domingo, 6 de fevereiro de 2011

ANTINOO OU AVA GARDNER? PESSOA E A SEXUALIDADE

Paul Avril, 1906, Adriano e Antinoo no Egipto: devidamente censurado para melhor se imaginar
O meu telescópio, que ricocheteia sempre em Orion (há-de haver uma explicação para isto!) antes de atestar no alvo, topou que a Assírio & Alvim acabou de publicar um livro sobre Pessoa, o corpinho e a (sua) sexualidade. É coordenado por Anna M.Klobucka e Mark Sabine, chama-se O Corpo em Pessoa/ Corporalidade, género, sexualidade, e não sei o que revelará, se traz provas concludentes quanto à escolha sexual de Pessoa. Arriscando por isso ter ficado com um texto que tinha inédito sobre tais minúcias absolutamente anacrónico, aqui o divulgo, com a ressalva de ter sido escrito dois meses antes do lançamento do livro da Assírio e em completo desconhecimento do seu conteúdo.
Serve pois como exercício sobre a ilusão, razão porque lhe chamei Ser-se Crédulo - ou que sirva ao menos como chamada de atenção para o livro, também está certo. Repito: pode este livro agora publicado ter tornado mais disparatado o meu escrito, vergar-me-ei – e não é, invariavelmente, esse o efeito do tempo sobre nós? Aqui vai, exposto ao ridículo.

SER-SE CRÉDULO

Chegamos sempre tarde àquilo a que não se chegou antes por distracção própria ou condicionada por ideias dominantes e inibidoras do mais simples raciocínio lógico. O que nem está mal quando se trata de Pessoa, um poeta «que subestima a coerência lógica em favor do efeito emocional das ideias» (Ferreira Gullar). Mas chega um momento em que a paisagem estaca diante dos nossos olhos e conseguimos por uma vez resgatá-la do informe.
Foi o que me aconteceu quando por necessidades de trabalho, num período muito curto, tive de reler o grosso da melhor literatura coetânea à Primeira República e uma parte substancial das obras de José Saramago. Então, num dos Cadernos de Lanzarote, deparo com a informação de que um poeta português de relevo teria detestado O Ano da Morte de Ricardo Reis (um belíssimo romance, seja qual for a realidade virtual da sexualidade do heterónimo) porque, acusava, “ele (o Saramago) tornou o Ricardo Reis heterossexual”, e, simultaneamente, cruzo esta menção com as intenções do Pessoa em escrever um Ciclo Imperial do Amor, um livro «que percorre o círculo do fenómeno amoroso», conforme declara em carta a João Gaspar Simões, e do qual fariam parte os dois poemas já realizados, Antínoo e Epitalâmio. Lembremos o conteúdo da carta, que eu havia esquecido de todo:
«Uma explicação: Antínoo e Epitalâmio são os únicos poemas (ou, até, composições) que eu tenho escrito que são nitidamente o que se pode chamar de obscenos. Há em cada um de nós, por pouco que especialize instintivamente na obscenidade, um certo elemento desta ordem, cuja quantidade, evidente­mente, varia de homem para homem. Como esses elementos, por pequeno que seja o grau em que existem, são um certo estorvo para alguns processos mentais superiores, decidi, por duas vezes, eliminá-los pelo processo simples de os exprimir intensamente. É nisto que se baseia o que será para V. a violência inteiramente inesperada de obscenidade que naqueles dois poe­mas — e sobretudo no Epitalâmio, que é directo e bestial — se revela. Não sei por que escrevi qualquer dos poemas em inglês.
