segunda-feira, 30 de abril de 2012

VLADIMÍR HOLAN: O CHECO VOADOR


Vladimír Holan (1905-1980) é um poeta checo, considerado por muitos o expoente da poesia checoslovaca do século XX. Homem solitário e intransigente foi proscrito durante muito tempo pelo poder pró-soviético que governava o país mas nunca desfaleceu como «homem da sombra e da meditação metafísica», e nem a famosa Primavera de Praga o recuperou, apesar do Prémio Nacional que lhe concedeu, sendo lendárias na cidade a sua associabilidade e a luz acesa na sua janela, devido ao seu incessante labor nocturno.
Claro que o poder é que quis quebrar o ostracismo a que o tinha votado, depois da ressonância internacional que lhe deu o longo poema Uma Noite com Hamlet, mas ele continuou a estar absolutamente nas tintas para prémios e reconhecimentos e, inabalável na sua pobreza orgulhosa, em pleno coração da sua cidade, manteve-se recluso até à sua morte.
Os portugueses conhecem um pouco esta “ocultação incurável” com o caso de Herberto Helder.
Neste meu “exílio” uma das boas ideias que tive foi trazer quatro antologias de Holan, um mestre nas “harmonias atonais”, que repetidamente revisito. Estes poemas, de que apresento versões, colhi-os num dos seus principais livros, Dor, que tenho na excelente tradução de Clara Jánes para espanhol e na francesa, da Gallimard, de Dominique Grandmont.


POESIA

Em sentindo-se o homem perdido,
está perdido para tudo o que acontece aos demais
e ao que a si mesmo acontecerá.
E assim, danado, escreve uma carta e no envelope,

sela-a e sublinha: Abrir depois da minha morte!


Mas estar perdido e resistir
e ter a lua sobre o livro e a noite banhada pela leitura,
não saber de onde nem como,

e não estar só mas estar perdido, perdidamente,

como se a própria dor em conúbio com o alheio

engendrasse um terceiro coração…



SEM TÍTULO II

 Diz-se serem as pedras dos druidas movediças.
Mas a beleza das mulheres, só de ser fugaz, é muito mais cruel.

Com o coração quebrado, o poeta escreve sobre isso neste mundo,

neste mundo que só por desídia escuta histórias

de aventura e distância

que, cínico, desconsidera, depreciando até o assombro…


O espírito soberbo repele a tragédia…



 A QUEDA

 Em cada livro há um lugar onde se acha uma mulher
a quem queríamos beijar,

até que lhe nascesse ao canto dos olhos um eclipse da lua

e nós ficássemos como se antes da execução

ela nos tivesse vendado os olhos…


Em cada livro há também um lugar
onde adoramos pecar. Não é sempre um amor desgraçado.

Sim, sei que até do sangue sai fumo…

Sexo do livro… Mas os sonhos não se explicam…



 ENCONTRO NO ELEVADOR

 Entrámos na cabina e estávamos ali só os dois.
Entreolhámo-nos; e que mais haveria para fazer?

Duas vidas, um instante, a plenitude, a felicidade…

No quinto andar ela saiu e eu, que continuava,

compreendi que nunca mais a veria,

que aquele encontro fora de uma vez para sempre,

e que ainda que a tivesse seguido o faria como um morto,

e que se ela se tivesse voltado para mim

já só o poderia fazer desde o outro mundo.


SUFÔCO

 Maduro, corre o mijo. Os pássaros bebem-no.
O ar escalda nas cabeças, cativas.

Na encruzilhada põe-se uma mão a tremer.

Também a morte tem os olhos maiores que o estômago.

Na única sombra, que lembra o golfo

de uma boca afundada num seio feminino,

há uma víbora bem preparada,

como uma mecha de dinamite

nas rochas calcárias de Beroun…


AMANHECER II

O canto dos galos… A alba abre a cancela…
Por elas se deixa ver a melancolia que nunca nos abandona

E oferece com uma mão a paixão,

Com a outra o sofrimento…

E pensaste tu que te tinham esquecido!


ENCONTRO

Chuva sem árvores… O feno húmido …
Abertura do gás… Nuvem frita na frigideira da lua…

Piscadelas… Intermitências… Desaparição das formas…

Espantoso que não tenham tropeçado no carrinho de mão

    do cemitério…

- “Agrado-te?” – Sim, sim...

