sexta-feira, 28 de junho de 2013

PEQUENO TRATADO SOBRE O (MEU) RACISMO E OUTRAS MINUDÊNCIAS

                                                                           man ray

Recuperei hoje um disco externo que julgava perdido e achei lá vários textos de vário género e feitio que não armazenava em mais nenhum lugar. Aqui deixo três, o esboço de um poema, um esboço para um pequeno ensaio de estética e uma crónica sobre os meus rubicundos preconceitos:


CORPOS NO VERÃO, CORVOS NO INVERNO

1

Imaginemos-te empenhado num duelo de esgrima. Se no tinir das espadas te assalta a dúvida sobre se terás nessa manhã, antes de saíres de casa, regado as begónias, a resposta não chegará a tempo de impedir o ferro de te atravessar as tripas.

Tantas coisas que te atormentam são só a montanha russa com que os teus fantasmas se divertem, aqueles que existem porque tu insistes em familiarizar o mundo com a tua irrealidade, em achar no vento uma cabeça

onde possas encaixar o teu chapéu cónico de palhaço rico.

 

2

A brecha entre as nuvens,

duas brechas entre nuvens,

o azul que flui pleno como um cetáceo

uma nuvem isolada e a esgarçar-se

grisalha como uma lágrima:

tantos adereços que o tempo

mobiliza para ser.

 

3

Corpos de verão, corvos de inverno:

só o ar admite a corporeidade.

Entretanto, o pior de tudo

é não habitar num mundo físico.

Cresce a árvore

para o laço

em que se enforca?

 


PEQUENO TRATADO SOBRE O (MEU) RACISMO


Todos os dias exalo impropérios e vomito dejectos racistas. Graças a Deus que os não engulo, tanta peçonha far-me-ia mal!

Vomito os dejectos, o muco, as excrescências que o meu organismo fabrica, incapaz de evadir-se a pensar: "a grunhisse deste gajo!", ou de atentar na melancólica estupidez de outro.

Que os menos estultos me perdoem, até porque aceito a intrusão destas manobras com resignação. Não com essa comiseração que aveluda os passos dos mais cristãos, mas como espinhos que assinalo mas não perco tempo a pisar. Embora peça a Deus ou à entidade supranumerária que rege os atropelos humanos que não me abstenha nunca de manter esta vigilância sobre os empedecidos.

O meu racismo não se dirige à cor da pele. Aí estou bem com o mundo. Quem me vê no chapa sabe que eu passo a vida a cantar, que tenho as glotes inflamadas de tanta cantoria, sendo-me igual a cor dos meus parceiros de infortúnio.

Era num pardieiro que se representavam as peças de Shakespeare, ponto. O que me atormenta é que na época toda a gente as percebia e hoje os senhores editores dos jornais as achem peças de relojoaria para mentes eruditas.

A estupidez que os embaça é que me embaraça. Foi essa a maior lição da minha infância: nenhum bicho de seda degenera em verme atolado pelo peso dos seus excrementos. A maleita que os atinge transforma-os em borboletas. É-me inatingível que possa entre os homens ser desigual.

Aquilo que mata a humanidade é o seu apego à estupidez e ao comezinho gosto que faz das tripas uma gala. Nada me move contra as tripas à moda do Porto e um bom resmoneio intestinal ou um flato seguro de si, largado na hora certa, soam-me a carrilhões de Mafra.

O que me arrasa os nervos é as pessoas agarrarem-se a essa parte de si, a esse efeito, como se se tratasse do todo – essa desistência volver marca de identificação.

Continuo a invejar a graça com que o meu amigo de infância enchia os baldes de água em proporções variáveis e depois baixava as calças para, numa flatulência corrigida pela melomania, tocar os primeiros acordes do Danúbio Azul. O que se me antolha, pecaminoso, é que aos 50 anos esse truque delicioso seja a única coisa que o distingue, incapaz de ler um haiku ou de discutir comigo a luminosidade de uma peça de Koltés.

Ele não se interessa!
 
São poucos os que realmente se interessam! Por exemplo, toda a gente se interessa, mas, ah, a tenacidade com que os leitores de poesia não compram os livros!
Eu sei, já editei. Já enterrei o dinheirinho neles! Nos livros.

Tenho sido um sucesso de estima. Estou com o lombinho cheio de pancadinhas nas costas. Não vendo um livrinho. E agora as editoras de poesia publicam: cem livros. Ou já não há economia de escala, ou à frente das mesmas só estão insensatos. Não sei se me consola saber que a coisa não é só económica: há caroços de azeitonas que medram e outros não. Bons caroços passam-nos às vezes ao lado da vista.
Há que aceitar que às vezes o fluxo das dinâmicas sociais não nos abarca.

Falo da estupidez que era previsível mas não era inevitável. Da preguiça que torna xistoso o cérebro, da suficiência – é um exemplo – com que os jornalistas se agarram aos factos para lerem o mundo como uma panela de pressão de que eles só descrevem o apito; afadigados a demonstrarem o seu perpétuo descomprometimento.

Merda para a imparcialidade dos jornalistas, merda para o bom gosto com que se entregaram à tarefa de demonstrar que o mundo se descreve mas não se transforma!

