terça-feira, 31 de janeiro de 2012

DA IMPORTÂNCIA DE SABER NADAR


1
«Joyce e a família estavam vivendo na Suíça, e Jung, que escrevera um texto sobre o Ulysses e portanto sabia muito bem quem era Joyce, tinha ali sua clínica. Joyce então foi vê-lo, para lhe expor o dilema da filha, e disse a Jung: "Aqui estão os textos que ela escreve, e o que ela escreve é o mesmo que eu escrevo", porque ele estava escrevendo o Finnegans Wake,  um texto totalmente psicótico, se o olharmos dessa perspectiva: inteiramente fragmentado, onírico,  atravessado pela impossibilidade de construir com a linguagem outra coisa que não seja a dispersão. Assim, Joyce disse a Jung que sua filha escrevia a mesma coisa que ele, e Jung lhe respondeu: "Mas onde você nada, ela se afoga". É a melhor definição que conheço da distinção entre um artista e... outra coisa, que não vou chamar de outro modo que não esse.»

in Ricardo Piglia., Formas Breves, Companhia das Letras

2
O HOMEM JUNTO AO MAR

Há um homem derrubado junto ao mar.
Não julgues agora que vou descrevê-lo como a um afogado.
É um pobre homem que agoniza na margem,
mas ainda que o tenham arrastado as ondas
e mais não seja que uma frágil trama que respira
uns olhos
as mãos que às apalpadelas
      buscam
             certezas -
ainda que já não lhe sirva de nada
gritar ou ficar mudo
e a onda mais débil
o possa destruir e fundir no seu elemento -,
eu sei que ele está vivo
a todo e comprimento e largura do seu corpo.

Heberto Padilla (tradução minha)

3

«(…)
Sinto que nado adormecido dentro de um tonel de vinho.
Nado com as duas mãos amarradas.»

José Lezama Lima (tradução minha, epígrafe do meu romance, A Maldição de Ondina)