- “Amas-me?” – Não.


NÃO ÉS

 Não é indiferente o lugar onde estamos.
Algumas estrelas aproximam-se entre si, perigosamente.

Também aqui em baixo há separações violentas de amantes

só para que o tempo se acelere

com o latido dos corações.


As gentes simples são as únicas que não buscam a felicidade…



domingo, 29 de abril de 2012

A ALMA CONTA OS PASSOS

                                                           matta, integral do silêncio

E de súbito apareceu em Lisboa com um urgência, um frenesim, uma energia fantástica. Durou três anos a nossa amizade, intensa; nesse período ele editou seis números da revista ibérica Canal, foi para o México e voltou, e passava a vida errante, entre Portugal e Espanha. De repente, numa véspera de natal teve uma morte macaca. Não há outra expressão, para morrer afogado dentro do próprio carro, capotado como uma peça do lego numa conduta de esgoto, na noite da maior chuvada da década.
Chamava-se Augusto Oliveira Mendes.
Fui agora buscar uma coisa à despensa e caiu-me aos pés o único livro que editou, já póstumo. Hei-de postar coisas deles, agora presto-lhe homenagem com o poema que escrevi sobre o choque da morte dele.


A ALMA CONTA OS PASSOS




                                                                      À memória de Augusto Oliveira Mendes



«La destinée de chaque homme ne lui est personnelle

que dans la mesure où il arrive de ressembler

à ce que sa mémoire contenait déjà»,

Edouard Mallea                                                   

A surpresa é total: nunca tinha regado este meu morto.

Jura Caballero Bonald, poeta que partilhávamos:

«o futuro dura tão pouco que é já presente.»

Adivinho-o nas tintas para a matéria volátil:



a apalpar ainda, na extensão da pele, as junções.

Nele, nenhuma compreensão ulterior forçava

as fontes, as mãos - o silêncio que as rói.

Como dormir entre dois tornados? Em miúdo



laçava lagartixas com a destreza do felino

que s' esgueira ao pensamento. Mas

despertar entre dois tornados? Finou-se

escaqueirado pela água que temia, dentro de uma 4-L:



alcião mijote porque vidente. A morte, uma fraude

mais infalível que o Papa, despenhou-o nas suas capelas

imperfeitas. E mentiu-lhe: essas abóbadas não são

as da Sílvia Kristel da nossa adolescência,



nem é sedosa a unha que lhe greta a pele: o crapuloso anjo

que nele catava deus cata agora fungos. Como dizer

que este mundo sem excessos, com contas a prazo

e a expensas de Alardo e Vitalis não era o seu?



Que esta gente de uma glamorosa gelatina

não era a sua? Mesmo nos frutos abertos à pressão

dos polegares algo indeslindável resiste. Nenhum

morto é passivo: levou uma hora dentro de água



a debater-se, pois nem sempre é o genoma humano

Passport. Tinha três cães cor de absinto.

O Trovoada (minto de memória) tremia como um canavial,

quando farejava homens com o entorse das perdizes na venta.



Sexos com bigode e ostras com limão: indispensáveis,

uns e outras – é uma questão de género!, afiançou-me

na tasca do Turco, em Alcântara Terra,

aguardávamos pelo reboque dos seguros.



Os búlgaros e sérvios clandestinos tomavam-nos

por panascas ou bufos. É quase sempre

com razão que se enganam sobre nós.

Só que eu não percebi. Nem foi por mal.



Não lhe faltava ferocidade no sorriso. Melhor:

disponível como certas veias ao clamor de uma irrestrita

pândega, tinha o sorriso do frade

que sonha episcopal com a madre superior.



Dele dificilmente diriam: uma vida de estudo

e tão cediço movimento! Não há aqui nada de sincero,

as mil faces do plátano dão ouvidos ao vento

e o mais é o mudo desassossego de quem olha



– grafou num livro que lhe emprestei. Não são

as suas palavras que porventura faltam mas a malícia,

a mostarda que as impedia de exangues

quedarem-se ao primeiro assento. Enfadava-me



de morte o seu William Clift (engates de segunda

nos cinemas de subúrbio) e eu metralhava-o com o Hugo

Claus (engates de morte às estrelas de subúrbio).