Fiz parte de um descoordenado júri para avaliação de candidatos ao ramo de encenação, num curso de teatro. Sugeri a todos: dão-te um palco, um surdo e um telefone: que tipo de peça fazes? Votei naquele que respondeu imediatamente, «…substituía o telefone por um atendedor de chamadas e fazia uma comédia política. É essa a condição do político, continuou, estar surdo à realidade, por isso se ouvirmos os incessantes apelos da ou à realidade que lhe chegam de fora e as soluções que a sua bondade congemina, os seus planos de acção, o contraste não pode ser maior…».

Esta capacidade de improviso, esta capacidade de relacionar tudo com tudo, esta imaginação - eis que devia ser exigível a cada jornalista e não a circunspecção com que lê como um dactilógrafo o teleponto ou que faz copy/past para nos embuchar de notícias.

Merda para os conteúdos que não nos comprometem.

Merda para a abjecção de aceitar como lobo o destino do homem.

MERDRE, diria o Jarry.

Eu nasci para tropeçar milhentas vezes até me pôr em pé. As cicatrizes das minhas quedas são as escamas das minhas asas de mariposa!

O resto é a abominável bondade com fui resvalando para a mentira, a facilidade com que fui deixando que apodrecesse tudo à minha volta porque me esqueci do primeiro lema para a potabilidade do homem: Nenhum medíocre é inocente!

Tornemo-nos prontamente racistas para com os medíocres! Merdre!

Igualmente, me enfadam de morte os melancólicos. Os faustosamente melancólicos que me perdoem, mas alegria é fundamental!

Julgo, como o Christian Bobin, que a melancolia é um dos pecados capitais!

Nenhum bebé ressuma melancolia. Mesmo Idjha, de O Inquebrável, que nasceu com os quatro membros partidos não tinha pingo de melancolia, era antes de um furor inabalavelmente ressentido. Troco um melancólico por dez ressentidos.

Há que resgatar a paisagem dos melancólicos!

Estou farto de paisagens melancólicas, de temperamentos melancólicos, das capas melancólicas da Assírio & Alvim (mudem uma vez na vida, rapazes), das capas da ECM, da onda que atingiu a poesia e que me faz lembrar um juízo de Beckett sobre um livro de poesia que lhe fora apresentado: é muito bom, mas plat (liso)!

Há sete anos que saí do país, e de cada vez que volto há um cemitério novo no lugar de um amigo, uma incombustível falta de tempo para tudo (só o tempo é combustível, não é?), um rameloso espectro que com voz cavernosa me anuncia: esta merda está uma caos, não voltes!

O drama é que está uma merda por todos os lugares, merdre! Mas que me atordoa o sentimento de que a culpa é nossa e não fazemos o bastante.

Eu não fiz o bastante para sacudir à minha volta o esterco – merdre!

Assim que for primeiro-ministro despeço-me, de panhonhas tou eu farto!

Que má raça a minha!

 
O PORO NO CIRCUITO

O actor na actuação abre o circuito, o Poro, por onde passa «o afecto», esse elo que o torna indiviso consigo (porque está presente a si) e com os outros.

É como no símbolo que tem duas metades que é preciso reunir para que se cumpra e reactive. Só "dando" a sua metade se completa o circuito e se conecta a energia da sincronicidade: aí reactiva-se a revivescência.

A revivescência do afecto, isto é a cadeia da sincronicidade que activa:
A presença a si
A presença de si para os outros
A presença dos outros num jogo que os torna participantes do uno, isto é conectados a si e aos outros simultaneamente.

Esta revivescência colectiva não se confunde com a revivescência em Stanilawski porque esta é redutora, no sentido em que a dimensão psicológica só serve ao actor separadamente e não o habilita a abrir o circuito, o Poro; é como meio passo, falta-lhe a outra perna para a simultaneidade;

só quando muda a representação em dança, ou seja na passagem duma memória reactiva da emoção para o nascimento de um outro gesto e de um outro ritmo apoiados no agora da sincronicidade, é que a comunicação se torna expressiva.

Um peixe não se identifica consigo mas com o cardume, é o que dá simultaneidade de movimentos ao cardume. O processo do actor deve ser o mesmo: abrir-se ao circuito do afecto que é o ser-por-conectação-ao "indivisivo plural" que é o colectivo.

Representar é, paradoxalmente, abandonar todos os nós da interpretação (ainda apegada à memória) para abrir o circuito dum Poro (um instante onde se dilui a separação entre fora e dentro) onde o actor está indiviso em si e simultaneamente tecido com os outros; aí desencadeia-se outro tempo, o "pulsar" a que aludia Grotowski.

Para a compreensão desta qualidade de ser indiviso é que se coloca a pertinência de associar o teatro ao ritual.

Passando do teatro para a ontologia.

No quotidiano, na vida, a maior dificuldade está em falarmos com "os vivos", a partir do agora, do estar-aqui. Somos condicionados para
alisar abstractamente com conceitos as rugosidades, o irisado, da face do real
projectar modelos pré-fabricados sobre os acontecimentos, o que nos obstrui os Poros
anular o presente com as expectativas quanto ao futuro
cair na armadilha de substituir a tríada: instante (a intensidade)-agora (o eterno presente)-incondicionado (a duração), pelo passado-presente-futuro

Para Platão o tempo era o que se tornava visível quando o infinito se movimentava, o que está nos antípodas da dualidade finito-infinito que se veio a instalar no pensamento conceptual posterior.

O Tempo é a deslocação do infinito a correr os cem metros e não a unidade de medida mecânica que permitiu a construção dos relógios. Por isso o tempo psicológico sai dos bordos da medida mecânica: é um entrosamento do vivido e não algo objectual, fora de nós.