domingo, 29 de janeiro de 2012

A FOGOSIDADE DOS ESCRITORES

hemingway

Batíamo-nos os dois aos últimos espargos da mesa. Eu acabei por ceder:
- Face ao teu corpanzil, compreendo que não só és o homem de todas as mulheres como o espargo de todos os homens...
Há anos que ríamos juntos, em jantares esporádicos mas animados, onde discutíamos literatura, mulheres, o desassossego do mundo. Era um dos escritores mais badalados da cidade e tinha a vivacidade de quem nunca perdeu o arreganho campestre para acomodar a terra ao saxo, convertendo-a, apesar das geadas ou da seca, aos seus humores.
Estávamos num encontro internacional de escritores, hospedados no mesmo hotel, e o quarto dele ficava entalado entre o meu e o do meu editor, um homem mais velho, com fama de ter sido um arame inexcedível nos lençóis. E com quem eu precisamente almoçava, deleitando-me com os seus desacatos amorosos na Terra do Fogo, em companhia de um dos seus autores chilenos.
A espaços, admirávamos a beldade que acompanhava o “comedor de todos os espargos”, uma elegante delegada de propaganda médica, segundo as fontes de Aníbal, o meu editor, que – dizia - tinha as pernas no mais fundo dos seus olhos.
“Hás-de aprender muitas coisas sobre as pessoas, se dedicares o melhor da tua atenção às coisas irrelevantes, aquela malha na coxa dela, por exemplo ...”, era uma das máximas preferidas de Aníbal que, se fosse peixe, seria um lúcio por causa da vaidade dos bigodes.
A tarde correu bem, as palestras fluíram sem altercações de maior entre os participantes e a tarde caiu com a desidratação do costume. Mitigada em alguns whiskies temperados de histórias de valdevinos.
O jantar esteve sem gás, até porque a mexicana que me interessava não compareceu.
Trocadas ao serão algumas histórias mais melancólicas – o álcool apertava – chegou a hora da deita. E foi aí que tudo começou.
No pequeno-almoço as olheiras arregalavam os olhos caídos. Foi o Aníbal quem abriu as contendas:
- Você ouviu, hoje? Toda a noite, até aclarar.
- E desceram comigo no elevador, frescos como alfaces.
- Sempre que me sentar no Gijón em Cáceres para comer jabalí a la plancha hei-de lembrar-me desta noite e do gabiru, que é da mesma raça...
- É um feroz concorrente, ó Áníbal... - provoquei eu.
- Paz à minha alma... eu já estou como o Buñuel que aos sessenta rejubilava, “Graças a Deus que me livrei da tirania do sexo!”... – e, num sussuro eivado de malícia, inquiriu – Mas você está interessado em dormir hoje, Valdemar?
- Se lhe parece...
- Então... – continuou sorridente – lá para o meio-dia, depois das camareiras terem dado a volta aos quartos, eu retenho-os aqui e você...
Foi um fartote a imaginar a cena.
Aníbal distraiu-os e eu subi ao quarto dele, cuja varanda geminava com a do casal em núpcias. Dividia-as um murete, ultrapassado sem dificuldade.
Como ele havia previsto, com a sua sabedoria de sátiro, a porta para a varanda estava semi-aberta, no fito de ventilar o cheiro a sexo.
A cama estava feita, o que permitiria que a surpresa fosse total. Abri o lençol e o cobertor cuidadosamente, dobrando-os num ângulo perfeito de 45 graus, e espalhei o cardo esmagado que havíamos colhido na duna entre o hotel e a praia. Repus o lençol e o cobertor na mesma arrumação em que os encontrara e sentei-me sorridente, a imaginar a cena.
Foi aí que dei pelo gravador, que estava na mesa-de-cabeceira. Tinha uma cassete. Não resisti a carregar no play.
Passei a cassete a Aníbal que, nessa tarde, foi comprar um “tijolo” de propósito.
E à noite pôs a cassete a tocar, na função repeat. Os gemidos e murmúrios do acto amoroso invadiram o corredor.
Na manhã seguinte encontrámos o casal, esmaecido, à entrada do bufet. Provocação do Aníbal:
- Tem um ar fatigado, Artur, não me diga que passou a noite a exercitar a métrica...
Cora o outro, num sorriso agastado:
- Eh pá, você não me deixou dormir. 


sábado, 28 de janeiro de 2012

TRANSATLÂNTICOS QUE TRESPASSAM ICEBERGS

michaux, plume

1
Para o Leonardo da Vinci a mão pensava, no exactíssimo sentido em que para muitos compositores a orelha criva de sons e harmonias incriadas a mente do compositor.
Hoje fui entregar uma revisão e no gabinete do editor, na amena cavaqueira de sempre, dei conta que o ar condicionado me despertava o reumático na mão. Uma moinha que aparafusa, contínua, com a avidez do mais álgido fungo.
E estou a ouvir o meu amigo e já a pensar noutra coisa que aos olhos de muitos será vulgar mas que em mim retine como uma campainha mágica:
o Henry Michaux sofreu de uma feroz osteoporose na mão aos 56 anos, que a tolheu, tendo-o feito descobrir, a expressão é dele «o homem esquerdo». Ora não há coincidências e o esburacamento ósseo da mão daquele que é para mim um dos definitivos poetas do século XX só pode ter sido uma vendetta do sistema ósseo sobre uma mão que sonhava demais.
O Michaux foi dos poucos que fez vários transatlânticos trespassarem icebergs sem haver conhecimento de um único naufrágio.
Mãos mais  articuladas que as pálpebras de deus.