A chuva lá fora continua a soletrar-lhe o nome –



e já não sei por que ledo desengano s’extraviaram

o valão e o flamengo. Às vezes encafuava nas palavras

mas dilucido nitidamente como profético o que, depois

de virarmos uma garrafa de Jameson, repetia:



nunca vi um naufrago tremer de ansiedade! E eu retorquia,

imbecil: Khrisna estigmatiza a ilusão de não-agir.

Espalha-brasas, sempre que eu procurava ligar isto

à ilusão da poesia pura, da sua despersonalização, anuía



solene «hum, hum»  e voltava a encher-me o copo.

Ele, que até na morte agiu demais. Grandeza

de homem: falhar o encontro e não perder o humor.

Grandeza de pássaro: estudar a migração das tartarugas.



Grandeza de poeta: serenar, quando no cockpit da morte

o telemóvel nos falha. Tinhas razão, inadvertido amigo,

a rádio devia servir os alpinistas e assombrá-los

com o mar, e aos lavadores de janelas com os chilreios tropicais



– perdoa-lhes, passam Mozart! Algo que não calque

uma madrugada de risos e giestas – tudo o que pedias.

A rosa transparente que se desfaz no gelo

sustém nos espinhos um livro de horas: segredou-me



o tordo de Eliot. Tão inútil, o tordo de Eliot.

Olha, meu caro, um peixe é um reflexo que não conheceu

retorno - e a vida te guarde de voltares. Lázaro

nem sempre ri. Via-se: tinhas a teimosia do temerário



que se lança ao fogo antes de aceitar que queima.

Deixa agora que as veias corram como mato.

É perdulária a memória, como o vinho desarrolhado?

Deixa, o corpo precisa de imagens e a terra de chuva.



Por isso, nunca o desejo cerra as cancelas.

Bebo: não me esqueça Dante, em revisão pé-de-galo.

Bebo: o silêncio atrai os assédios e é ainda cedo para honrar

os dissabores. Bebo: gosto de ver as barrigas a rir,



sacolejadas pelo medo. Bebo, um olho indómito

escava do topo à bainha, onde o rasgão que atou o teu olhar

à palavra descortinou um fundo impróprio.

Não provinha de Delfos - hélas! – a palavra deste poeta-



-agricultor: ele há sempre o estorvo e o estorninho!

Um sonho sem margens, querido Augusto, chamava Pascal

à infância. Mas quando se depara um futuro sem leito, é o quê?

Choca, a exuberância com que deus quis subir



pela escada rolante que desemboca na cave. Sentes

ainda as agulhas da dormência, a estrela polar

que te lucila o sangue? Acertaste Vladimir Holan:

os mortos são invejosos. É esse o visco irrevogável,



o drama: a pretérita inveja dos mortos. O único invejoso

que conheci puro foi o meu amigo Augusto,

que deglutia sem gelo, do sangue até à alba.

Nas condutas, a água contrai-se ao contacto do betão.



O mesmo protocolo não se aplica à carne.

Está para saber se foi a sua reprimida gaguez

ou o decoro mas deu um morto exemplar e, fora

uma unha ou outra, manteve as cores. O nevoeiro



que por ora o decanta e as pegadas que imprimia

nas areias do México são uma, a mesma coisa?

Às vezes parecia querer fugir. Fugir, apenas. De Lisboa

para Sevilha, e dos bares de flamenco para Tampico,



fugia das mulheres. Aflige-me vê-las lânguidas

e de repente lívidas! - essa imagem transtornava o amor

que lhes tinha, e de mulher em mulher fugia da morte

que nele habitava como o crocitar nocturno da madeira.



O sangue coalhado nos lábios e o clac das tesouras

no silêncio comprovam, a morte nunca nos é familiar:

há que purificá-la noutras sombras e noutros medos,

como o dos vimes contra o vento, como o da plaina



contra os nós, o das urzes à beira do açude, ou no medo

do sexo quando rompe a disformidade do xisto.

Habituado a que me aparecesses sem avisar (o último

dessa estirpe), desprega-se agora um silêncio



novo, sem rugas, igual ao do lençol estendido

por mãos acostumadas. O nome é o caule onde deus

sustém a sua queda? Desconfia -  à mínima

distracção, rio que desças é a fonte que perdes.