Ao desconectarmo-nos com essa qualidade do tempo vivido perdemos a capacidade de ler as sincronicidades e ficamos exilados do "agora". Daí que os budistas refiram que o estado búdico é vivenciar a cartografia do agora, reactualizar o agora, estar indiviso. Eu quando como como, quando bebe bebo, quando pinto pinto, quando fodo fodo, respondeu um monge budista quando lhe perguntaram o segredo para ter atingido a beatitude.

Nós somos criaturas permanentemente despejados do agora, devoradas por fantasmas e representações; dominadas pela comunicação reactiva do alter-ego, divididos pelas solicitações com que os simulacros do desejo nos confundem, manietadas a um ponto que perdemos o contacto com o fluxo profundo da nossa natureza indivisa.

Grotowski dizia que para "representar" basta deixar de representar, ou seja, que há um descasque fenomenológico a fazer para nos restituirmos à unidade.

O papel nefasto da comunicação instrumental, a função dos fantasmas e dos mortos, é dividir-nos, afastar-nos do afecto que nos reconduz à experiência do indiviso.

O papel da arte, o trabalho da expressão criativa, é a tentativa de absorver a realidade de todos os seus lados, abrindo-lhe um Poro por onde volte a passar o afecto, o elo que re-liga, como nos símbolos.

Por isso a Poesia, ou o Teatro, não são uma fuga da realidade mas uma fuga para a realidade, como dizia Mário Quintana

quinta-feira, 20 de junho de 2013

COM A MORTE EMBUTIDA, SAIU À RUA




O Minie morreu. O hamster das minhas filhas. Tão feio e estúpido como um pingo de sorvete de chocolate numa camisa vermelha. Elas ficam num pranto diante daquela carcaça de pernitas cruzadas, que parece ter descoberto a oração. Está bizarramente espalmado o bicho, é caso para perguntar se lhe extraíram a caixa torácica, viro-o de um lado e de outro à procura de um furo. Nada. Um enigma que talvez justificasse uma autópsia.
Há duas horas estava vivo, lacrimeja a Jade. Há uma hora estava vivo, reforça a Luna. Estava vivo há meia-hora, confirma a empregada e acentua, até vi que não tinha água.
Agora está embutido, as patitas em prece, o hamster das minhas filhas, que nunca viu Bruges como o hamster de Hugo Claus, mas que era mais mexidinho que os céus de Hans Memling e agora é o hirto selo de uma carta que ninguém quis escrever.
Coube-me enterrá-lo. Peguei numa folha onde a Jade havia desenhado um barco à vela e fiz dela uma mortalha. Acomodou-se no bolso do casaco. Saí.
Hoje vou de tchopela, o Minie merece a deferência, pensei, antes de, num impulso me atirar para dentro de um chapa. Com o que poupo bebo cinco copos de cerveja em sua homenagem…

Cá estou na Garajinha com os amigos, na verdade vim buscar um toner na loja de informática do prédio ao lado mas aproveito para cavaquear  um pouco com aquela trupe de homens curtidos pela febre e o álcool e uma gama de sonhos represos. E talvez aparelhar o barco à vela com um corpo embutido no porão, pois o Zé Tomás é capitão da marinha. É o que me dá pretexto para abrir o sudário e depositar “o presente” a meio da mesa - o que desencadeia comentários e risos.
Foda-se! – clama um deles – Este gajo é louco!
Explico que é o Minie, o seu fermento no humor das crianças,  e faço-lhe a crónica biográfica:
O gajo mais cagão que vi na vida, assim que ia para a mão delas, era um ver se te avias, bolinhas pequeninas, felizmente inodoras…  
O da minha filha, ela deixou-o cair da janela do nono andar, duas horas depois de o ter recebido… - atalhou o Tucha.  
Não consigo sentir nada diante de um rato morto… - atira o Zé Cabral, com um ademane que endereça ao bicho defunto.
Nem asco dá… - retorquiu o Rui.
Também não é preciso exagerar...- ameniza o Cabral - isto é uma escória, nem chega a ser um rato a sério… Lembram-se daquele conto muito bonito da Carson MacCullers, «Uma Pedra, uma Árvore, uma Nuvem»? Lindíssimo na literatura, nunca fui capaz de amar uma pedra… nem um rato. Nunca cheguei aí, fico-me pelas pessoas…
É como eu… - reiteira o Zé Tomás - Razão tinha o Kok quando dizia que preferia fazer retratos a paisagens porque uma nuvem não ri…
Até onde nos leva um rato morto… - diz o Rui, divertido, enquanto a palma da sua mão desenha espirais ascendentes.
Hum, emenda o Cabral, é só por causa das tuas filhas, para mim um rato morto é igual a outro rato morto, isto é nada… ainda por cima este era feiote, nem para decoração servia…
Também um rato não é um abajour...- contrapõe o Tucha.