2
A Ana Cristina Leonardo, jornalista e crítica literária, a pena muitas vezes lúcida da Meditação na Pastelaria, uma intelectual a quem move a transparência de nunca ter gingado à procura de consensos e tem uma opinião forte sobre quase tudo (ela não se inibe de querer-se o contrário do “pensamento débil”, coisa a que sou mais atreito), escreveu há uns meses uma coisa no seu blogue a que sempre pensei responder.
Acontece que não tinha o livro em casa e portanto só me podia apoiar na minha fé, o que não é argumento suficiente contra a Cristina (e tem razão), pelo que tive de esperar que me devolvessem o livro.
Foi ontem, o livro é os Cem Anos de Solidão, e pude finalmente reler umas páginas enquanto digeria o que ela havia escrito, onde se dizia, preto no cinzento, pois cito de memória, que o romance do Garcia Marquez não havia resistido ao tempo.
Estamos em desacordo. Explico porquê, e só me vou ater à primeira página do livro, que me dá os argumentos suficientes.
O livro começa com a célebre frase que toda a gente conhece: «Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.»
Poucos inícios são tão fortes, a) pelo contraste entre uma situação sumamente grave e uma evocação aparentemente tão irrelevante – como se o Buendía tivesse o sentido das proporções avariado e não houvesse nele, estranho para um militar, o mais breve resquício duma noção de hierarquia na narrativa de uma vida, e todos os signos se equivalessem; b) pela metonímia que trepa sentido anexo até se converter numa metáfora estonteante e quase invisível e que é introduzida pelo gelo: a morte é uma congelação.
Quando Buendía se recorda, já está morto.
É difícil fazer melhor.
Continua o parágrafo:
«Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e cana, construídas na margem de um rio de águas transparentes que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos.»   
A transparência das águas é traduzida pela lente que amplia o tamanho das pedras: quando nós vemos os ovos pré-históricos deixamos de ver o fluido que as permeia, o efeito da transparência está genialmente plasmado. Em literatura não se pode fazer melhor.
Todos os anos, pelo mês de Março, chegavam os ciganos e as suas maravilhas. A primeira maravilha que levaram a Macondo foi o íman. Mas antes lê-se:
«O mundo era tão recente que muitas coisas ainda não tinham nome e para as mencionar era preciso apontar com o dedo
As coisas sem nome são coisas sem vínculo, sem o elo que instala o circuito entre as pessoas e o acontecimento das coisas que as torna partilháveis, empáticas. O que o íman magicamente provoca.
Portanto, o aparecimento do íman não é mais um efeito fácil, não está ali posto ao acaso mas é compelido pela necessidade diegética, é a sua transposição mais orgânica.
Vejamos agora a apresentação do primeiro dos protagonistas da narrativa, Melquíades:
«Um cigano corpulento, de barba ferina e mãos de pardal dos telhados…»
Esta descrição, sobretudo a das mãos, ainda que o adjectivo ferino transmita de imediato algo de diabólico (porque indomável) à personagem, vaza de imediato o carácter da personagem: tão simpático e saltitante (isto é, errante), como sedutor e capturador (no sentido em que torna seu tudo o que toca, com inexplicável beneplácito dos demais, como se fosse a serpente que hipnotiza os pássaros). Síndroma de Estocolmo se chama ao efeito que o Melquíades exercerá sobre a comunidade.  
O que leio na segunda metade da página faz-me crer que, por um lado, como até aqui, não haverá uma palavra só no romance que não esteja enganchada num sentido posterior no romance, e por outro, pode haver uma leitura gnóstica do romance, o que inscreve no seu cerne uma pluralidade de leituras, para além da do gozo imediato da trama.
Se isto não são sinais de um enorme romance, não sei o que seja um romance intemporal.
E só falámos da primeira página.
Não creio que quem esteve anos ao rés da miséria (como saberão, o Garcia Marquez quando acabou o romance nem teve dinheiro para mandar o manuscrito inteiro para o editor, só lhe restando dinheiro para o selo correspondente a metade do peso que tal representaria, isto é, só mandou metade do romance) para acabar um livro ceda a falhar uma palavra, a meter numa página que fosse um sinónimo qualquer em vez da única palavra necessária à tessitura.
O que torna a sua malha absolutamente responsável.
Por isso não creio que se possa dizer que o Cem Anos de Solidão tenha envelhecido.



quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O ANEL E O APERTO: A RENDIÇÃO DO ESTRÓINA