 

sábado, 28 de abril de 2012

MEUS ANJOS, É DOMINGO

                                                                        mapplethorpe



Chegar a esta provecta idade e não conseguir estar duas horas seguidas sem um lápis, caderno, um livro, é absolutamente doentio.
Fui esta semana à África do Sul, uma incursão rápida, não mais que um dia, e levei a maleta do laptop com 2 cadernos e 5 livros, e em chegando ao primeiro shopping de Nelspruit salivei por livrarias. Há três, naquele shopping, todas com um magnífico espaço físico. Mas nenhuma delas tinha um livrinho de poesia recente, para além de clássicos – shakespeare, byron, blake – da Pinguim. E ensaios, para além da auto-ajuda e de livros sobre religiões, rien de rien. Saí zangado, apesar de ter cinco fatias de nutrientes a tiracolo.
E então esta semana apanhei-me a sós, nu, diante de uma árvore. Dez minutos, vinte. Nada nos bolsos, nada nas mãos. Eu e a árvore. Meia hora depois estava exausto, entediado - seria de não haver vento que lhe desse as entrelinhas? Fui buscar uma cerveja preta a uma barraquinha a 50 metros, e pus-me a olhar a árvore e a pensar como o Camilo detestava as paisagens e só gostava de pessoas, da urbe, da comédia dos enganos.
E à rasca sem uma lapiseira, uma agenda, um livro que me terraplanasse a besta. Duas vespas rondam-me a mão que segura a garrafa, e parecem-me sílabas truncadas.
Não me sinto muito orgulhoso.
Não admira que um dos meus medos mais idiotas seja morrer depois de, adormecido na cama a ler um livro, ter engolido um lápis. Daqueles com borracha na ponta, que depois apaga o meu nome.
Quer dizer, apaga a doença.


Tenho uma colega nova na escola de teatro, uma Professora de Voz, finlandesa, uma actriz muito simpática, viva, inteligente e bonita. Ontem tivémos uma conversa agradabilíssima, durante mais de duas horas. Mas chama-se Heidi. E sobreveio-me várias vezes a tentação de me pôs às gargalhadas enquanto ela divagava por territórios teóricos pouco condizentes com o seu nome. Coitada, não faz a menor ideia de que a simples menção do seu nome me faz cócegas na garganta. Talvez bochechando com cloro, passe.

Saio do café onde conversava com a Heidi, despedimo-nos, e sou imediatamente abordado por um sexagenário sentado num caixote que me mostra o trambolho da perna, chagada, gangrenada, sei lá, é um rombo de que desvio os olhos rapidamente. E diz, os senhores do hospital querem me cortar a perna, mas preciso de ir avisar a casa e não tenho dinheiro para o chapa, se o patrão me pudesse ajudar, nem consigo andar… Fico indeciso com o dinheiro a dar, tenho comigo umas moedas, que dão para o chapa, e duas notas que dão exactamente para duas cervejas que tencionava deglutir com uma pacatez meridiana.  Dou-lhe os trocos e subo ao bar. Abro o livro e peço a loirinha. Mas a visão da perna daquele homem, o seu drama inquinou-me a cerveja, e sinto-me mal, um egoísta insensível, um burguês de merda, culpado por não ter dado o dinheiro da cerveja ao pobre diabo. Acabo de a beber e desço à esquina onde ele se encontrava. Já lá não está. Interrogo o ardina. Se foi, diz. Se foi como, pergunto, se não andava. Esse, patrão, é de enganar, é job… É job. Subo ao bar e peço outra cerveja. Africa encortiça os corações.

Na mesma semana adio um segundo teste a turmas universitárias porque, apesar de lhes ter passado com um mês de antecedência o livro sobre o qual iriam incidir as questões, verifico na hora da verdade que ou os alunos não leram de todo o livro ou não perceberam patavina, mas patavina mesmo, do que leram. Na mesma semana, numa turma do terceiro ano e noutra do terceiro, um idêntico desnorte e preguiça – que digo, a famosa resistência passiva africana em esplendor. E confesso-me um mole incapaz de não me importar se eles têm dois ou três no teste. Ou talvez seja ainda, o cabrão do paternalismo que impede esta gente de crescer, não sei.
É com esta inapetência, impreparação, este medo a reflectir que se quer construir um país autónomo? É possível, desde que seja o primeiro país assumidamente anoréxico do mundo.


sexta-feira, 27 de abril de 2012

O GALO DE ASCLÉPIO

                                                                             picasso






Parece-me que chegámos a um novo período histórico em que ninguém fará por nós, e que será preciso lutar sem concessões pela defesa de alguns direitos, enquanto, simultaneamente, pagamos o galo a Asclépio, pois essa é a dignidade que nos resta.