No respeito pela morte pago uma rodada, fazemos uma libação, batemos os copos e brindamos em uníssono:
Ressuscita, cabrão!
Porém, o rato que, com o transe embutido, pela primeira vez saiu à rua, permanece impávido, determinado.
Mesmo à distância ouvimos o pranto das miúdas e todos eles, à vez, lhes telefonam com palavras de circunstância, as únicas que conseguem cerzir os mantos rotos da emoção.
O Rui quer sacudir-lhes a tristeza com uma piada de ocasião e diz:
Olha, olha… um canito a rir e um elefante a chorar… - alusões que as ofendem. Teremos agora de marcar uma cerimónia de reconciliação com o tio.
E bebemos mais uma em silêncio, a mirar a estranha simetria daquelas patitas em prece.
Já chega, não? – casquina o Cabral, antes de se levantar, pegando no cadáver – Dá cá esta merda… - encaminha-se para a casa de banho e enfia-o pela banda móvel do caixote de alumínio que se dispõe debaixo da bacia, ao lado da porta.
Assim não… - protesto, quando ele se volta a sentar…
Que queres tu, queres embrulhá-lo de novo no papel e que escrevamos Minie adoro-te, antes de assinarmos todos? Ainda não bebi o suficiente para tanta ternura… - reage o Cabral.
Isso não… mas podíamos ao menos depositar uma flor… - sugiro, vendo pela montra que se aproxima um vendedor de rosas.
Isso resolve-se… - diz o Zé Tomás que vai imediatamente lá fora comprar uma rosa vermelha, que obriga o jovem vendedor a borrifar - Estás-me a dever vinte paus… - atira quando entra, encaminhando-se no acto para o caixote de alumínio, em cuja banda enfia a haste da rosa… - Está bem assim?
É bonita a rosa, é grande… - anui o Cabral.
Digna de um Alexandre Minie… - completa o Rui, sorrindo.
O Zé Tomás senta-se, dá um golo na cerveja, antes de sentenciar:
A mim lembra-me uma couve…
A conversa inclina-se perigosamente para a facilidade com que a vida põe um pé na pedra musgosa e cada um quer atropelar o episódio de uma morte macaca com uma história ainda mais improvável, numa galhofa a cujo pico naturalmente se sucede um momento de laconismo.
É aí que entra o pintas. O fato preto às riscas cinzentas e uma camisa rosa choque, de colarinhos largos sob um bigodinho aparado.  Pede um café ao balcão e vai para o espelho que adorna a parede da bacia aparar o cabelo, acachapar arestas na cabeleira redonda, encarapinhada.
Toca o telefone e ele atende enquanto, com os dedos molhados, amacia o bigode. Fala em voz alta, incapaz de conter-se:
Minha dama, saudade… Ainda ontem pensei em ti… Onde estou? Estou no job… Mas se a minha dama precisa, falo com o chefe… nem preciso, o man sabe que sem mim nada anda… Nice… - alteia a voz – nice, então daqui a meia-hora em tua casa… Darling…
Bebe o café num sorvo ao balcão, e é então que repara na rosa. Paga o café e nem hesita, vai apanhar a rosa, parte-lhe o pé num gesto e encaixa a rosa no bolso do lenço no casaco – o sorriso tão fragrante como o vermelho contra o rosa. E sai triunfante, atirando-nos uma langorosa Boa tarde.
O Zé pergunta, inquieto:
Vocês viram? Tinha uma gota de sangue no espinho do caule…
Ficámos transidos, pois víramos todos.   
Foi nessa altura que o Tucha nos tirou aquela foto.





quinta-feira, 13 de junho de 2013

DE ADONIS: UM CHEIRINHO



Um dos projectos que desenvolverei nos próximos tempos é uma (duas?) antologia de poesia africana. Do Magrebe à África do Sul. Por isso em algumas navegações na net deparei com um número da Courrier, da Unesco, com um entrevista a Tahar Ben Jelloun, que será um dos poetas que traduzirei. Mas o que li surpreendeu-me. Dizia ele, a propósito de grandes nomes da poesia árabe, que não aderia muito à poesia de Adonis, sírio, porque lhe parecia demasiado racional. Os homens nunca deixarão de me espantar. Seremos sempre os literatos de alguém, de vera incandescência romântica.

Bom, de Adonis recebi, por mão amiga, a antologia que dele saiu no Brasil, traduzida por Michel Sleiman (Companhia das Letras, 2012), que achei boa. Adonis, de quem tenho, felizmente, vários volumes, foi sempre um poeta que quis traduzir. Enquanto não o faço aqui deponho fragmentos e alguns poemas provindos desta antologia brasileira.

Atentem na extraordinária Celebração de Beirute, 1982.

Entretanto, para quem ainda não tiver percebido que, apesar dos media e da internet,  existem vários mundos de facto diferentíssimos, e como a queda da Europa pode trazer-nos (a todos) mais dissabores do que aleluias, transcrevo o que aconteceu a Adonis em Amã, em 1990, durante uma celebração duma Intifada palestina, onde leu um poema: «foi acusado por estudantes universitários de cometer blasfémia ao ler os versos “não sabe que deus e o poeta /são dois meninos e dormem na face das pedras”». E dali saiu vivo por pouco.

 
                                       (fragmento)

Nasci e nasceu comigo o deus do amor
- que fará o amor quando eu me for?

 

 CANÇÕES PARA A MORTE

1

 
A morte quando passa por mim é como se
o silêncio a abafasse
é como se dormisse quando eu dormisse.

 
2

Ó mãos da morte, alonguem meu caminho
meu coração é presa do desconhecido,

alonguem meu caminho

quem sabe descubro a essência do impossível

e vejo o mundo ao meu redor.

 

 
CAMINHO

Caminho e atrás de mim caminham as estrelas
até seu próximo amanhã

o segredo, a morte, o que nasce, o cansaço

amortecem meus passos, avivam meu sangue.