Não vale a pena assobiar para o lado, fazendo de conta que não aconteceu nada.
Casei-me.
Houve dois momentos embaraçosos, antes e durante:
o tête à tête com o meu corpo quando me despi no gabinete de provas da boutique
 onde comprei o fato e, num espelho alheio e menos macio e ameno, tive de contemplar a massa profusa e decaída de um corpinho que enfim já teve o seu esplendor grego e agora lembra o de um debochado bizantino – um momento de desânimo, talvez a noiva merecesse couve mais tenra;
a outra situação embaraçosa foi quando, pestanejando muito, me saiu o why not, antes de emendar, estava a brincar e de ter assinado o sim.
Se algum dos amigos me quiser dedicar uma musiqueta, que seja The touch of your lips, de Chet Baker, que não partilho já aqui pela total falta de tempo que esconde uma feroz inépcia técnica.
Este meu casamento foi também um casamento político: o do amor contra a rataria.
Foi provavelmente um dos últimos casamentos de amor num tempo em que os Presidentes da República convidam à venalidade.
Quando Cavaco Silva, num enlevo hipócrita, se lastima da sua reforma sem simultaneamente se demitir por até aí não ter dado conta de como fizera tão pouco pelo bem-estar dos cidadãos do seu país (- eis a perícia gaiteira de um ratice deslumbrada por ter subido da terra dos figos à dos melões), o mundo fica mais transparente, dado que a mensagem é:
“… não vale a pena trabalharem, esforçarem-se, o mérito nunca recompensará, vejam o meu caso, cheguei a Presidente e não me chega, só há uma possibilidade: Fodam a filha do Rei!
Exorto-vos a fazer render o corpinho (daí a minha angústia no gabinete da prova, já não reúno condições para essa provação), mintam, manipulem as emoções, realizem casamentos de conveniência, é o único modo de safarem a pele!”
Enquanto eu, neste país à beira do caos, violento e duma aspereza social metafísica, posso ainda casar-me por amor: caso-me apesar de não termos reforma, ó desavergonhado magistrado! Não há casamento de maior inconveniência.
Caso-me, arriscando mais uma vez o Pacto, apostando na Pessoa e não no Contribuinte – compreende a diferença, ó magna figura?
Mas dizia que a festarola promete correr bem, só tenho pena que o Carlos Vaz Marques não venha fazer a reportagem – sempre foi um dos meus grandes sonhos: ver um casamento meu na rádio – mas o Carlos já me prometeu que estará nas bodas de prata.
E segue o discurso que botarei esta noite contra a insistência dos convidados e que, homem prevenido, “improvisei” de véspera. E dirá o noivo:    

