quinta-feira, 31 de maio de 2012

REFLEXÕES DE UM NOMEADO

                                 francis bacon, contra os sucessos, a verdade do claro-escuro

Escreveu-me o meu editor e amigo brasileiro, o escritor Nicodemos Sena: «Percebe que a LETRASELVAGEM é como que um "patinho feio" entre as chamadas "grandes" editoras brasileiras, que dominam o "mercado". Na esteira dessa classificação, verei se consigo que algum grande jornal faça uma entrevista contigo.
Fico feliz por que esse resultado veio sem apelar para nenhumos dos deploráveis expedientes empregados pelos que buscam sucesso fácil. Ficar entre os 20, num concurso com bases internacionais, sem nenhuma "ajuda" além da qualidade intrínseca da obra e da edição, já é um feito extraordinário.
Ah, até agora não tive resposta da nova distribuidora brasileira que o Tavares indicou-me para levar teus livros para Moçambique. Mas ainda é tempo de resolvermos isso.»
Gosto de fazer de outsider, que a Letraselvagem, uma pequena editora, ainda que exímia no cuidado, elegância gráfica, e no trabalho obstinado na divulgação das coisas que publica, compareça por minha causa nas listas dos nomeados a um prémio literário com tanto foco mediático, no meio das poderosas Rocco, Alfaguara, Companhia das Letras, Cosac Naify, Leya, Record, com várias nomeações cada, e que os agentes da cultura ou os leitores se sintam intrigados e queiram prestar mais atenção à editora, isso dá-me tanto ou mais prazer que a minha nomeação.
Premiar o magnífico trabalho da Letraselvagem, do Nicodemos Sena e da sua equipa, até porque esta é uma editora feita por escritores, por pessoas que amam os livros e se batem pela dignidade do que escrevem e das suas condições de publicação, parece-me prioritário.
A Maldição de Ondina, foi o resultado de um ano e meio de trabalho, desde o primeiro esboço com 60 páginas, até à quarta versão com 220. Foi um livro arrancado ao chão das dúvidas, pois era o meu primeiro romance, depois de anos a só escrever contos, e as estruturas e modulações do romance são muito distintas. Já não me assusta o romance, mas foi vital respeitar o desafio e as peculiaridades do género, ainda para mais num livro cheio de tramas e que não se fixa num só plot, mas antes se vai entretecendo num desenvolvimento coral, como um filme de Robert Altman. Optar por um tipo de estrutura aberta e manter o interesse do leitor e a tensão era o desafio.
Mas ainda há dez minutos vestia a bata da Jade e lhe espreitava a cabeça para ver se a crise de piolhagem que devastou a escola já foi debelado, a meio daquele catanço, perguntei-me se o Rabelais não me consideraria um piolho. E acho que sim, que na farta cabeleira do Rabelais ainda não passarei de um piolho ruivo cheio de cagança que faz o karaoke do Pavarotti. E o importante é o próximo livro, esse que ainda não está resolvido; o importante é discernir o que há a reflectir com esta minha nomeação.
Duas coisas:
- Porque é que este livro não está editado em Portugal?
Espantoso que ninguém se tenha interrogado sobre isso. Eu conto. Mandei o primeiro capítulo (que é uma abertura forte, uma espécie de tufão na cabeça com um humor sacana, à Chandler) para o actual Ministro da Cultura, e disse-lhe, «meu caro, como tens a mania que gostas de policiais, aí te mando um cheirinho do meu, acho que ficava catita na Quetzal ou na Bertrand, se te apetecer ler o resto apita…». Não apitou. Por estritos motivos pessoais, não me grama, e nele o faro para as antipatias é maior que o nariz para o negócio.
Da Porto Editora responderam que gostavam muito mas que queriam uma versão «light», para o «gosto médio do leitor português».
Para a Teorema, que me editou outros livros, e que por contrato tinha direito a uma primeira leitura, mandei a primeira e canhestra versão do livro, para eles dizerem que não (nada responderam, como eu previa) e eu ficar com o livro liberto, pois depois de me terem pago direitos de autor por setenta, repito: setenta, livros vendidos de Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo (uma aldrabice que, eu que fui editor, declaro ser impossível, a não ser que a distribuidora tenha aceite como devoluções todos os livros vendidos a firme, o que é um tiro no pé), de 2008, um livro de 300 páginas que me levou dois anos de combate, percebi que aquele negócio só servia o senhor de bigode cor de barata velha que lá ocupava o trono.
Não enviei para a Caminho, Asa, D. Quixote, ou Assírio, porque tenho experiência de me terem sido devolvidos manuscritos por abrir, sem terem sido sequer lidos. Uma vez a Maria Alberta Menéres, que eu não conhecia, leu um infanto-juvenil meu, que lhe foi entregue por interposta amiga, e telefonou-me entusiasmada: «O sr. escreveu um clássico, vou levar já para a Asa». Eu respondi, «Agradeço-lhe a diligência, mas não creio que na Asa o aceitem…», «Porquê, interrogou-me ela, se o livro é tão bom…», «Pode ser bom, mas a reserva do senhor por mim é maior…». Não acreditou, e levou o livro mais o seu entusiasmo à Asa. Eu fiquei a pensar com os meus botões que depois de «escrever um clássico» só me restava dedicar-me à mecânica de avionetas, e aguardei. Sentado, felizmente. A cadeira apodreceu. Nem uma resposta, como eu previa.
E os editores em Portugal estão lá para fazer amigos e não negócios. Etc., etc.
Quando, a medo, enviei o manuscrito para o Brasil, recebi o contrato numa semana. O livro tinha sido lido como livro e sem o ecrã prévio da minha pessoa constituir um obstáculo para sua leitura. Compreendem? Só interessava a qualidade do livro. Ou a tinha ou não tinha. Parece que tinha, pois houve uma série de brasileiros que sem terem a ilusão de que me conhecem o leram e votaram nele para a nomeação.
É uma coisa triste ter que constatar que no meio literário conta mais os elos pessoais que a qualidade das coisas. Isto devia ser reflectido.