 
Não iniciei a trilha, ainda

não vejo nenhum jazigo

caminho até mim mesmo, até

meu próximo amanhã

caminho e atrás de mim caminham as estrelas.

 

ESPELHO DO SÉCULO XX

Caixão revestido com rosto de menino
livro escrito nas entranhas de um corvo

fera que avança levando uma flor

rocha que respira nos pulmões de um louco

assim é

o século xx.

 
CELEBRAÇÃO DE BEIRUTE, 1982

 
O tempo avança,

na mão um cajado de ossos.

 
A lâmina da insónia
marca o pescoço da noite.

 
Crânios – uns servem sangue
outros se embriagam e deliram.

 
O fogo se suja?

O vento se infla?

 
Fumaça é nuvens.

Nuvens com a forma de cabeças.

 
Letras caídas

são impressões dispersas no chão

- pedaços de corpos.

 
Hoje o horizonte recomendou a seu filho

o vento que não saísse.

 
Como não se cansam as pedras do caminho?




Nem mesmo o sol consegue

iluminar este corpo que sangra sombra.

 
Dias cobertos de pó

têm feições de velhos.

 
Mariposas queimam

subindo a escada do sono.

 
A cinza, princesa,

toma assento e recebe as honras.

 
O míssil, rei,

arrasta a cauda

sobre os corpos dos súbditos.

 
Será a vida um erro

que a matança corrige?

 
Onde está a cova aberta para acolher as lágrimas?

e o buraco que acolherá a alma?

 
A coisa elimina a coisa.

 
Não terá outro seio´

este céu?

 
Esta rosa, de onde lhe vem tanta obstinação?

Está sempre lendo seu amor.

 
O dia tem medo do dia

e a noite se esconde da noite.

 
Agradeço

ao pó que se mistura com a fumaça e a abranda,

ao intervalo entre uma bomba e outra,

ao piso que sempre aguenta meus passos,

agradeço às pedras que ensinam a paciência.

 
Apagou-se a luz.

vou acender a estrela dos meus sonhos.

 
Leva-me, amor,

e me mantém trancado.

 


GUIA PARA VIAJAR PELAS FLORESTAS DO SENTIDO

                                                                      (fragmento)

 

 

O que é a árvore?
           lagoa verde cujas ondas são o vento.

 

O que é o vento?
            alma que não quer
            habitar o corpo.

       

 

O que é a onda?
           imagens em movimento
           na tela do mar.

 

O que é a praia?
           travesseiro para descanso da onda.

 

O que é o negrume?
             útero grávido de sol.

 

O que é a lágrima?
            guerra perdida pelo corpo.

 

O que é o leito?
           noite dentro da noite.

 

O que é o absoluto?
            mênstruo na cabeça.

 

O que é a história?
            cego a tocar tambor.

 
O que é a criação?

           selo na mão da coincidência.

 

O que é o abraço?
           terceiro de dois.

                                          

 

quarta-feira, 12 de junho de 2013

A REGIÃO CEGA

                                          um homem que nunca perdeu a sua região cega


Essa região cega:
tudo o que resta.

 
Porque crescer é um jogo
mas envelhecer galvaniza a morte,

e antes entalar um dedo na porta

do que não ter boca para o grito,

a essa região cega,

urge voltar.

 
Antes do luto,

antes do chassis da dor,

antes do amor me atingir

como uma pedrada no olho,

onde se escondia a região cega

que nos pode salvar?

 
O amor faz-nos ver demais,

o luto faz-nos ver de menos,

e a dor põe-nos a polir o osso -

onde se extraviou

a região cega

que nos entusiasmava?

 
Procura-se ruína em Maputo,

leio num anúncio,

raios me partam

se isto não é um eufemismo.

 
A essa região

de antes da memória

muito para lá do esquecimento,

inolvidável escada rolante

da infância,

havemos de voltar.

 
Sem fixar nada lá atr
ás
só ter futuro
ou um ecrã cego

que cinco dedos sujam

de compota

ou lume.