Maravilhoso povo maputense
gente que veio por bem e gente que veio ao engano, bem hajam.
Desde que montei o meu primeiro triciclo, aos meus dois anos, que não me ocorria dar um passo tão grave.
Conduzir o triciclo por veredas íngremes e rotundas salpicadas de sapatos, sem chocar com o Dick, o coolie que havia lá em casa, constituiu o meu primeiro encontro com o perigo.
Porque fomos feitos para andar sobre duas pernas e não sobre três rodas.
Para andar sobre três pernas existem precisamente os triciclos, de quem nós fomos as damas de companhia.
Mas o nosso natural são as duas, ambas as pernas, com que tropeçamos diariamente no olhar das raparigas matreiras…
Perdão, este era o meu discurso de despedida de solteiro…
Um momento. Enganei-me no bolso. Ah, cá esta…
Recomeço.
Prezados e condignos filhos de Delagoa Bay, aos que vieram por bem e aos que vieram ao engano, bem hajam…
desde a primeira vez em que me recusei montar a cavalo
que não me ocorria dar um passo tão grave,
ocorrendo-me agora que o berreiro que fiz nesse dia no hipódromo
significaria o pânico de não chegar inteiro a este dia
sem lesões centrais e periféricas que esfacelassem a minha capacidade para cumprir os deveres da conjugalidade
e outros de pendor mais abstracto
mas mantenho que a minha vida se decidiu nesse primeiro não
diante de um alazão a quem o tratador tratava por Raimundo,
e esse não só hoje ganhou sentido no rotundo sim que dei esta manhã
num cartório revestido a capulanas e sob o olhar pátrio e benevolente
do presidente deste povo maravilhoso
que lá fora se esmifra e acotela no chapa, ordeiro,
e diria que o sim até ribombou aos tímpanos do conservador que exultou
ao ponto de lhe terem caído as calças ao som da sílaba
facto pelo qual se desculpou com o insólito sumiço do cinto
fanado por um vizinho com manápulas de larápio
e ribomba ainda nos meus tímpanos amaciados pelo sim
ouvido a esta dama antes do deslassar da cintura do escolápio.
A esta dama Teresa de Cordato, e Noronha como minha mãe,
prometi eu no primeiro dia na feira popular do nosso primeiro almoço
prometi eu, dizia, três meninas com quem andarmos na montanha russa, faltando-nos neste momento adquirir apenas
os últimos dez metros de carril para nos mudarmos para Durban
onde montaremos a maior montanha russa da África Austral,
plano que desde hoje e daqui deixa de ser secreto.
Mas mais vos conto ilustres e embevecidos convidados,
que na verdade nunca saímos da Feira Popular
porquanto nas primeiras férias em que nos fatigámos mutuamente foi mamã Teresa tomada por uma labirintite que a manteve deitada quinze dias com vertigens que desenharam naquele leito a cordilheira dos Alpes
o que nos enleou para sempre em cordas e picaretas,
e por isso, agora, só para distinguir um bocadinho só que seja
este nó cego a doer em paixão tisnada
como li em poeta lírico desses que até no buço da amada descortinam os lírios do rio vos confesso que de amor amado já não estranho
desde o sim ao retrovisor que nos atou
e anuncio que, apesar de a partir de hoje
suspeitar que alguém se fará rogado sempre que lhe pedir irrigas-me
o púcaro com martini, une bonne voyage ç’est comme ça,
e mesmo até para os que afinal contra todos os avisos
não trouxeram xaile, anuncio
que considero aberto o baile.



sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A MÃO É MAIOR DO QUE A MÃE DELE

está lá, é do boletim metereológico?
A indistinta criatura olha o céu estrelado e boceja. Pensa, ‘tá na hora da deita. E deita-se, no quarto, deixando o livro que lia sobre a mesa na varanda.
Levanta-se com um dilúvio desatado, lamenta-se, merda. E vai à varanda confirmar o naufrágio da antologia de poetas sul-americanos que, sob a batuta de Saul Yurkievich, protesta à chuva. Leva o aquário para dentro, pega no secador da filha e tenta remediar o mal.
Depois com uma pinça separa folha a folha, amaldiçoando a imprudência.
Mas pode-se adivinhar que depois de um céu grávido de luzes, sem a mais esfiapada nuvem, se abata um ciclone? Que loucura é esta?
Abre o livro, e à primeira, a poesia explica:
«A mão de deus é maior do que ele.
O seu enorme contacto faz ganir os astros.
Na obscuridade o silêncio dilacerado testemunha a sua carne decaída.
Lá em baixo, perpétuo, um esplendor defunto – Incessantemente, em movimento  - - Revelação: gaguez celeste.
Encerramento do dia: é ele. - - Propriedade da sua mão, maior do que ele.»
A mão é maior do que a mãe dele. Sempre foi. Por isso é difícil extingui-lo, fogo só se apaga com fogo.
A Blanca Varela foi quem deu a lição, eu fiz o karaoke.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