Outra explicação, esta desnecessária. Os dois poemas citados formam, com mais três, um pequeno livro. Estes três últimos poemas estão inéditos.
Explicarei isto melhor, que percorre o círculo do fenómeno amoroso. E percorre-o num ciclo, a que poderei chamar imperial. Assim, temos (1) Grécia, Antínoo; (2) Roma, Epitalâmio; (3) Cristianidade, Prayer to a Woman's Body; (4) Império Moderno, Pan-Eros; (5) Quinto Império, Anteros. Estes três últimos poemas estão inéditos.
Explicarei isto melhor omitindo, porém, por não ser ainda a ocasião de a dar, a explicação da sucessão dos impérios e o seu íntimo sentido. 0 conteúdo dos poemas não é o que define os «impérios» a que eles se reportam. Assim, Antínoo, que é grego quanto ao sentimento, é romano quanto à colocação histórica. Epitalâmio, que é romano, quanto ao sentimento, que é a bestialidade romana, é quanto ao assunto, um simples casamento em qualquer país cristão…»
O que me choca na minha distracção é o que acatei, em 30 anos dela, tomando por certo o que talvez fosse apenas crença de alguns: a famigerada homossexualidade de Fernando Pessoa. Terei eu, ingenuamente, infringido à pessoa civil e física do poeta o que era uma invenção estética, metabolizando o que não passa de uma estratégia de verosimilhança literária? Creio que a minha geração patinou neste erro; explique-se: fazia parte da ordem das coisas subverter a ordem estabelecida e o estoiro surdo à saída de O Virgem Negra/ Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais & estrangeiras por M.C.V., Who Knows Enough About It… de Mário Cesariny, onde se escrevia sem rebuço - «Alheio ao céu e à luz/ De Seth e de Rimbaud/ No Antinoo depuz/ O paneleiro que sou» (pág. 19); ou: «O Álvaro gosta muito de levar no cu/ O Alberto nem por isso/ O Ricardo dá-lhe mais para ir/ O Fernando emociona-se e não consegue acabar.» (pág. 69) - parecia-nos então um exercício de liberdade à altura da credulidade que procurávamos e da rebelião contra o estardalhaço do comércio em Pessoa.
Tem muita graça, na classificação de Cesariny, que o Ricardo Reis seja «activo», qualidade que para a antiguidade-clássica constituía um princípio mais soberano do que o da divisão dos géneros, e que, num jogo simétrico com a feição intelectiva do poeta, a emocionalidade embargue Pessoa e o deixe à beira da impotência. Mas para além da piada da coisa, sinto-me um pouco desconcertado, e usado, diria. E recordo artigos e tertúlias repisando na concertada homossexualidade de Pessoa, enquanto eu a abraçava como um dado adquirido porque nunca se me apresentou como herética ou ofensiva tal opção amorosa e sexual: cada um é livre de amar como quiser desde que não esteja ausente no acto.