sábado, 8 de junho de 2013

MON AMI AMADEUS


Ganhou o Amadeu Baptista mais um prémio.
O Amadeu é o meu brutamontes. Uma vez tinha-o deixado na sexta-feira ao almoço deprimido como o raio e na terça telefonou-me absolutamente excitado. Lá fui ter com ele ao António e mandámos vir rojões e um jarro de vinho. E ele saca um manuscrito da mala e passa-mo: um poema de 90 páginas, escrito de sexta para segunda-feira.
Isto irrita muita gente.
De outra vez, já eu estava em Moçambique e fui a Portugal e visitei-o em Viseu. E ele diz-me, comecei um ciclo de poemas em torno de quadros do século XX. Preciso que me vejas isso. E eu disse-lhe, tá bem, manda-me depois por mail. E ele assim fez-me e íamos dialogando sobre os poemas, e em três meses fez quinhentos. Quinhentos, ponto.
Isto faz-me lembrar uma história do dramaturgo Dias Gomes, que era também um bisonte de concentração. Uma empresária de teatro encomenda-lhe uma peça de teatro numa sexta-feira. Sábado, ele levanta-se às 6h da manhã e começa a trabalhar, domingo dá a peça por encerrada. Na segunda telefona a alguns amigos dramaturgos: “pá, quanto tempo é que levas a escrever uma peça de teatro, dois meses, três, seis? Tive uma encomenda na sexta e não posso entregar já a coisa senão a senhora pensa que lhe estou a dar material refugado que tinha na gaveta…”
O Amadeu ganhou mais um prémio, na Galiza.
Há quem o deteste por isso. Por ganhar prémios. Todas as gerações têm um certo preconceito em relação a poetas que ganhem prémios. Eu também tinha. Na minha geração, a nossa besta de estimação era o José Jorge Letria.
Todos nós puros, ele impuro, porque fazia da escrita comércio – era assim que pensávamos. Não tenho a menor ideia do quanto éramos injustos ou não porque raramente o li, e sentir-me-ia um cavalo se fizesse um juízo sobre a poesia que um certo preconceito me impediu de ler. Mas que o Jorge sofreu de ostracismo, é evidente.
Havia muita arrogância camuflada nesta atitude.
Hoje sei que era um preconceito idiota e um dia destes pegarei num livro do Jorge, simplesmente para o ler como é, sem sobrepor de antemão juízos. Pode ser mau, pode ser bom, não sei.
Com a mesma soberba, várias vezes tendo manuscritos inéditos, e apesar de andar teso como um cão, desdenhei participar em algum concurso.
Já participei em alguns, empurrado por desesperadas razões económicas. É o único factor que me empurra a participar, quando participo. Felizmente, quando precisava mesmo, ganhei.
Embora, enfim, tivesse preferido que me convidassem para escrever um livro erótico – sempre me divertia. Aliás já o propus, uma história erótico-pornográfica escrita em alexandrinos, por ser essa a medida mais próxima do pénis, mas o editor não se decidiu a desembrulhar o adiantamento.
Evito falar dos prémios que ganhei, para mim não têm importância alguma e não avalio o que escrevo à lupa de nenhum prémio, mas do ponto de vista do desafogo económico em alturas de aperto foram vitais.
Uma vez ganhei o prémio Cesário Verde (com um livro, soube depois, que um dos elementos do júri considerou herético) e a concurso estava o então muito jovem José Luís Tavares. Mais tarde ele procurou-me para me dizer que também tinha um livro a concurso mas que o meu era muito melhor. Gente de qualidade é assim que procede, e o José Luis Tavares viria a revelar-se um poeta muito sólido, hoje absolutamente firmado.
Também ele fora a concurso porque precisava, na altura vivia num bairro de lata. Tenho a certeza que muitos achariam preferível que ele continuasse a viver num bairro de lata do que que vê-lo como vencedor de um concurso que lhe aliviasse a precaridade.   
Entretanto, o tipo que me instigou a concorrer, contra ele, porque “tinha um livro imbatível”, deixou de me falar, assim que foi anunciado que perdera. Foram dois os motivos porque concorri, estava com 4000 euros de dívidas e tinha aquele paspalho à minha frente que todos os dias me telefonava para me dissuadir de participar, visto que ele ia participar. Nem sequer pensava nisso, e achava a insistência dele irritante, mas no dia do fecho do concurso, depois dele voltar a espicaçar-me ao telefone (nunca percebi donde lhe vinha a sanha daquela competição comigo) à última hora enviei os manuscritos da estação dos Restauradores (eram 17h45) e papei-lhe o prémio. Parece que o livro dele não era tão herético como o meu. Ainda lhe telefonei a convidá-lo para jantar mas ele não me atendeu mais o telefone, cortou comigo, pelo mesmos insondáveis motivos porque se tinha tornado meu amigo.
Julgar um livro por ter tido ou não um prémio é absolutamente idiota. Ou é um preconceito de classe. Quem não necessita dos direitos de autor para ter alguma margem de equilíbrio que lhe permita continuar a escrever sem estrangulamento faz boca fina.
Não entendo porque podiam viver os Dickens e Camilo de folhetins e um poeta hoje não pode concorrer a prémios que lhe tragam maior conforto à sua frugalidade. Se a grande parte dos editores não paga os direitos (e às vezes não pode mesmo, sobretudo as pequenas e médias editoras) porque não há-de o escritor tentar safar-se, sobretudo se não tem outros meios de provento?
Foi assim que se safou o Bolano. E fez muito bem. O que lhe salvaguardou o tempo que necessitava para escrever algumas obras assombrosas. Que interessa agora os prémios menores que foram necessários para isso?
Outra coisa é escrever para os prémios.
Nunca foi o caso. Nem o do Amadeu, este meu brutamontes que quando ri silencia os carrilhões de Mafra, que simplesmente não consegue deixar de escrever.
Um dia, o Amadeu ficou desempregado de um dia para o outro e eu, que lhe conhecia a produção caudalosa e a muita qualidade de algumas das suas produções, fui um dos que mais o incitei a tentar viver da escrita. Disse-lhe, meu caro ficas proibido de buscar outras servidões … chega de patrões!
E até o quis empurrar para a prosa, passo que ele tem hesitado em dar. Não me arrependo nada. E ele hoje ainda tem as gavetas da secretária repleta de inéditos. Se há um prémio e ele necessita de assegurar sustento para os meses que se seguirão ele pega num manuscrito qualquer que escreveu há anos e envia-o. Mas não tem mais patrões.
O ano passado fui nomeado semifinalista do Prémio Telecom, no Brasil. Como o Gastão Cruz ou o João Rasteiro ou o Hugo-Mãe. Foi o editor que me enviei o livro, ele sabia que eu em direitos receberia pouco e então pensou, eu gosto do livro, pode ser… e enviou. Eu agradeci-lhe o gesto porque o meu carro está podre.
Mas desse prémio, ninguém desdenha porque se é nomeado para ele. Contudo, por isso mesmo, por à cabeça se conhecer os nomes dos candidatos pode ser mais permeável a influências e a uma certa inércia aurática que pode desvirtuar a verdade quanto ao texto.
Nos prémios mais periféricos, de que nunca se fala, há uma clareza maior nos critérios: só vale o que o texto vale, em anonimato. O manuscrito é lido pelo que é e não por estar associado a este ou aquele nome. Podem ocorrer evidentemente enormidades, basta lembrar o caso de Pessoa com a Mensagem, mas na maior parte dos casos ganha mesmo o melhor manuscrito em presença.
O Amadeu é imensamente prolixo, tem coisas muito boas e outras de que gosto menos, como é natural, mas há nele um labor operário e uma energia que devem ser respeitados e que são, nele, signos de dignidade.   
Entre a nova geração conheço também quem não o leia também por ser "vaidoso".
As pessoas confundem o ser vaidoso com o ser-se orgulhoso do que se fez e se construiu, contra todas as condições e possibilidades.
É espantoso que o Octavio Paz o tenha considerado suficientemente bom para lhe dar o Prémio Internacional que a sua revista dava todos os anos, mas que em Portugal seja menosprezado por alguns.
O Amadeu subiu a pulso, dos becos mais tenebrosos, da condição mais precária; dum meio onde não se lia e era proibitivo cultivar-se. Não é isso que faz dele um bom poeta, isso seria apenas um dado sociológico interessante. O que faz dele um “caso” é que quando acerta é muito bom e o fôlego absolutamente atordoador que ele tem – que para muitos, inexplicavelmente, é um defeito.
Que ele manifeste orgulho disso - é o seu direito. Algo que só entende quem, como eu e ele, veio do nada, sem apelidos, heranças ou truques.
Ele bebe pouco, não se droga, não tem igrejas – a sua religião sem mestre é a poesia, onde insiste e insiste sentado à secretária horas a fio, diariamente.
Quem trabalha menos do que ele, é evidente que torce o nariz.


