sexta-feira, 19 de outubro de 2012

ENTRE SER HOMERO OU O PRESENTE / AO PINA



                                                   para o Pina

Já não versejo. Morrem os amigos,
a batida dos remos afastou-me para longe
e já não almejo a primavera. Pela margem,
seguem-nos os lobos - presas do susto
a quem demos o coração. À frente
reboa a catarata, ou dentro, já não sei,
porque a prata que abisma o sangue
nas cãs transpiradas ondula, assalta
as ameias da idade. Em crosta, a mão
impele os remos e os escaparates da cidade
ardem-me na lembrança – despeço-me,
neva onde Pompeia incandescia,
e glória e a humilhação são doravante
vãs. Quis ser cego como Homero
mas acua-me o presente,  e,
como do inferno, fujo da memória.

 


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

SYLVIA KRISTEL: DOIS DIZERES

                                        roubado ao ma-schamba, que a roubou ao Helmut

                                                                         para o José Flávio Pimentel, que nunca a viu
 
 
A Sylvia Kristel devia ter sido a Miss Pêssego da Europa e ter o seu túmulo em Tomar, junto dos templários. É a minha petição.
Em tempos escrevi, por causa da morte de um amigo:

«A morte, uma fraude mais infalível que o Papa,
despenhou-o nas suas capelas imperfeitas.
E mentiu-lhe: essas abóbadas não são
as da Sylvia Kristel da nossa adolescência,
 
nem é sedosa a unha que lhe greta a pele»
etc., etc. - mas o essencial estava aqui, porque eu e ele vimos juntos três vezes o Emmanuelle.
 
Mas o melhor é dar o passo a quem a conheceu biblicamente e com ela teve um filho, Hugo Claus.
Não sei se ele escreveu este poema exactamente para ela (não foi, o poema pertence a um ciclo que se chama “Em Jeito de Despedida”) mas o ano de edição anda muito perto do período em que ele a conheceu e tentou a sua sorte, apesar de os separarem vinte e cinco anos, e além disso assenta-lhe, porque mais difícil do que apanhá-la seria mantê-la. Aliás, Sylvia abandonou Hugo uns anos depois, trocando-o por um actor da sua idade. Mas vamos ao poema :

 
EM JEITO DE DESPEDIDA

 
7

Dizem “está cego pela gaja!”.
Pode bem ser.
 
Ainda que muitas vezes o ar fique turvo
se quero agarrar o que murmuras

e amiúde resfrie o ânimo na tua boca
enquanto te beijo.

Tu dizias: “Deixa-me ser a tua puta!”
E eu: “Que sou eu, então?”
E tu: “Tens três chances…”

Eu adivinhava: um segundo de palha,
um desejo, uma possibilidade.

E sabia: um faroleiro famélico,
um sótão a abarrotar de trapos,
não, uma orgia na casa de penhores.

E para os outros (não eram assim tantos),
uma carocha
a debicar freneticamente nos seus anos loucos,
umas descabidas cócegas – peu-être um novo fôlego.
 

terça-feira, 9 de outubro de 2012

RETRATOS QUE NÃO TÊM FEBRE NEM ECOS



É um dos poemas mais belos e simples que me tem sido dado ler nos últimos tempos. É do americano Robert Creeley e surpreende pelo achado e pela estrondosa verdade que nele se reflecte a partir da observação duma singularidade na natureza. É um daqueles poemas que se sente não ter sido inventado mas que irrompeu “por si mesmo” e que a faculdade de Creeley foi ter sabido aceitar a sua oferenda, sem querer acrescentar nada, na sageza de saber que muitas vezes um limite é, ao contrário do que parece evidente, uma condensação. Nem sempre é assim, mas quando acontece dá nisto:  

AMOR

A coisa vem
por si mesma
                      (Olhe para cima
e repare
no gato e no esquilo,
                                aquele
rasgado, uma coisa vermelha,
             este
de alguma maneira imaculado
 
Uma das razões porque resulta, tal como resultam os haikus, é porque se laboram a partir de coisas concretas que, numa arte combinatória inesperada, enfatizam sentidos ou um fluxo novos.
Como lembra Creeley, em entrevista: «A “Literatura” não é, definitivamente, amiga da poesia nem o são os géneros e muito menos as tentativas de se colocar condições abstractas entre a arte e as suas pessoas». O que o leva a rejeitar o engodo das ideias, no verso e na vida:

NOVO MUNDO
Terra edénica, pessoa adâmica –
tolice é o preço que você terá de pagar
por esta inútil sabedoria.
              (tradução de Régis Bonvicino)
 
e a devolver o seu a seu dono:
O HUMOR

É tão frágil o humor
como aparenta querer ser,                                                      
vento correndo no mar, árvores
galgando ao vento e à chuva.

Coisas simples, como os retratos que não têm febre nem ecos.