Antinoo: belo moço, pena não ser António
O que interrogo agora é a parcialidade do juízo ou o grau de informação de Cesariny e de tão autorizados defensores da homossexualidade em Pessoa, muito alicerçada na natureza de Antínoo. Teriam esquecido como eu a carta a João Gaspar Simões ou tê-la-ão omitido no afã de carregar de tradição e prestígio a sua (deles) escolha sexual? No caso de Cesariny entendo, foi tão humilhado pela polícia, pela sociedade salazarista do seu tempo, por causa do seu penchant sexual – o qual no espaço greco-romano seria motivo de regozijo – que serviu a “dobrada fria” como vingança. E o peso do seu carisma crescente levou a que ninguém ousasse desmenti-lo. Nas últimas décadas, a homossexualidade assumida de outros poetas de influência, Al Berto, Joaquim Manuel de Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge, acabou por assentar a laje: acabámos todos por desejar que o Fernando Pessoa fosse. Why not? Estava na ordem do crescimento das liberdades humanas. Ademais, voltando ao “acerto de contas” do surrealista, O Virgem Negra era uma interpretação, não pretendia ter um certificado autobiográfico, mas a inquietação persiste: Cesariny desconheceria a intenção de Pessoa em realizar um Ciclo Imperial do Amor? Ainda que tivesse sobrevoado distraidamente a carta de Pessoa a Gaspar Simões, que obstinação, para além da conhecida antipatia pessoal pelo poeta de Metamorfoses, o leva a não dar conta das referências à mesma no prefácio de Jorge se Sena, em 1974, às traduções dos Poemas Ingleses?  
Se por cansaço fechou as pálpebras nessa passagem das cartas, ou se por fastio não leu sequer as versões de Sena, fez bem reivindicar Pessoa para a sua “ala de namorados” - ainda que erroneamente, terá acelerado a conquista de inalienáveis direitos civis - mas se omitiu ou mentiu, puxando a brasa à sua sardinha, acabou por proceder como os polícias salazaristas que o humilhavam e denegavam a sua escolha sexual. Mede-se aqui a minha incredulidade e o meu pasmo. O que não retira a O Virgem Negra um pingo da sua graça paródica, simplesmente a desloca. A uma hipótese sugestiva, que nos fascine, não devemos sempre preferir a verdade, ou pelo menos conclamar um arsenal de pontos de vista que a tornem desnecessária? Não me parece correcto impor um funil ao que pede uma multiplicidade de furos.
Fernando Pessoa era também atreito à lide sexual com homens – seria uma hipótese menos controversa. Aliás, os melhores argumentos a favor da bissexualidade de Pessoa encontrei-as em algumas citações deste que Ferreira Gullar recolhe (o poeta brasileiro, que eu saiba, é heterossexual, o que o transforma no mais desinteressado dos apóstolos):
«Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As minhas faculdades de relação – a inteligência e a vontade, que é a inteligência do impulso – são de homem.»; «Reconheço sem ilusão a natureza do fenómeno. É uma ilusão sexual fruste. Pára no espírito. (…) Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou, não tenho a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia descer-me ao corpo. Não digo que não praticasse então a sexualidade correspondente a esse impulso: mas deixava o desejo para me humilhar» (…) «somos vários desta espécie, pela história abaixo» – alude Pessoa a Shakespeare e Rousseau – e sublima o seu receio «da descida ao corpo dessa inversão do espírito, como nesses dois desceu».
Depois destas citações, pergunta justamente Gullar:
«Seria descabido imaginar que, diante dessa ameaça, diante desse corpo que poderia a qualquer momento traí-lo, que Pessoa decidisse não viver, reduzir a sua vida à vida da inteligência (sua parte masculina) e assim escapar à desgraçada possibilidade de tornar-se um homossexual? Não seria essa divisão interior – um homem e uma mulher na mesma pessoa – o início da sua despersonalização, da divisão do eu ao mesmo tempo da invenção de outras personalidades, em lugar da sua própria, que lhe era, por pevertido, inaceitável? Por outro lado, a necessidade de ocultar esse impulso perverso não seria a primeira simulação que o levaria a tantas outras simulações?»
E remata o poeta de Luta Corporal: «Podemos responder sim ou não a essas hipóteses». Esta prudência parece-me a mais correcta. Lembremo-nos que Pessoa escreve a partir de uma repressiva educação falocrática, antes de Jung, com o anima e o animus, nos ter prevenido de que somos todos muito mais femininos do que a educação judaico-cristã prescreve; décadas antes das suas dúvidas sobre a sua efectiva escolha sexual se terem tornado um lugar-comum em qualquer adolescente saudável e urbano.