quarta-feira, 5 de junho de 2013

SAGEZA É FICARMOS DE SOBREAVISO

                                                                     Maria Zerobox


 
É incrível que se tenha esquecido e que de novo seja necessário repisar a lição dos antigos. Mas aí vai…

Quando Grabato Dias escrevia, no Lourenço Marques colonial, Guerrilha em Horas Extraordinárias:

 

«A mulherinha estava a pedir pega-me

naquele olhar de corna mansa, e então

fiz das tripas menores um coração

embrulhei-o em luxúria e num béguin

 

impetuoso e urgente, qual salame

perverso a mugir trinca-me glutão

abalei a voar no avião

rotativo daquele olhar. Eu chame-me

 

cão gravata se não valeu a pena!

Ó licor da vingança, ó bruta cena!

Tinha, enfim, sob a espora, sob a mão

 

soba espúrio, soba ex-puro a esposa

grata do chefe, e sob a esposa a musa

ingrata dum tinteiro da nação».

 

ou em Introdução a um pedido de asilo poli ético:

 

«Olho zanaga olhizaino e duro

labrusco joalheiro de praguedo

inventa o oligarca o medo. O medo

guarda o medo, e o escuro esconde o escuro.

 

Apreensão de apóstata prematuro

romeu repeso ansiando o ledo

quieto canto matutino, medo

urna do medo, eis-me (...) ».

 

está a ser muito mais subversivo que o chileno Angel Parra quando escreve em Canção nº3:

 

«Dirijo-me a si, General, que nasceu neste solo,

a si, legítimo filho da puta chileno.

 

A si que se orgulha de ser o Grande Carcereiro,

de ser o grande Traidor, traidor e embusteiro.

 

A si cujas mãos gotejam sangue humano,

a si que tem a vida e a alma condenadas.

 

Porque receia tanto o povo pelas ruas,

os seus passos, o seu ímpeto, o seu grito, o seu canto?

(...)»

 
Porquê? Parra limita-se a dar azo à sua indignação (justa) e serve-se da (imitação da) poesia para tal, enquanto que Grabato transforma a indignação em trabalho da linguagem, em subversão da sintaxe, algo que um tinteiro da nação (leia-se um burocrata, um funcionário colonial ou não), nunca compreenderá. Aliás, o “estilo” de Angel Parra é o de um “tinteiro da nação”, não difere do de um comunicado político.

No segundo poema Grabato vai aos próprios fundamentos da repressão, que se radica no estado normativa da língua, e vira-a do avesso. O miolo do poema está aqui: «O medo guarda o medo, e o escuro esconde o escuro», e alude à repressão (colonial), interiorizada pelo próprio carcereiro. Mas o poema fá-lo de uma forma que se torna socialmente irrecuperável, dado que “os tinteiros da nação” só entendem a linguagem mais chã e patinam como um peru sobre o gelo quando um poema se diz de outra maneira. 

E chegamos aqui ao fulcro do que faz dos poemas de Grabato grandes poemas e do de Angel Parra matéria volátil: o conteúdo do poema deste podia ser veiculado por distintos suportes, não precisava de ser num poema, enquanto os conteúdos de Grabato são indissociáveis da forma em que foram vazados, não existem fora deles.