O GALO DE ASCLÉPIO


Aos 16 anos intoxicava-se com benzina

para examinar como desaparecia a consciência

e que poder almejar sobre ela.  René Daumal,

que a ser um lírico preferia ter sido Barrabás

e lavar as mãos sujas ao lado da salvação.

Em 1936, oito anos antes sua morte,

escreveu: «De um fruto que se deixa apodrecer

na terra, pode ainda sair uma nova árvore.

Dessa árvore, frutos novos às centenas.

Mas se o poema é um fruto, não é

o poeta uma árvore.

Ele pede-vos que tomais as suas palavras

e as comeis imediatamente.

Porque ele não pode, sozinho,

produzir o seu fruto.

É preciso ser dois para fazer um poema».



Podia não ter escrito uma palavra mais,

o poeta de Monte Análogo, e teria dito tudo.

Inclusive sobre «the time out of joint»,

pois, enquanto fazia retiros e traduzia do

sânscrito e entesourava em comentários beatos

o Livre d’Heures D’ÉstienneChevalier,

os nazis tomavam Paris e trocavam por miúdos

de galinha o carácter do povo.

É preciso ser dois para fazer o poema,

mas não garanto que Daumal

tenha pago o galo a Asclépio.



Pela mesma hora, Eva de Vitray-

-Meyerovitch ouviu bater à porta. Abriu e viu

Frankenstein, de olhos vítreos e pronto para a degola.

Vinha com ele um oficial da Wehrmacht,

que arvorava um ar maçado. E

perguntaram-lhe pelo marido, como ela,

um operacional da Resistência.

Em pânico, ignorando absolutamente a língua,

Eva apanhou-se a proferir no mais

castiço calão berlinense: «Esse, deu à sola

com uma galdéria qualquer e, sabe que mais,

estou-me nas tintas!», e continuou

num arrazoado tão convincente que o oficial

lhe deu os parabéns pelo alemão

antes de despedir-se, resignado.



Não parou Eva de tremer depois deles saírem

e amassou numa bola o maço de tabaco

que reservara para a troca de um pão.

Foi depois deste milagre que Eva

se foi aproximando dos sufis

e traduziu o Rumi e o Iqbal para francês

e uma luz lhe embrenhou um astro nos olhos.

Mas antes pagou o galo a Asclépio.







quarta-feira, 25 de abril de 2012

25 de abril, uma festa

PEQUENA FÁBULA CONTADA ÀS MINHA FILHAS
                                                para o João Lucas
Não sei que vos diga sobre o 25 de Abril.
A vossa avó acordou-me e anunciou há uma revolução
Acorda. E eu continuei a dormir.
Sonhei que um rato se passeava sobre o muro
Do quintal, um roedor com um monóculo e um dente de ouro.
Lembro-me porque a avó me despertou de novo
Antes que eu conseguisse esmagar-lhe a cabeça
Com o martelo do vosso bisavô funileiro.
Toninho, a Revolução… Eu resmunguei.
Sabia lá eu o que era uma revolução, e que nela
Os planetas voltam afinal à posição de partida.
Ainda não tinha dado o primeiro beijo,
Ainda não tinha chegado o meu dia iniciático e final,
E o meu sonho era abandonar a ginástica
Por incapacidade de manter a promessa
Do Cristo nas argolas.
O monóculo reconheci-o depois no Spínola
E no Pinochet, duas nuvens negras
De muitos vóltios. Tantos
Que só de pensar nisso me dá vómitos.
O dente de ouro tenho-o visto mudar de boca
Como os dentes da Graia. Infelizmente
Nunca o consegui agarrar. Julgo,
Minhas filhas, que é disso de que padecem
Hoje os nossos patrícios:
Anda um rato com um dente de ouro à solta,                                                        
E rói, rói, rói mais que o do garrote
Do poema do Assis Pacheco.
Como ele rói e tudo converte em escória!
E sinto-me culpado de não ter feito o suficiente
para lhe esmagar o toutiço no devido tempo.
Da outra vez que houver um 25 de Abril,
Se eu vos quiser acordar, não acordem por favor.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

BUROCRACIAS

SERÁ?