Não cremos que hoje o Fernando Pessoa, como qualquer jovem escorreito e atormentado pelas mesmas dúvidas, tivesse pejo em passar pelo crivo da experiência. O que não o tornaria de imediato homossexual, confunde-se ainda demais o acto sexual e o sedimento/sentimento, ou o imaginário. O que faz um homossexual ou heterossexual não é o contacto mas a propensão de alguém para se imaginar mais abraçado a um corpo de outro sexo ou do mesmo, sendo essa a pedra angular do seu solo psíquico: um particular exclusivismo.
Há vários versos de Álvaro de Campos que parecem transparecer uma sensibilidade gay: «Contar àquele pobre rapazito/ que me deu horas tão felizes!» (Soneto já antigo); «Eu que tenho sentido o piscar dos olhos dos moços de fretes» (Poema em linha recta); «Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente femnino/ E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos» (Passagem das Horas).
Mas também Fernando Pessoa, o próprio, tem relances de “voluptuosidade” hetero:
«Dá a surpresa de ser./ É alta, de um louro escuro./ Faz bem só pensar em ver/ Seu corpo meio maduro.// Seus seios altos parecem/ (Se ela estivesse deitada)/ Dois montinhos que amanhecem/ Sem ter que haver madrugada./ (…)/ Apetece como um barco./ Tem qualquer coisa de gomo./ Meu Deus, quando é que eu embarco?/ Ó fome, quando é que eu como?»
E se podemos imaginar como retórico este ‘ataque’ de tesão hetero, aos versos de Álvaro de Campos também não me custa atribuí-los a um entusiasmo sob influência (imitação) de um dos seus grandes e assumidos mestres: Walt Whitman. Certo é que ao evidente cunho homo-erótico em Antínoo contrapõe-se em Epitalâmio o recorte luminosamente obsceno duma posse de cariz hetero: «O noivo anseia de tudo o final/ No desejo dos seios em prazer chupado,/ No pôr da mão no pêlo virginal/ E no apalpar do antro labiado/Da fortaleza pronta para assaltar,/ Que faz o aríete crescer e ansiar.» (XIV)
Que não é menos válida como expressão de um tipo de sexualidade latente.
Aos mais subtis que argumentem que Epitalâmio é contado do ponto de vista de uma noiva (excitada pela véspera do seu ansiado desfloramento), uma índole passiva e receptora, cabe lembrar que o poema vai desencadeando outros pontos de vista e podemos até perguntar quem narra este naco de um erotismo quase bocageano: «(…)
Agora às criadas a saia é erguida/ E as baías do ventre, assim devassado,/ Abrem-se ao cavalo que irrompe, em corrida,/ Quase tarde já, prestes a golfada./ E agora um velho com moça corada/ Se enreda em escuro canto, a jeito,/ E lenta, a faz mover o corpo exibido./ Vede como gosta, no arfar do peito,/ Por sentir a mão no dardo saído!» (XIX)
(Aqui terá sintonizado Cesariny, ao intuir: «O Fernando o seu maior desejo desde adulto/ (Mas já na tenra idade lhe provia)/ Era ver os héteros a foder uns com os outros».)
Não obstante, é espantoso que, nessa doentia “rivalidade mimética” de que padece a classe dos literatos, nem Cesariny nem os lídimos defensores da homossexualidade pessoana tenham atentado nesta advertência de Sena:
«(…) o ciclo obviamente não era o que G.Simões deduziu (ob. e vol. cit. pp. 185-186). Na sequência como Pessoa a nomeia, Antinoos não é o «amor proibido» por antítese ao «amor normal» de Epitalâmio, mas o amor que os gregos só concebiam em tal grau de dialéctica sexo-divinização em termos sexuais oposto ao amor sensual dos romanos (que não foram mais «normais» que os gregos nessas matérias), sem transcendên­cia além da carne (e por isso há tanto pormenor de licenciosidade, em Epitalâmio). Um poema simbolizando o amor na cristandade, e chamado «Oração a um Corpo de Mulher», é precisa­mente a figuração da transferência, operada pelo cristianismo, daquela dialéctica homossexualmente fixada pelos gregos, para uma dialéctica em que a relação heterossexual recebe, na sensuali­dade «romana», a divinização «grega». «Pan-Eros», como o nome indica, e referido ao «Império Moderno» (i.e., o mundo contemporâneo), é a dissolução e coexistência de todas essas fases, que precederá, no Quinto Império, o triunfo de «Anteros». Este não é, ao contrário do que, por certo levado por uma etimolo­gia aparente, G. S. supôs («o amor de cuja negação sistemática nasce a grandeza de um mundo em que os seres se repelem mais do que se aproximam — o mundo atómico talvez, ou, então, o mundo integrado, de novo, no paraíso perdido»), o «anti-amor», mas a divindade grega, que era irmã de Eros, e seu complemento não antagónico: ao amor em si  correspondia o amor além de si (como explica Cícero em De Natura Deorum). Assim, da pan-­sexualidade, se transitaria ao amor sublime de tudo e todos por tudo e todos. Muito esotericamente, Pessoa dizia que estes três inéditos não tinham «colocação precisa no tempo, mas só no sentimento» querendo com isto significar que a libertação do cristianismo, Pan-Eros e Anteros, eram não necessariamente épocas históricas, colocadas na historicidade, mas graus de penetração evolutiva e de realização espiritual da essência erótica do Universo. Com efeito, Anteros será, nesse esquema, a reconquista do paraíso perdido — mas não como alternativa semântica da desintegração atómica que Pessoa, com todos os poderes de profecia que possuísse, não terá adivinhado... E há, de resto, que ter em conta que, num esoterismo como o de Pessoa, não houve realmente pecado original, mas fases diversas no caminho em que «Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade / Nem veio nem se foi: o Erro mudou…», e, do mesmo passo, Deus é sempre (ele, e não nós) o Adão de outro Deus maior, como ele também disse.»