Grabato não deixou o seu comprometimento como homem por mãos alheias, não podia era trair as exigências que a poesia convoca. Para Grabato uma ética da dicção substantiva uma estética da resistência e Parra fica-se pela metade. É esta a lição que um jovem “poeta” não pode esquecer.

O resto, se a época está de realismos ou de botijas na cama, e o nome do chefe da caravana que conduz momentaneamente homens, camelos e cães naquela rota pelo deserto, é indiferente. Até pelo motivo mais concreto: estamos sempre perdidos. Vem a morte e fará o seu trabalho. Mas convém não esmorecer e atravessar o deserto como a faúlha que não deixa que as brasas se apaguem.

A PRETO E BRANCO

                                                                        saul leiter.
Passou o dia do branco para o preto com uma notícia que recebi. Por isso só me resta "aliviar-me". Alguns tercetos:


A PRETO E BRANCO

Janela roubada, a minha vida
eu que em miúdo assoava
o nariz aos navios.


Os alunos estão a regressar a conta-
gotas. O professor funga, receoso
de que o seu estado líquido seja irreversível.


O bosque alça em negro o fundo,
a meio perla-se o prado -
névoa que me betume nos olhos o branco.


Eclode a rebentação do cimo
mais transparente da vaga
- a minha cabeça descasca-se para dentro.


Dá-se ares o vento e quer-se distante.
mas fecho-o numa caixa
e roubo-lhe a paixão e os aromas...

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O bulbul
deixou de gritar,
névoa e penumbra.

É um haiku do japonês Âro.
A arte de desemaranhar imagens.
Mas grita o bulbul? Um pássaro com um nome tão perfeito, grita?
Então, estamos mesmo fodidos




terça-feira, 4 de junho de 2013

DE NOVO A SAGEZA E A LETRA ÉLE

                                                                  Catrin Welt-Stein


Eu tinha escrito:

Tapar todos os buracos de uma vida
Pode custar-nos a vida
E desligar-nos dos breves lampejos
De silêncio em que sob a laje a erva se empolga.

Voltar atrás, fazer entalhes
No remo ao invés de o meter na água,
Torna inúteis as sementes de cravinho
Enfiadas pela criança na fechadura do castelo


O Paulo José Miranda, do seu Brasiu profundo, devolveu-me:

Tapar todos os buracos de uma vida
Custa a vida
Desliga-nos dos breves lampejos
De silêncio
Em que sob a laje a erva se empolga.

Voltar atrás,
Retroceder braços aos remos
Inutiliza as sementes de cravinho
Plantadas pela criança na fechadura do castelo

Estava o Paulo em febres e olhou para o poema com o seu viés metalúrgico forjado em Paio Pires e, truca, e zás, mudou umas peças à engrenagem.

Ficou a coisa muito melhor. Explico porquê:

limpar os verbos compostos melhora sempre; personalizar os infinitivos melhora sempre; enxugar as articulações melhora sempre (que estava ali a fazer o “ao invés?”); com a mudança proposta os primeiros versos tornam-se mais universais e descem depois ao particular com a partícula verbal, vaivém que a versão anterior não tinha; a mudança de “enfiadas” para “plantadas” (chamando as coisas pelos seus nomes) concretiza melhor o absurdo da acção

– enfim, o Paulo poupou-me tempo.

Esta questão do tempo na poesia é importantíssimo, como dizia a Margarida: o tempo esse grande escultor, etc. O tempo reduz as coisas ao que é, dá-lhes o lanho próprio. A ilusão de partilhar as coisas em tempo real – nos blogues, no facebook – não deve retirar-nos a lucidez para compreender que só o tempo actua no tempo e imprime as mudanças que são necessárias a cada talhe.

A velocidade é o maior inimigo da arte.

Podemos é aceitar o outro como acelerador do tempo. Ou nós somos capazes de autoscopia e reduzimos o intervalo de latência entre a feitura do poema e a nosso desafecto emocional, conseguindo então olhá-lo rapidamente com um gume objectivo e topar de imediato onde as articulações rangem –

ou então, uma solução pode ser o olhar de outro, atento.

Não um outro qualquer, um outro em cujo gosto e acerto técnico confiamos.

Uma espécie de guilda.

Para que isto possa acontecer e aqui, sim, a sageza pode ser útil, é necessário que, como me observava ontem o cineasta Sol de Carvalho, que as pessoas deixem de competir umas com as outras, mas compitam antes consigo mesmas, para se melhorarem.

Então, desinteressadamente, estarão em condições de discutir as formas e de aceitar aquilo que interessa para melhorar o que quer que seja que se esteja a fazer – sendo aí o mais importante o texto e não o ego.

Raras pessoas são infelizmente capazes deste diálogo.

Contava-me o (TREMENDO) poeta João Pedro Grabato Dias que uma vez houve um poeta português de renome que lhe perguntou se ele havia gostado de um poema dele ao que o Grabato respondeu, Gostei tanto que já incorporei!, tendo o outro ficado abespinhado. Eu adoraria que o Grabato me incorporasse.

Adorei ser incorporado pelo Paulo.

Entretanto, acabo de desiludir a minha filha Jade, de seis anos, que me pediu, tens de dizer o mais rápido que possas todas as palavras que souberes com a letra éle… o que me deixou de imediato bloqueado (fui sempre lerdo neste tipo de jogos)…

Mas por que raio não me pediu ela, tens de dizer o mais devagar possível todas as palavras com a letra éle?

Aí talvez eu tivesse hipóteses…