Hoje a minha mulher faz anos. Não lhe digam nada. Ela sabe, mas não gosta muito e que mal tem estar distraída? Há 16 anos que estamos juntos. Por causa dela sai-me a espaços uma por outra coisa lírica. Não tenho outra explicação. É o que não gosto nela: deixa-me sem defesas. É também o que gosto nela: não me deixa esquecer isso. Ou sei lá. O melhor é calar-me.
Com excepção dos dois primeiros os outros estão inéditos.
O MAPA DA RETINA
9
Em 2015 uma sonda francesa gravará os sons
de Marte. Antecipemos o relatório: o bramido
da tua língua a varrer os boiões de iogurte;
o salino desconjuntar dos teus ossos
quando te levantas da cama; a tua respiração,
se nova ida ao supermercado te pôs cara de fuinha;
a crepitação do teu olhar quando falho o almoço;
o ressoar argênteo do atrito nas tuas ancas
em assaltando-te ciúmes; o assobio que emprestas
ao tempo quando rindo escreves: cintilava uma azeitona
no pires da manhã, uma manha que não era das piores;
a malícia com que num prolongado estalido de saliva
me interrompes – estirado na banheira caliente,
de cigarrilha, a reler John Donne – sem cerimónia,
de saca-rolhas na mão, “abres o vinho?”;
o teu ventoso pasmo quando devolvo o coração
encontrado numa cabina telefónica da Damaia.
Uma sonda francesa gravará os sons de marte
e ouvir-se-à a minha voz: “Foi este o sonho
de Adão, eis a litania dos domingos –
quando se é inepto para os grandes crimes.”
12
Mãe troca cinco filhos por comida:
noticia-se no Le Monde de anteontem,
é como ouvir no vento as próprias partes,
enxúndias pasmosas. E
podemos nós não ser ferozes
quando o ártico tem as chaves?
Também de nós, meu amor, foge
o dinheiro como os gatos. Mas
connosco, tépido armistício,
as palavras ainda acolhem a nudez.
O que alivia o rancor dos deuses,
esta acerba sisudez da alba.
Quem acicata o lobo, onde
se lastra esta luz invasora
e levadiça? Sossega. O teu insone
guardião fecha os cem olhos
da persiana assobiando
o Jealous Guy. E refazem-se
os desconjutados carreiros
onde fraterno se estira o sonho.
Amanhã começa a semana Pascal.
Lembro-me de abrir a boca
para medir o comprimento
das palavras. Foi assim na Páscoa
em que te conheci: os mistérios
valiam pelo que sopesavam
no silêncio da carne ressurrecta.
Acordas-me, puxas-me, entre nós
não se deita nenhum São Paulo –
havíamos agora de demonizar o sexo?
TERRAS DO XISTO
1
Alguma vez as vinhas
expulsaram os pássaros
e os ladrões?
Estávamos tão excitados
que não cabíamos
na pele,
vinho que se perpetra
manando
das próprias pedras.
Não cabíamos na pele.
2
Para fazer hibiscos
respondeste
à filha que te perguntou
por que se metem
os homens na cama
sobre as mulheres.
Acaricio-te
para fazer hibiscos,
e o teu peito
encapela-se
como a libélula
à tona de água,
ou o vinho na boca.
NUNCA FUI A ITÁLIA
Cinquenta anos sem pés nem cabeça,
mas de corpo inteiro, como a via rápida
que a insónia dos homens tracejou
a meio da floresta amazónica, ou o ovo
que se precipita de asa delta do bojo
de sua mãe e aterra na paleta de Magritte,
já um belo e torcionário falcão. Sem pés
nem cabeça, mas alumiado pelo açoite
do perdão - no vinho, na mão
estrangeira com que a caligrafia
decalca o ímpeto do desejo
(frondosos os desertos) e a tua nudez
deixa rigorosamente sem fala
as sílabas que se seguem.
EPICURO NO TEU JARDIM
1
O sopro, transpiração de dentro,
catálogo
do que a palavra não oxidou;
o sopro, em andas de carne,
pintado com branco de cereja –
esplende feliz.
O invisível
é sempre o mesmo mas o visível
não
e solta-me os lábios
no declive do teu nome.
3
Vejo p’lo menos um falcão
no teu punho: a minha memória
que desiste de ser alga no céu.
Vejo p’lo menos um jardim
suspenso no mapa da retina:
a tua mão,
mais larga que o meu medo,
a acariciar a paisagem que te procura.
5
Vaticínios que a tua vontade incinera,
látego de um bezouro que a estela espalmou.
Descampados ficam os braços
se te ausentas, que desperdício os olhos
se a tua mão não os tapa, no umbral
do teu silêncio respira a minha palavra,
ilhada.
6
Um só poro,
que uma ruga
em ti revolva,
faz-me falta.
Os antúrios não florescem
sem o medo da poda.
Eis
o fulcro
do que me põe absorto:
perder de vista
o mar.
11
Olhar sonâmbulo:
a que fez nascer
a minha língua na sua
boca vaporiza
a minha nicotina nos seus
pulmões e umbilica
o sexo à minha
figueira maldita.
Recomenda-se
aos vindouros: não
ponham terra, não
ponham flores em cima,
ponham ar,
ar fresco – pois
sonâmbula era a música.
13
Epicuro, deus
dos jardins, é teu
cativo.
És o mundo
real que lhe apura
as aparências,
o vergel
onde a neblina
acosta.
Ouço-o:“olha-se
com pouca atenção
a vida
se não se viu o coração
que mata de forma
cuidadosa.
Mas é de lei:
é necessário
um resíduo de trevas”.
E aí tu passas
e fico cego
às crepitações
do ar.
AS VIAS DA IMANÊNCIA
1
Se Deus abandonasse
por um instante
a carne dos salgueiros
fixaria o olhar
na lição de pintura
com que des-
fazemos
a luz
nos lençóis
de tua cama
– e
compreenderia:
nem tudo é
consentimento.
2
O clamor das espáduas
contra
a duna:
do mar
jorram
flamingos.
Parece
que o ar treme
na revoada?
Sossega,
meu amor,
o tremor de terra
é
uma das vias
da imanência.
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