- Considero-me um nomeado vencido.
Ponto. Claro que é sempre confortável uma nomeação e gostei que aqueles mesmos jornalistas que não leem nem escrevem sobre os meus livros (de que à partida, sem os terem lido, não gostam), e vão quinze, chiça, tivessem que digitar o meu nome na notícia (no Público, para além do que escreveu sobre mim o EPC fui sempre ostracizado, e no Expresso, onde trabalhei 19 anos, também passou a ser norma silenciarem-me) e sentir que um prurido lhes descia pelo intestino delgado.
Mas é mais triste perceber que no essencial estou na mesma: precisava de um retiro de três meses para acabar o meu próximo romance e tenho de andar numa lufa-lufa idiota para pagar a casa e as propinas das crianças e não me afogar o fim do mês. Porque disse sempre que não a coisas que me encheriam a pança mas comprometeriam o meu espaço de liberdade e escrita. E então eis-me no calafrio.
Num calafrio que me obriga moralmente a concorrer, ora para a hipótese de poder aliviar com mexilhão de primeira os meus, ora para que faça sentido. Contudo, à partida gostaria de não ter concorrido. A literatura não tem nada a ver com prémios. Ainda que haja bom circo, é circo. Terei a humildade de o aceitar. Preferia no entanto estar no Japão a escrever uma biografia do Hokusai. Enquanto o não puder fazer serei sempre um nomeado vencido.
Bom, entretanto, anunciemos que A Maldição de Ondina, vai ser publicado em Portugal em Setembro pela Abysmo.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

UMA CARTA DIZ MAIS QUE MIL IMAGENS

Em Moçambique não há comunicadores, só há comunicólogos afrocentristas

Foi recebido nas redacções dos jornais moçambicanos
o comunicado com este teor:


Á DIRECÇÃO EDITORIAL


                                                                 Maputo, ao 24 de Maio de 2012


Assunto: Convite para participar no Concerto Coca-Cola Afro Mega Show


A CAPTIVA8, Agência de Comunicação escolhida pela  Coca-Cola, vem por meio desta, convidar a órgão de informação que o Sr. ( a ) representa, a participar no Concerto Musical para celebrar a nova campanha Bilhões de razões para acreditar em África” e comemorar a 10ª edição da Copa Coca-Cola.

A Campanha Coca-Cola Afro Mega Concerto tem os seguintes objectivos:

-Estimular os africanos a sentir orgulho a nível pessoal, comunitário, regional e global;

- Queremos que os africanos vejam que enquanto o mundo se encontra em um estado volátil do fluxo económico e social, África está emergindo como importante jogador económico, social e cultural;

-Reorientar a juventude (lideres culturais), a uma oportunidade e potencial que já existe em África.

 Os portões estarão abertos a partir das 13:00hrs, onde os consumidores poderão participar de algumas actividades antes do início do mega show.  (PERGUNTO: NOS PORTÕES)

 Transporte para os jornalistas garantido, começando a recolha dos mesmos as 14:00Hrs.

NB: os jornalistas devem indicar o local onde serão encontrados.

Agradecíamos que confirmassem a vossa presença.

 Agradecemos antecipadamente a Vossa presença, esperando merecer melhor compreensão e subscrevemo-nos com elevada estima e consideração.


          Milva Santos     

      (Directora geral)

Lady Milva

       eu é que agradeço antecipadamente o estímulo para, diante de tal mostra de desempenho, profissionalismo, rasgo de imaginação e acerto gramatical poder ilustrar cabalmente o nível dos estudantes em Moçambique e a habilitação dos seus jovens operadores.

O estado volátil do seu fluxo discursivo já fede e encontra-me em dia de menor compreensão, depois de duas semanas em que tive de adiar testes na universidade, em Maputo, por causa da recusa sistemática dos estudantes em ler um simples texto com um léxico de mais de trezentas palavras, e o resultado está à vista no seu comunicado.

Se a Captiva – Consultoria em Comunicação – arvora, na generalidade, o nível de elaboração demonstrado neste comunicado, só pode ser um embondeiro da comunicação e está justificado o orgulho africano.

A maior miséria do mundo está em não se ter sequer consciência da nossa miséria mental mas estou certo que a metade mais criativa da sua tão vincada personalidade, assim que lhe forem apontados os erros do seu comunicado, criará o slogan: CAGA E SEGUE! Porque temos de sobreviver a qualquer custo, não é?

A língua é o nosso JPS – se uma especialista em comunicação (que digo eu, se A DIRECTORA) não o tem, como evadir-se do canhoeiro que teima em conhecer o focinho do seu Fô by fô? Faço-me entender?

Gosto muito desse pormenor das Activações na vossa apresentação. É um fermento, não é? Dá para todo o tipo de bolos? Neste mundo tão estátua de si-mesmo, tão mortiço, tão marasmado, uma activação jovem sempre dá um pouco de pica, não é?

Se precisar alguma vez de um endireita, não tenha pejo em contactar-me, os meus preços são em conta e aceito meticais.

À Coca-Cola endereço os meus parabéns pelo discernimento na escolha da Agência – nada seria tão elucidativo sobre o futuro que nos espera com o potencial africano como esta campanha. Havia de facto “bilhões de motivos” para a Agência Captiva ter sido a escolhida; por uma vez num país de cunhas & esquemas triunfou o mérito.
BIBA O CONSERTADO!

Gostei também muito do elenco escolhido para o Show: a brigada da iliteracia musical moçambicana. Verdadeiramente à altura da vossa campanha. A massa bruta encadeada aderirá em força, é garantido, e se houver muita Coca será um acto promocional sublime.   