Ψ 

Maltrato os livros. Ponto. Abarroto-os, nas margens, de sublinhados, redigo as páginas em branco. Não há centímetro que escape. Na última página de um livro brasileiro – o precioso Poesia- Experiência, de Mário Faustino, descubro estas duas quadras grafadas a lápis:
Também eu, um cemitério odiado pela lua,
também um sol moribundo que s’encripta:
no último arquear do arco:
também eu confundo o eco e a vala comum.

E este outro mimo:

Absoluta reclusão, a do veleiro
à chuva – frágil lâmina
que a carne azul engolfa e inebria
martelando-lhe peito e proa.

A única explicação é que nesse momento estaria a ler Augusto dos Anjos, ou estaria a andar de chapa com um famélico tuberculoso a tossir ao meu lado.
Hoje sinto-me um bocadinho mais optimista e menos antique.
Riam, riam, meus caros, nem sempre um poeta se agasalha confidenciando que é um cabotino. Só em dias ímpares.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

NA TERCEIRA MARGEM DO LIVRO



No segundo número da excelente Duas Margens, revista de livros on-line (http://duasmargens.pt/), capitaneada por uma anti-troika de firmes e ecléticos saberes: João Guardado Moreira, Vítor Quelhas, e Carlos Pessoa, destacarei a longa e saborosa entrevista com Carlos Araújo, editor com 45 anos – repito, 45 anos – de amor à causa e que esteve por trás de tantos sucessos da D. Quixote, Sá da Costa, Edições 70, Terramar, Teorema, e Asa - um cardápio de peso.

Às duas por três perguntam-lhe «o que é para si um editor?». E o Carlos Araújo responde: «Tem de haver paixão pelo livro.  Ser editor não se “transmite”.  Ou se tem, ou não se tem. Não há cursos que “façam” um editor. Tenho quarenta e cinco anos de editor, sempre com uma intensidade e rigor que vejo pouco hoje em dia. Praticamente já não há editores, porque os verdadeiros editores estão mortos. Temos vindo a assistir ao desaparecimento daquilo que para mim ainda é a figura do editor. O Lyon de Castro (Europa-América) foi um grande editor, tal como o Joaquim Magalhães (Ulisseia), o Rogério de Moura (Livros Horizonte), o Manso Pinheiro (Estampa), o Augusto da Costa Dias (Portugália). E o retirado Francisco Espadinha (Presença), mais um ou dois.
O que se está a assistir é a substituição do editor pelo gestor. A qualidade deu lugar à quantidade.»(…) e mais adiante, refere: «Quanto aos grandes grupos editoriais, parece-me que a coisa vai começar a desintegrar-se, e vai começar pela Leya. Posso enganar-me, mas tudo isto está a ser uma miragem, porque o capital investido é meramente especulativo.»

Tornava-se urgente que alguém com a autoridade moral do Carlos Araújo viesse dizer, preto no branco, que o «rei vai nu».
De facto, o «negócio» dos livros é realmente especial porque envolve a «coisa humana» e os afectos e isso faz a diferença na forma como se transmite um livro. Porque um livro transmite-se, como a gripe, não se vende (a venda de um livro é um feliz efeito colateral do acto de contaminação). Quando unicamente se vende é porque não constitui uma experiência – nem para quem o faz, nem para quem o adquire. E todas as não-experiências são descartáveis.
Afastado do país há sete anos, tenho tido as mais nefastas experiências quanto ao meu relacionamento com editoras e editores a uma distância de 10 000 km e com prejuízo evidente para a visibilidade dos meus livros. Exactamente porque não tenho encontrado a corrente de afecto que torna o livro e o contacto necessários e que criam o primeiro elo de uma corrente entre os leitores e os autores, dado que o editor começa por ser primeiro um leitor. Se o primeiro leitor que o editor é está entusiasmado então isso reflecte-se no seu acto de partilha com o leitor; se o livro tem atrás dele um gestor que nem lê e que unicamente se preocupa com as letras em relevo e em dourado da capa o livro parte orfão para o mercado.  

Hoje não há um mercado de livros em Portugal mas sim uma delapidação de títulos. E esta não tem em conta o ritmo de sedimentação que um livro exige para se impor verdadeiramente como referência ou âncora. Os livros sucedem-se vertiginosamente nas montras e nos expositores, sendo que a lógica que preside a esta rotação acelerada é a estúpida ideia de que todos os livros têm de ser ou best-sellers ou carne para o canhão da guilhotina. Num fluxo de edição próprio da fórmula um, cada livro apenas atropela o anterior, enquanto põe a prazo a sua manutenção na pista - raros chegam à meta, a qualquer meta.
Em 2008 saiu o meu último livro de ficção que teve edição em Portugal: Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo, pela Teorema. Coitado do livro, saiu precisamente na altura em que a editora se passava para a Leya e nessa passagem de testemunho o meu, e com certeza os demais saídos na mesma altura, foram absolutamente abandonados. Mas enfim, vi montes de livros à venda nos hipermercados e Fnacs, antes de voltar a Moçambique e entretanto saíram 4 artigos nos jornais, todos laudatórios, apesar do desinteresse da editora. Dois anos depois, a Leya, mandou-me, a meu pedido, um relatório de vendas: 70 exemplares. O que me parecia impossível, a não ser que a editora tivesse aceitado a devolução de todos os livros “vendidos a firme” – prática que se tornou um cancro no ramo. Mas, a ser verdade, algo falhou na cadeia comercial. Não foi o autor, que fez um livro elogiado por quatro críticos diferentes.