1
Uma urgência inesperada impõe-me uma ida ao banco. Como é inesperada não tenho comigo nem cheques nem o cartão. Terei de ir ao balcão pedir o meu número de conta e um cheque avulso.
Fila. Lá chego transpirado ao balcão. Pedem-me o passaporte. Explico que se trata da minha conta e que eles têm fotocópia do meu passaporte no processo. A mão é inclemente. A mão que leva o documento à máquina de fotocópias e tira a décima milionésima cópia do meu passaporte. Preencho entretanto o impresso para o pedido de cheque avulso, pelo qual irei pagar a módica quantia de 7 euros.
O caixa chama-me dez minutos depois. Preencho o cheque avulso, passo-lho. Ele devolve-mo outra vez, não assinou por trás. Enquanto eu assino ele levanta-se e vai com o meu passaporte à máquina de fotocópias nas suas costas para tirar outra cópia do passaporte. O que não obsta a que, diligente, escreva os dados do meu passaporte no verso do cheque.
Mira outra vez o cheque, antes de começar a meter os dados no computador. Franze uma sobrancelha e passo-mo, de novo. Está em falta, diz. Com o quê, pergunto, olhando parvo para o cheque. Tem que escrever nesta linha o seu nome ou “ao próprio”. É a linha do endereço. Tento perceber, oiça, mas sou eu a levantar um cheque avulso da minha própria conta. Esclarece-me ele definitivo, precisamente, como é um cheque avulso e não é passado a outrem tem que escrever obrigatoriamente ao próprio. 
Os bancos em Moçambique dão os maiores lucros do mundo, acho que é o segundo ou terceiro país onde mais lucram. Não me perguntem porquê.

2
Definitivamente, dar aulas neste período pós-simbólico, de soberania do relativismo, onde tudo tem de ser regido pelo modelo da eficácia e os entusiasmos se medem em termos de funcionalidade e dos valores da venalidade, é uma coisa triste.
Hoje estava a explicar aos alunos os três mecanismos do trabalho do sonho, segundo Freud: condensação, deslocação, identificação. Ilustrei a explanação com vários exemplos do quotidiano deles, de forma a agarrá-los. E eles pareciam ter aderido, riam, intervinham, faziam perguntas e fui deixando que eles assim experimentassem a informação que lhes estava a ser transmitida. E os sonhos é sempre uma matéria que naturalmente suscita interesse.
Chegamos à deslocação e eu, antes de irmos buscar equivalentes ao quotidiano deles, dou o exemplo clássico de Freud, do senhor que não conseguia nomear o seu problema e que sonhava com guindastes. Ao fim de umas sessões a ouvir falar dos omnipresentes guindastes do sonho do paciente, Freud decidiu decompor a palavra e deu-se conta de que esta se compunha de outras duas: do verbo guindar (erguer) e do substantivo haste. E então, por simples associação de ideias, percebeu que o paciente sofria de impotência crónica.
Foi uma festa, e eles acrescentaram três ou quatro exemplos que ali foram gizados e a participação da aula foi total.
O clima da aula estava quente, quase eufórico, à entrada do terceiro mecanismo, a identificação. E, de repente, num estalar de dedos, sinto-os frios, irrequietos, pouco receptivos. E pergunto, está na hora? E eles confirmam. Proponho, são cinco minutos, deixem-me acabar isto em cinco minutos, mas mostraram-se absolutamente arredios, indiferentes ao que há dois minutos atrás os estava a entusiasmar. E saímos da aula, com aquela pequena parte da matéria pendurada, coxa, exactamente às 12h – nem mais um segundo.
Se o problema tivesse a ver com o meu latinório eles não me classificariam normalmente como um dos melhores professores do curso. Não, o problema é geral – eles já não acreditam, eles já não se entusiasmam, ou só com a moderação que baste, eles estão lá para o canudo, ponto.
Sim, Max Weber, a burocracia venceu, o mundo está desencantado.