia, vão directamente para o hospital.
É o que me lembra o comportamento de Mário Soares: depois duma campanha de corpo e alma ao lado de Sócrates, como musa pretérita, porque «aquele» era a melhor solução para o país, agora, declarou: o PS precisa de «ser refundado» e de voltar a`que «se leve a política a sério».
Esta gente não pesa as palavras?
Afinal, em crónicas políticas, em comícios, procurou o ex-presidente convencer-me de quê, durante a campanha eleitoral? A seriedade não era o que havia antes? Ele, que esteve iniludivelmente ao lado do seu camarada Sócrates, em comícios, com a mãozinha ao alto, a caucionar o candidato, insinua agora que o ex-líder do PS não levava a política a sério, e que desvirtuou o espírito do Partido?
O Sócrates lembra-me a incauta espancada que, fragilizada, de boa-fé, entregou ao Marocas a folhinha da intimidação.
Fica no ar a ideia de que Mário Soares estaria refém, e que, quinze dias depois, chegou o momento para “delatar” a verdade: depois do uppercut eleitoral, o Grão Fundador do Partido, aplica o nocaute psicológica.
Se o PS tivesse ganho as eleições punha-se do mesmo modo a necessidade de «refundar» e de voltar ao debate político «sério», isto é, a uma acção política não exclusivamente comandada pelo oportunismo e a necessidade de manter o poder?
Mário Soares mostra mais uma vez que é um sobrevivente mas o modo como quer tornar póstumo o seu tempo político às vezes, para ser simpático, causa-me um pastoso fastio.

sábado, 25 de junho de 2011

O MAL/ uma tradução inédita de Christian Bobin


Isto anda mesmo tudo ligado, eu tinha acabado de escrever, durante o longo tédio de vigiar um exame:
«A astúcia com que Perseu fez uso do espelho e do seu reflexo para ver a Medusa sem precisar de cruzar o seu com olhar petrificador da Gorgone, é ainda hoje o artifício através do qual olhamos o mundo. A televisão é o espelho de que fazemos uso. Mas esta esperteza encortiçou-nos o coração. Afastados do risco, habituámo-nos a prescindir da reciprocidade e da compaixão com que acolhíamos a dor alheia, e se isso nos permite sobreviver, por outro desmobiliza-nos, anestesia-nos a sensibilidade. Resta saber a que ponto nos aviltou a televisão, pois a cabeça da medusa, mesmo decapitada, transformava em pedra quem os olhava e isto prometia ser pela eternidade. Adivinharam, a cabeça da medusa continua viva no ecrã.
Temos de voltar a abordar de frente o monstruoso para, correndo o risco de nele nos perdermos, recuperarmos a vulnerabilidade que nos impele à coragem de agir face aos problemas, em vez de nos mantermos contristadamente informados sobre eles.»
Chego a casa e a Teresa (Noronha) passa-me esta tradução e pede, mete no blogue. Tinha lido o texto e sentiu-se incapaz de não o traduzir.
Eu, cada vez que torno a Christian Bobin fico abismado. Pela escrita, a um tempo diáfana e elaborada (ainda que não pareça), pelo ritmo das frases que se sucedem redondas como as ondas na praia, pela claridade que não teme as sombras nem nomear o mal; pelo encantatório que imprime a todas as páginas e que o torna para mim (mesmo em prosa) o grande poeta francês do momento.
Aqui fica pois o capítulo de L’Inespérée, traduzido pela urgência da Teresa (- estou lixado, isto vai dar namoro). E como ninguém escreve como ele, calo-me:


O MAL

Ela é suja. Mesmo limpa, está suja. E cobre-se de ouro e de excrementos, de crianças e de panelas. E reina por toda a parte. Ela é como uma rainha gorda e suja que já não tem mais nada para governar, tendo já invadido tudo e a tudo contaminado com a sua sujidade natural. Ninguém lhe resiste. Ela reina em virtude de uma atracção eterna pelo que é baixo, pelo negro dos tempos. Ela está nas prisões como um calmante. Ela está em permanência em certos pavilhões dos hospitais psiquiátricos. É nestes espaços que ela se sente em casa: não se olha para ela, não a escutam, deixam-na em baboseiras no seu canto, colocando à sua frente aqueles que não se sabe muito bem o que fazer com eles. Os dias, quer nos hospitais quer nas prisões, são mais longos que os dias. É necessário que passem. Fazem-na guardar os inválidos mentais, os prisioneiros, os velhos nos asilos. Ela tem infinitamente menos dignidade que estas pessoas, avassaladas pela idade, feridas pela lei ou pela natureza. Ela está-se perfeitamente nas tintas para essa dignidade que lhe falta. Ela contenta-se em fazer o seu trabalho. O seu trabalho é o de sujar a dor que lhe é confiada e aglomerar tudo – a infância e a desgraça, a beleza e o riso, a inteligência e o dinheiro – num único bloco vidrado e viscoso. Chamamos a isto uma janela para o mundo. Mas é mais que uma janela, é o mundo em bloco, o mundo como piolheira desatada, os detritos do mundo entornados a cada segundo na carpete do salão. Claro que podemos escavar. Encontramos por vezes, sobretudo nas primeiras horas da noite, as palavras novas, os rostos frescos. Mas se nas descargas é possível pôr a mão em verdadeiros tesouros, não serve de nada tentar repescar alguma coisa lá dentro, os caixotes do lixo chegam muito rapidamente, os que os manipulam são muito rápidos. Metem pena, estas pessoas. Os jornalistas de televisão fazem pena com a sua falta completa de inteligência e de coração – esta doença dos tempos que eles contraíram, herdada do mundo dos negócios, falem-me de Deus e da vossa mãe, têm um minuto e vinte segundos para responder à minha questão. Um amigo vosso, um filósofo, passa um dia lá dentro, na vitrina engordurada de imagens. Pedem-lhe que venha para falar do amor, e porque têm medo de alguma palavra que possa levar mais tempo, medo que ele chegue a algum lado (porque é necessário a todo o custo que não se passe nada de confuso e de desesperado) – quer dizer menos que nada – por causa deste medo convida-se igualmente vinte pessoas, especialistas disto e daquilo, vinte pessoas o que significa três minutos por pessoa. A vulgaridade, diz-se às crianças que está nas palavras. A verdadeira vulgaridade deste mundo está no tempo, na incapacidade de o despender de doutra forma senão como moedas, depressa, depressa, ir de uma catástrofe aos algarismos da inflacção, depressa depressa passar para as toneladas de prata e da ininteligência profunda da vida, do que é a vida na sua magia sofredora, depressa depressa corramos para a hora seguinte e que sobretudo nada aconteça, nenhuma palavra certa, nenhum espanto puro. E o vosso amigo, após a emissão, inquieta-se um pouco, porquê tanto ódio do pensamento, esta mania de triturar tudo tão fino, e a realizadora dá-lhe esta resposta, magnífica: estou de acordo consigo, mas é melhor que seja eu a estar neste lugar, porque se fosse outro seria bem pior. Esta frase recorda-me os dignatários do Estado Francês durante a segunda guerra mundial e na legitimidade que se atribuía aos virtuosos funcionários do mal: era necessário tomar conta das deportações dos judeus de França, isso permitia-lhes salvar alguns deles. A mesma abjecção, a mesma colaboração com as forças do mundo que arruínam o mundo, a mesma falta absoluta de bom senso: há lugares que é melhor deixar desertos. Há actos que não se podem cometer sem se ser imediatamente desfeito por eles. A televisão, contrariamente ao que ela diz de si mesma, não dá nenhuma notícia ao mundo. A televisão é o mundo que se afunda no mundo, um golfo de choraminguice avinhada, incapaz de dar uma única notícia clara e compreensível. A televisão é o mundo em horário completo, transbordando de sofrimento, impossível de ver nestas condições, impossível de entender. Tu estás ali, no teu sofá ou diante do teu prato, e atiram-te com um cadáver seguido de um golo de um futebolista e abandonam-vos aos três, à nudez da morte, ao rosto do jogador e à tua própria vida, já de si tão obscura, cada um largado no seu cantinho do mundo, separados após terem sido assim tão brutalmente ligados – um morto que nunca acaba de morrer, um jogador que não pára de levantar os braços, e tu que não deixas de procurar o sentido de tudo isso, mas já passou, já estamos noutro assunto, depressão na Bretanha, bom tempo na Córsega. E então’ então o que fazer com a velha golada de imagens, ávida de moedinhas? Nada. Não é preciso fazer nada. Ela ali está e não se mexerá nunca mais. Um mundo sem imagens é a partir de agora impensável. Haverá sempre jovens dinâmicos para as servir, para fazer os negócios sujos no teu lugar, no lugar de todos os outros, em nome de todos os outros. É