Infelizmente não poderei aceitar o vosso convite, nesse dia estarei com a família em Marte, a tentar recuperar das mazelas deste mundo, que, veja lá, ainda não entendeu que não queremos ser "consumidores" mas sim cidadãos de pleno direito, mas se o evento se repetir marcarei presença, eu e os meus, que cá em casa somos todos daqui.  Atenciosamente,

António Cabrita, Ex-Jornalista, escritor, Professor, Bacharelato em Comunicação 

PS. -Não se preocupe, a TDM e a Banda Larga em Moçambique estão à altura da sua competência, levei mais de uma hora para conseguir fazer este postal 

terça-feira, 22 de maio de 2012

LEMINSKI, O ARRAÇADO DE GROUCHO COM BASHÔ

O ”Vampiro Silencioso”, Dalton Trevisan, não é a única glória de Curitiba, não. Vêde Leminski (1944-1989), Paulo de sua graça, filho de polaca e de negra, um arraçado de Groucho com Bashô, de quem fez uma biografia, e que fez canções com o Caetano, para a Cor do Som, para dezenas de outros músicos, publicista e prosador experimental, que tem em Catatau a sua coroa de glória (e é de ter, e é de ter), concretista & dissidente, tropicalista & tradutor (falava seis línguas, entre as quais latim); poeta das arábias e cinturão preto do judo. O mais quem quiser que descubra, eu só abri a porta.
Esta antologia é feita de três livros (o homem escreveu para aí 20): La vie en Close, Caprichos & Relaxos e de Distraídos Venceremos. Há uma biografia divertida, O Bandido que sabia Latim, que se encontra pela net. Ah, já me esquecia, morreu de porre. Boa aragem:

CURITIBAS

Conheço esta cidade

como a palma da minha pica.

Sei onde o palácio

sei onde a fonte fica,



Só não sei da saudade

a fina flor que fabrica.

Ser, eu sei. Quem sabe,

esta cidade me significa.



                               MINHAS 7 QUEDAS

minha primeira queda
                                 não abriu o pára-quedas
                                
                                 daí passei feito uma
                                 pedra pra minha segunda queda
                                
                                 da segunda à terceira queda
                                 foi um pulo que é uma seda
nisso uma quinta queda
pega a quarta e arremeda
                                 na sexta continuei caindo
                                 agora com licença
                                 mais um abismo vem vindo


                                  
                                 quem me dera um abutre
                                 pra devorar meu coração!
                                 naco de carne crua
                                 comida de pé no balcão!

 quem me dera um apache
pra colher meu escalpo!
                                 que desta vez não escape
                                 nenhum disfarce!

 tomara que um furacão
caia sobre meu navio!
                                 que nenhum deus nem dragão
                                 possa ser meu alívio!


um dia

a gente ia ser homero
                            a obra nada menos que uma ilíada

 depois
                              a barra pesando
                              dava pra ser aí um rimbaud
                              um ungaretti um fernando pessoa qualquer
                              um lorca um éluard um ginsberg

 por fim
                              acabamos o pequeno poeta de província
                              que sempre fomos
                               por trás de tantas máscaras
                               que o tempo tratou como a flores





                                      um poema
que não se entende
é digno de nota

a dignidade suprema
                                      de um navio
perdendo a rota


                            PAPAJOYCEATWORK



(Noite. Joyce começa a escrever)

Madmanam eye! Light gone out!

(Cai no papel)

Mustmakesomething! Reverythming!

(Morde os lábios e gargalha)

A poorirish is a writer mehrlichtsearching,

yesternighteternidades!

(Troveja. Relâmpagos iluminam o quarto. Joyce

prossegue)

Thomasmorrows? Horriver!

Nice and sweet — the speech of England,

damnyou! Dont?

Must destroy it, just like a destroyer would do it

yourself! Como um verme. Yes, I no.

