sábado, 19 de fevereiro de 2011

OS OLHOS DE T'RESA

Hoje a minha mulher faz anos. Não lhe digam nada. Ela sabe, mas não gosta muito e que mal tem estar distraída? Há 16 anos que estamos juntos. Por causa dela sai-me a espaços uma por outra coisa lírica. Não tenho outra explicação. É o que não gosto nela: deixa-me sem defesas. É também o que gosto nela: não me deixa esquecer isso. Ou sei lá. O melhor é calar-me.
Com excepção dos dois primeiros os outros estão inéditos.


O MAPA DA RETINA

9
Em 2015 uma sonda francesa gravará os sons
de Marte. Antecipemos o relatório: o bramido

da tua língua a varrer os boiões de iogurte;
o salino desconjuntar dos teus ossos

quando te levantas da cama; a tua respiração,
se nova ida ao supermercado te pôs cara de fuinha;

a crepitação do teu olhar quando falho o almoço;
o ressoar argênteo do atrito nas tuas ancas

em assaltando-te ciúmes; o assobio que emprestas
ao tempo quando rindo escreves: cintilava uma azeitona

no pires da manhã, uma manha que não era das piores;
a malícia com que num prolongado estalido de saliva

me interrompes – estirado na banheira caliente,
de cigarrilha, a reler John Donne – sem cerimónia,

de saca-rolhas na mão, “abres o vinho?”;
o teu ventoso pasmo quando devolvo o coração

encontrado numa cabina telefónica da Damaia.
Uma sonda francesa gravará os sons de marte

e ouvir-se-à a minha voz: “Foi este o sonho
de Adão, eis a litania dos domingos –

quando se é inepto para os grandes crimes.”



12
Mãe troca cinco filhos por comida:
noticia-se no Le Monde de anteontem,

é como ouvir no vento as próprias partes,
enxúndias pasmosas. E

podemos nós não ser ferozes
quando o ártico tem as chaves?

Também de nós, meu amor, foge
o dinheiro como os gatos. Mas

connosco, tépido armistício,
as palavras ainda acolhem a nudez.

O que alivia o rancor dos deuses,
esta acerba sisudez da alba.

Quem acicata o lobo, onde
se lastra esta luz invasora

e levadiça? Sossega. O teu insone
guardião fecha os cem olhos

da persiana assobiando
o Jealous Guy. E refazem-se

os desconjutados carreiros
onde fraterno se estira o sonho.

Amanhã começa a semana Pascal.
Lembro-me de abrir a boca

para medir o comprimento
das palavras. Foi assim na Páscoa

em que te conheci: os mistérios
valiam pelo que sopesavam

no silêncio da carne ressurrecta.
Acordas-me, puxas-me, entre nós

não se deita nenhum São Paulo –
havíamos agora de demonizar o sexo?



TERRAS DO XISTO

1

Alguma vez as vinhas
expulsaram os pássaros
e os ladrões?

Estávamos tão excitados
que não cabíamos
na pele,

vinho que se perpetra
manando
das próprias pedras.

Não cabíamos na pele.


2

Para fazer hibiscos
respondeste
à filha que te perguntou

por que se metem
os homens na cama
sobre as mulheres.

Acaricio-te
para fazer hibiscos,
e o teu peito
encapela-se

como a libélula
à tona de água,
ou o vinho na boca.


NUNCA FUI A ITÁLIA

Cinquenta anos sem pés nem cabeça,
mas de corpo inteiro, como a via rápida

que a insónia dos homens tracejou
a meio da floresta amazónica, ou o ovo

que se precipita de asa delta do bojo
de sua mãe e aterra na paleta de Magritte,

já um belo e torcionário falcão. Sem pés
nem cabeça, mas alumiado pelo açoite

do perdão - no vinho, na mão
estrangeira com que a caligrafia

decalca o ímpeto do desejo
(frondosos os desertos) e a tua nudez

deixa rigorosamente sem fala
as sílabas que se seguem.



EPICURO NO TEU JARDIM

1

O sopro, transpiração de dentro,
catálogo
             do que a palavra não oxidou;
o sopro, em andas de carne,

pintado com branco de cereja –
esplende feliz.
                        O invisível
é sempre o mesmo mas o visível
não

e solta-me os lábios
no declive do teu nome.


3

Vejo p’lo menos um falcão
no teu punho: a minha memória

que desiste de ser alga no céu.
Vejo p’lo menos um jardim

suspenso no mapa da retina:
a tua mão,
                mais larga que o meu medo,

a acariciar a paisagem que te procura.


5

Vaticínios que a tua vontade incinera,
látego de um bezouro que a estela espalmou.

Descampados ficam os braços
se te ausentas, que desperdício os olhos

se a tua mão não os tapa, no umbral
do teu silêncio respira a minha palavra,

ilhada.


6

Um só poro,
                  que uma ruga
em ti revolva,
                  faz-me falta.

Os antúrios não florescem
sem o medo da poda.

Eis
o fulcro
do que me põe absorto:

perder de vista
                        o mar.


11

Olhar sonâmbulo:
     a que fez nascer
            a minha língua na sua
boca vaporiza
a minha nicotina nos seus
            pulmões e umbilica
o sexo à minha
     figueira maldita.

Recomenda-se
       aos vindouros: não
             ponham terra, não
ponham flores em cima,
ponham ar,
                   ar fresco – pois
sonâmbula era a música.

13

Epicuro, deus
dos jardins, é teu
cativo.
És o mundo
real que lhe apura
as aparências,
o vergel
onde a neblina
acosta.
Ouço-o:“olha-se
com pouca atenção
a vida
se não se viu o coração
que mata de forma
cuidadosa.
Mas é de lei:
é necessário
um resíduo de trevas”.
E aí tu passas
e fico cego
às crepitações
do ar.



AS VIAS DA IMANÊNCIA


1

Se Deus abandonasse
por um instante
a carne dos salgueiros
fixaria o olhar

na lição de pintura
com que des-
fazemos
a luz

nos lençóis
de tua cama
– e

compreenderia:
nem tudo é
consentimento.

2

O clamor das espáduas
contra
a duna:

do mar
jorram
flamingos.

Parece
que o ar treme
na revoada?

Sossega,
meu amor,
o tremor de terra

é
uma das vias
da imanência.

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