Inconformado, por altura da saída do filme Tintin, de Spielberg, que foi um êxito em Portugal, voltei a contactar a Teorema, na pessoa de quem havia substituído o Carlos Veiga Ferreira, e argumentei que seria a ocasião para relançar o livro, era uma boa boleia. «É um livro muito antigo para as livrarias…», respondeu-me o senhor. Lembrei-lhe que podia por exemplo recapar, com algumas frases extraídas da crítica, já que a edição só tinha vendido os míseros 70 exemplares. E aconselhava-o a consultar os recortes sobre o livro e a reler dois ou três contos, para ver se o livro tinha ou não potencialidades de venda. Não obtive qualquer resposta.

A questão que então se me colocava era, mas será que o verdadeiro negócio destes senhores é livros, ou isto é apenas um álibi para outra coisa - porque ele não manifesta qualquer interesse em comercializar o livro? É que a ocasião do Tintim voltar à crista era de facto única. Parecia-me como se um cego treinasse uma equipa para deixar no banco o Eusébio e o Cristiano Ronaldo.
Pela mesma altura o Carlos Alberto Machado enviou por mail um manuscrito a uma editora grande e recebeu, um minuto depois, uma resposta automática: «De momento não estamos a aceitar manuscritos». Coisa bizarra para uma editora, como se o mesmo treinador cego, para além de deixar no banco o Eusébio e o Cristiano, tive uma alergia a golos na baliza contrária. Porque como saber se o manuscrito é merecedor de rejeição ou se é o «tal» livro que procurávamos para os 200 000 exemplares vendidos numa semana sem lhe dar sequer uma espreitadela? É absurdo. Voltei a ficar baralhado com o de que vivem afinal estes novos editores, e suspeito que o editor esperto que não queria ser incomodado e instalou esse dispositivo electónico no seu mail é um competente causador de naufrágios, em nome da gestão.

Até que quinze dias depois li na imprensa que esse editor e uma meia-dúzia de outros haviam sido dispensados da Leya.
Com o meu romance A Maldição de Ondina, que foi aceite no Brasil numa semana e que foi recentemente nomeado para finalista do Telecom/Romance, tentei também bater à porta da Ulisseia. Deram-me boas referências do editor, que fizera parte do núcleo fundador da Cavalo de Ferro – o que para mim era uma dica muito favorável – e contactei o senhor. Antes de haver o tempo para uma resposta qualquer li de novo pelos jornais que o editor havia sido dispensado pela Babel – provavelmente por não apresentar resultados convincentes de vendas. Podia ao menos ter-me mandado um mail a explicar a situação, pensei. E fiquei sem interlocutor.

Porque esta é outra questão importantíssima na relação editor- autor: quem é o interlocutor? Com quem falo, de quê, para quê, com quem partilho empatias ou antipatias, com quem falo de futebol, projectos e de literatura, ou mesmo tecnicamente do livro?
Na Porto Editora pediram-me que fizesse uma versão light do meu romance A Maldição de Ondina. Julgo que a verdadeira razão era política, tinham receio de que o livro melindrasse os responsáveis de um país onde têm alguns negócios. Quem habita em Moçambique sou eu, mas o receio era deles. Mas a desculpa era técnica: não era livro para o «leitor médio». Eu sou um narrador, não tenho nada de um criador experimentalista, em mim pode o tema, unicamente, ser mais ou menos duro, e por isso me pareceu bizarra a consideração de que o livro não era indicado para o «leitor médio», obstáculo que, entretanto, não me tem sido referido por nenhum leitor.
Mas este jargão técnico esconde outro facto: hoje já não é o gosto ou o afecto que permeia a escolha dos livros mas a imposição de um maior denominador comum não-cultural como expressão para os livros.

Um autor que exiba um estilo pessoal e use um maior espectro lexical é imediatamente considerado um caso para engavetar na escrivaninha dos nichos. A diferença, que ontem era uma marca, hoje é um defeito para os novos editores. Por isso sobrevém-me demais a sensação de estar sempre a ler o mesmo livro, escrito por um notário para candidatos a notários.
Também tenho, à distância, a sensação de que a Leya está por um fio. Dizem-me que neste momento não paga a muitos autores nem a tradutores. Isto podia ser só boataria. Mas quando eu compro na rua em Maputo livros de uma colecção da Leya em que já se confundem todos os catálogos interrogo-me como podem as editoras que a compõem sobreviver se a casa-mãe lhes faz concorrência desleal? É como dar dois tiros em cada pé e depois ordenar ao corpo: corre.
Boas ideias de gestor em pânico, pois.  
 
         Carlos Araújo: um magnifico editor numa entrevista muito recomendável