preciso lograr que o baixo vá até ao fundo, deixar a decomposição orgânica do mundo prosseguir. Está quase a terminar, está quase no fim, não devemos sobretudo reparar no que se tolda – é melhor colocar uma base de tinta nas maçãs do rosto da morta. Deixar proliferar as imagens cegas: qualquer coisa vem à superfície, qualquer coisa vem ao nosso encontro. Existe na dor uma pureza infatigável, a mesma que na alegria, e esta pureza está em marcha por baixo das toneladas de imaginário congeladas. Enquanto esperamos, as imagens verdadeiras, as imagens puras de verdade encontram abrigo na escrita, na compaixão da solidão daquele que as escreve. Velibor Colie, por exemplo. Um escritor jugoslavo, que sem usar imagens belas, diz apenas o que vê, tão simples como isto. Ele relata um acontecimento passado em Modrica, na Bosnia Herzgovina, no dia 17 de Maio de 1992. E na sua forma simples transforma-o em algo que é eterno. Ele vê na singularidade de um lugar e de um acto o que há eterno no mundo desde o início dos tempos, o que te permite ler sem que a coragem desapareça, sem que tu te interrogues a dado momento: para que serve isto, e concede-te o tempo necessário para que a frase acabada de escrever entre no teu espírito, formando um sentido. Lemos: “O cigano Ibro ganhava a sua vida vendendo cartão, papel velho e garrafas vazias. Ele possuía uma carroça desengonçada e várias gerações de habitantes de Modrica ouviam nas primeiras horas do dia o célebre pregão “Transportes de todo o género. Carrega-se mortos e vivos”. Ele vivia numa estranha chaminé, numa rua próxima à Casa de Saúde. Tinha uma mulher surda-muda e um filho de quinze anos, débil mental. No dia 17 de Maio, quando a armada serva entrou definitivamente em Modrica, o cigano Ibro recusou-se a fugir, embora fosse muçulmano. Não tiveram piedade dele. Os soldados servos cortaram-lhe a garganta, assim como à sua mulher e ao seu filho e, como no “tempo dos Turcos”, plantaram as suas cabeças na paliçada da cerca à volta da casa. Segundo o que nos contaram testemunhas, ele tinha, sobre a mesa, no pátio, uma garrafa de raki e café acabado de fazer... Para acolher os militares, no caso de eles virem.” Ao lermos isto podemos ver tudo, ele, a mulher, o filho, a hílare jovialidade dos assassinos, as cabeças espetadas e o café ainda quente. A televisão talvez tivesse mostrado o café, mas insistiria sobretudo nas cabeças, com um prelúdio do género: “hesitamos em mostrar-vos”, e passariam logo adiante porque há mais coisas para mostrar: depressão na Córsega, bom tempo na Bretanha. E tu ficarias ali, sentado na tua casa de jantar, estúpido com as três cabeças em cima da mesa. Ao contrário, na escrita, está tudo – e a pureza trágica do tudo: a hospitalidade concedida aos assassinos. O mal da televisão não está no que a televisão é, está no mundo, e se os confundimos, é porque eles não fazem mais que uma massa perdida, sofredora. O mal do mundo está lá, desde sempre, no recusar da hospitalidade, primeiro fogo sagrado da história humana, antes mesmo do surgimento de Deus. É o mal do mundo e é o de que sofre a louca investida das imagens: não conseguir captar um mínimo da vulnerabilidade da dor, desconhecer as leis elementares da hospitalidade que mandam que se dê de beber a quem vem de longe. Eu distraio, diz a televisão, e há muito que deixou de nos fazer rir. Não se pode fazer cultura para toda a gente, diz a televisão, e não ousamos responder-lhe que não é um problema de cultura mas de inteligência, o que não é seguramente a mesma coisa. A inteligência não tem nada a ver com os diplomas. Ela pode andar conjuntamente com eles mas não é o seu elemento primordial. A inteligência é a força, solitária, de extrair do caos da sua própria vida uma mão cheia de luz suficiente para iluminar um pouco mais longe do que nós próprios – na direcção do outro além, como nós perdido no escuro. Eu transmito o sentimento, diz a televisão, e não temos a coragem de lhe mostrar o abismo que existe, entre o sentimento e a pieguice. Não sou eu, diz a televisão, ao fim e ao cabo é o povo, eu faço o que o povo quer – e não podemos senão calarmo-nos diante do analfabetismo grave da televisão e dos que a fazem. Na palavra do povo correm as mais belas expressões da língua francesa. Ela diz a falta e o entontecimento, a nobreza dos indigentes sob a incúria dos nobres. Fala exactamente o contrário do que diz a televisão. E por ora ficamos por aqui: a dor chega esfomeada nos braços da televisão que a enroupa imediatamente nos seus braços sem previamente a alimentar – escutar ou vê-la. Então ela volta a partir, a dor, e procura um direito de asilo na tinta antes de o encontrar um dia na igreja das imagens – porque tenho a certeza: um dia haverá um homem suficientemente inteligente para saber filmar uma garrafa de raki e um café acabado de fazer, e este homem aceitará tranquilamente perder o seu tempo, dizendo apenas o que tem a dizer e depois calar-se-á, porque por vezes é necessário calar-se para proferir a palavra justa – mostrando, demoradamente, simplesmente mostrar, calmamente, uma garrafa de raki e o café acabado de fazer.     
   