Done to Ireland! What have they done? It will do.

Beforeblacksblanco, we are even, this very evening!

Think is so.

My vengeance will be as big as say a country as big

as say Brazil.

Someday my prince will come. Our prince:

Seabastião!

Arrise, Lewisrockandcarroll!

Waterrestrela, am I a dayer?

Just a wakewriter.



AVISO AOS NÁUFRAGOS

 Esta página, por exemplo, 

não nasceu para ser lida.

Nasceu para ser pálida, 

um mero plágio da Ilíada,

alguma coisa que cala, 

folha que volta pro galho,

muito depois de caída.



Nasceu para ser praia, 

quem sabe Andrômeda, Antártida,

Himalaia, sílaba sentida, 

nasceu para ser última

a que não nasceu ainda.



Palavras trazidas de longe 

pelas águas do Nilo,

um dia, esta página, papiro, 

vai ter que ser traduzida,

para o símbolo, para o sânscrito, 

para todos os dialetos da Índia,

vai ter que dizer bom-dia 

ao que só se diz ao pé do ouvido,

vai ter que ser a brusca pedra 

onde alguém deixou cair o vidro.

Mão é assim que é a vida?



ICEBERG


Uma poesia ártica, 

claro, é isso que desejo.

Uma prática pálida, 

três versos de gelo.

Uma frase-superfície 

onde vida-frase alguma

não seja mais possível. 

Frase, não. Nenhuma,

Uma lira nula, 

reduzida ao puro mínimo,

um piscar do espírito, 

a única coisa única.

Mas falo. E, ao falar, provoco 

nuvens de equívocos

(ou enxame de monólogos?). 

Sim, inverno, estamos vivos.



 ANCH'IO SON PITTORE

 fra angélico 
quando pintava
uma madona col bambino 
se ajoelhava e rezava
como se fosse um menino

 orava diante da obra 
como se fosse pecado
pintar aquela senhora 
sem estar ajoelhado


 orava como se a obra 
fosse de deus não do homem



sossegue coração

ainda não é agora

a confusão prossegue

sonhos a fora



calma calma

logo mais a gente goza

perto do osso

a carne é mais gostosa





lá fora e no alto

o céu fazia

todas as estrelas que podia



na cozinha

debaixo da lâmpada

minha mãe escolhia

feijão e arroz

andrômeda para cá

altair para lá

sirius para cá

estrela dalva para lá






TEXTOS TEXTOS TEXTOS

malditas placas fenícias

cobertas de riscos rabiscos

como me deixastes os olhos piscos

a mente torta de malícias

ciscos



                           BLADE RUNNER WALTZ 



Em mil novecentos e oitenta e sempre,

ah, que tempos aqueles,

dançamos ao luar, ao som da valsa

A Perfeição do Amor Através da Dor e da Renúncia,

nome, confesso, um pouco longo,

mas os tempos, aquele tempo,

ah, não se faz mais tempo

como antigamente.

Aquilo sim é que eram horas,

dias enormes, semanas anos, minutos milênios,

e toda aquela fortuna em tempo

a gente gastava em bobagens,

amar, sonhar, dançar ao som da valsa,

aquelas falsas valsas de tão imenso nome lento

que a gente dançava em algum setembro

daqueles mil novecentos e oitenta e sempre.



                            O QUE PASSOU, PASSOU


Antigamente, se morria.

1907, digamos, aquilo sim

é que era morrer.

Morria gente todo dia,

e morria com muito prazer,

já que todo mundo sabia

que o Juízo, afinal, viria,

e todo mundo ia renascer.

Morria-se praticamente de tudo.

De doença, de parto, de tosse.

E ainda se morria de amor,

como se amar morte fosse.

Pra morrer, bastava um susto,

um lenço no vento, um suspiro e pronto,

lá se ia nosso defunto

para a terra dos pés juntos.