Julgo muito difícil, depois desta convincente interpretação, obstinar em atribuir taxativamente uma sexualidade exclusiva e redutora a Pessoa, o que só teria equivalente na “extrema seriedade” com que Georges Devereux falava das “fortes tendências homossexuais de Sófocles”, porque «duas categorias de sujeitos, os homossexuais (…) e os canhotos, têm a tendência de inverter a esquerda e a direita»; sendo aí tal crença já do domínio da alucinação colectiva e do seu arsenal de pegadas intransigentes e facciosas.
Mantenhamos a sonda no prisma de Sena, sondemos: as «complexidades sexuais» de Pessoa afloram ao corpo atado do poeta «não porque as sentisse em si mesmo, mas porque se descobrira uma capacidade de tudo imaginar, mesmo o mais reprimido e mais proibido, a um ponto de obsessão». E retenha-se que os implícitos são múltiplos, não eliminam nenhuma hipótese.
Sabemos que à época de Pessoa seria quase interdito ao poeta manifestar-se socialmente, com o mesmo à vontade, na afeição a uma e outra opção sexual. No entanto interroguemo-me: Pessoa que generosamente não se importunou de “patrocinar” alguns escândalos públicos ligados à homossexualidade assumida de Botto e Raul Leal, e um dos poucos poetas portugueses do século XX para quem a palavra era carne, não mero trânsito, teria com o tempo algum problema em romper com as grilhetas da sua educação para levar em frente a sua diferença, caso fosse homossexual? Ninguém o demoveu de mais nada, porque cederia aí? Aqui partilho a opinião de Teresa Rita Lopes, para quem Pessoa não hesitaria na sua assunção, caso fosse necessário.
Bem sei que hoje, em Portugal, está na moda ser-se homossexual «por denegação» (e sobre esta matéria já me coubera ser instruído pelo poeta Raul de Carvalho que, vendo-me reticente em relação à sua certeza sobre a homossexualidade de Sena, foi peremptório: «se não foi, há-de querer sê-lo!»); no entanto, afigura-se-nos mais sensato concluir que o Pessoa era de uma androginia espiritual comum a tantos poetas, a qual não se reduz à grosseria das definições. Até lá, tomo a sua homossexualidade como mais um ingrediente heteronímico, o que me deixa à vontade para considerar a heterossexualidade de Ricardo Reis, e até a minha, por enquanto. 
Nada disto tem importância, Pessoa só não seria o magnífico poeta que é como alcachofra, e interessa-me menos a sua sexualidade do que o modo como a sublimou, mas há ideias feitas que se instalam com a gratuidade dos bolores e de vez em quando convém abrir as janelas.
Ava Gardner: não desmerece do anterior, seria também uma opção honrosa
Aliás se me for permitida uma certa parcialidade, uma por outra ampola de intolerância, valido as minhas hipóteses: apesar de Antínoo como poema ser superior a Epitalâmio, Fernando Pessoa é mais assíduo como heterossexual do que como homossexual, dado ser muito mais obsceno nesta manifestação. Lembremo-nos do que quanto a isto referira na carta a G.S.: «Como esses elementos (obscenos), por pequeno que seja o grau em que existem, são um certo estorvo para alguns processos mentais superiores, decidi, por duas vezes, eliminá-los pelo processo simples de os exprimir intensamente». Ora, por contraponto à sublimidade de Antínoo, Epitalâmio é «bestial»: Pessoa teve de se livrar mais intensamente do incómodo da atracção feminina.
Em segundo lugar, argumento nada despiciendo, Pessoa parece mais feliz como heterossexual. Há um humor solto, desopilante, e omnipresente nas cartas a Ofélia, que é um claro sinal de uma manifestação de enamoramento. Experimente o meu caro leitor separar unilateralmente desejo e riso: temo, palpita-me, que esteja condenado a um triste e longo jejum. Por isso vos deixo – e os meus amigos homossexuais mais sisudos que me perdoem – com este aviso de Pessoa: «Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado.» 

2 comentários:

  1. "desde que não seja ausente no acto".
    Pois.

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  2. Não consegui terminar de ler o texto devido á ignorância em chamar a homossexualidade de "opção sexual"....

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