quinta-feira, 23 de junho de 2011

AS COISAS QUE IMPORTAM

mestre capone

                              para o Francisco Ferreira
As televisões anunciam: revólver
de Al Capone leiloado em Londres.
E eu em Maputo. Que falta
de pontaria para o destino!
Serei sempre como a figueira,
molenga, com uma alma
que é uma espelunca-de-aluger
e incapaz de frutificar a tempo de ter
as raízes pisadas pelo peso
das olorosas sandalinhas de Cristo.
Já perdi por um fio a guilhotina
de Robespierre, um tufo
da melena de Hitler,
uma sela marchetada a marfim
de Bush, o texano, um selo
exortativo da Grã Perenidade
de Mugabe e dois botões
de punho de Kadhaffi.
Só nos últimos 6 meses. É isto,
sem nada para deixar aos filhos.
Talvez um 123 para porem as farófias
no ponto, mas não é a mesma coisa.
A minha vida deslaça
sem que eu adira,
ainda que simbolicamente,
a um crime de monta,
uma crueldade com estardalhaço
digna de borrar de medo
a própria sombra.
Que tristeza ó minha mãe,
que me erodiste a ruindade:
eis-me um podengo do bem!
Uma revoluçãozinha, onde eu
pudesse fuzilar os refractários
e alguns poetas mais burgueses!
Chamava-lhes um figo. Hum!
Não há aí quem queira leiloar
esta minha incapacidade
para estar onde as coisas
que importam acontecem?
Eu vendo, por muito dinheiro!