Dia de anos, casamento, batizado,

morrer era um tipo de festa,

uma das coisas da vida,

como ser ou não ser convidado.

O escândalo era de praxe.

Mas os danos eram pequenos.

Descansou. Partiu. Deus o tenha.

Sempre alguém tinha uma frase

que deixava aquilo mais ou menos,

Tinha coisas que matavam na certa.

Pepino com leite, vento encanado,

praga de velha e amor mal curado.

Tinha coisas que tem que morrer,

tinha coisas que tem que matar.

A honra, a terra e o sangue

mandou muita gente praquele lugar.

Que mais podia um velho fazer,

nos idos de 1916,

a não ser pegar pneumonia,

deixar tudo para os filhos

e virar fotografia?

Ninguém vivia pra sempre.

Afinal, a vida é um upa.

Não deu pra ir mais além.

Mas ninguém tem culpa.

Quem mandou não ser devoto

de Santo Inácio de Acapulco,

Menino Jesus de Praga?

O diabo anda solto.

Aqui se faz, aqui se paga.

Almoçou e fez a barba,

tomou banho e foi no vento.

Não tem o que reclamar.

Agora, vamos ao testamento.

Hoje, a morte está difícil.

Tem recursos, tem asilos, tem remédios.

Agora, a morte tem limites.

E, em caso de necessidade,

a ciência da eternidade

Inventou a criônica.

Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica.



esse vôo

ao vento que mais dói

eu dôo



                                     
                                              saber é pouco



como é que a água do mar

entra dentro do coco?




o dia é um escombro

o vôo das pombas

sobre as próprias sombras






a noite — enorme

tudo dorme

menos teu nome




o corvo nada em ouro

nem o céu estraga o vôo

nem o vôo dana o céu




chove no orvalho

a chave na porta

como uma flor no galho




A LUA NO CINEMA

 A lua foi ao cinema,
passava um filme muito engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

 Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

 A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
- Amanheça, por favor!



A palmeira estremece
palmas pra ela
que ela merece


 Amar é um elo
entre o azul
e o amarelo



DESENCONTRÁRIOS

 Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.

Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.

Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
fazer poesias, eu sinto, apenas isso

Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.



nu como um grego
ouço um músico negro
e me desagrego


soprando esse bambu
só tiro
o que lhe deu o vento




Foi em 1963, na “Semana Nacional de Poesia de Vanguarda”, em Belo Horizonte, que o Paulo Leminski nos apareceu, 18 ou 19 anos, Rimbaud curitibano com físico de judoca, escandindo versos homéricos, como se fosse um discípulo zen de Bashô, o Senhor Bananeira, recém-egresso do Templo Neopitagórico do simbolista filelênico Dario Veloso.
            Noigandres, com faro poundiano, o acolheu na plataforma de lançamento de Invenção, lampiro-mais-que-vampiro de Curitiba, faiscante de poesia e de vida. Aí começou tudo. Caipira cabotino (como diz afetuosamente o Julinho Bressane) ou polilingüe paroquiano cósmico, como eu preferiria sintetizar numa fórmula ideogrâmica de contrastes, esse caboclo polaco-paranaense soube, muito precocemente, deglutir o pau-brasil oswaldiano e educar-se na pedra filosofal da poesia concreta (até hoje no caminho da poesia brasileira), pedra de fundação e de toque, magneto de poetas-poetas.
            Das primeiras invencionices ao Catatau, da poesia destabocada e lírica (mas sempre construída, sabida, de fabbro, de fazedor) ao verso verde-verdura da canção trovadoresco-popular, o Leminski vem chovendo no endomingado piquenique sobre a erva em que se converteu a neoacadêmica poesia brasileira de hoje, dividida entre institucionalizadas marginalidades plácidas e escoteiros orfeônicos, de medalhinha e braçadeira. E é bom que chova mesmo, com pedra e pau-a-pique. Evoé Leminski!

Haroldo de Campos