CURA AS INSÓNIAS

gamada à Julieta Duarte, a autoria não consegui precisar

É impossível não olhar detidamente para esta foto e não ficar com a pele de galinha. A fotografia alastra sob a pele como um oráculo, e permite ler uma panóplia de tensões:
O momento político em que vivemos - atrevimento ou morte.
O nosso tête à tête diário com a virtual possibilidade de estrear o féretro que Deus nos deu.
Mais que a resistência, a enorme resiliência que molda o homem: veja-se a capacidade do fotógrafo para, a) se abstrair, b) se reenquadrar. Se não fosse fotógrafo seria um óptimo bombeiro.
Paradoxalmente, o estado doentio de voyeurismo a que o homem chegou, afadigado em ser espectador da sua própria morte, o que me lembra aquele estóico doido a que se refere Séneca (o doido é meu) e que aguardava na fila da morte, sereno, com grande atenção ao momento da execução dos que o precediam, pois, dizia, queria captar o momento preciso em que os cinco gramas da alma se evolavam do corpo e exactamente por que zona do corpo.
Um estado civilizacional: o fotógrafo acredita que a educação recebida pelo outro não lhe permite ainda desferir o chumbo.
Ninguém se mete numa destas só por fezada, tem que ter fé. Fé na deslocalização da morte.
Uma boa situação dramática que pode desdobrar-se numa boa pergunta a fazer aos meus alunos de dramaturgia: qual deles é do Real e qual é do Barcelona – e, sobretudo, porquê?
Apesar de tudo, o triunfo da democracia: é horizontal o desafio.
Que aquele fotógrafo, hoje, cura as insónias.
Na Grécia, a imaginação dependia das emoções recebidas pelos sentidos: ainda não saímos disso, ou seja, não demos um passo em relação às caganeiras de Diógenes.
Que a ausência (do fotógrafo baleado) pode ainda triunfar sobre a morte: e temos a realidade vista pelo prisma de Mallarmé.
Que, esteja ou não feito o clic, a tonalidade será sinistra.
Que, em ficando-lhe o corpo subitamente leve, pode aquele fotógrafo nunca ter a oportunidade de fotografar o José Rodrigues dos Santos.
Que um militar terá sempre os reflexos mais condicionados que um touro na arena e, sobretudo, nunca terá a honorabilidade deste: apontar assim a arma a uma lente indefesa.
Esta foto é mais uma tétrica escultura de Sam Jinks.
A Jade dirá: aquele senhor (o militar) é muito malcriado. Porquê, perguntarei, cofiando a barba. Porque, dirá ela, ligeiramente fanhosa (está constipada), não pediu licença ao outro para lhe salvar a alma.
Esta fotografia é a metáfora ideal para explicar que o Amor ainda só respira por uma narina.

Ops, que fazem aqueles dois entre o maestro e a banda? O mesmo pergunto eu, na foto acima, com que imprudência se colocaram tão inocentes máquinas entre dois homens?
Se fosse pai do fotógrafo dava-lhe umas boas latadas.
Se fosse mãe aninhava-o, porque o meu filho se tinha feito uma pessoa, alguém que tem medo e avança.
Esta foto lembra-me dois versos de Bernard Noël: «o vento de passado de pé/ atrás da nuca». Estão a ver a ligação, não estão?







quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O ALERTA AMARELO


Não é bem a descoberta de um tipo de batata nova que em duas dentadas acabasse com o herpes e me devolvesse o cabelo louro, mas quase. É uma pequena derrocada moral, a forma como aos 50 anos cedo à chantagem emocional de um felino, animais para com quem sempre mantive a equidistância de uma porta giratória.
Pertenci sempre ao Clube Amigo do Cão. O fiel amigo é aquilo em que o tornamos. Um gato é como o vapor, translucidez e desapego. O dono de um gato não passa do selo de uma carta que ainda não foi usada. Para um cão sou o seu inimigo ou o seu deus.
Admirava que olhasse para os gatos como membranas ambulatórias embrulhadas em carpete? 
Há um ano a professora da Jade deu-lhe um gatinho. Que fofo, exultou ela, esperando de mim um reforço. Sorriso amarelo, rajadas de um humor ventoso.
Assim se instalou o Sebastião cá em casa. Um pândego para as miúdas, a Luna já lhe fez uma música no violino, que o sacrista escutou com a bondade de uma múmia egípcia.
Desculpem, escrevo egícia com o «p» porque esta consoante é a cripta secreta das pirâmides.
O insólito é o que tem vindo a acontecer.
Eu vou à cozinha, levanto-me na sala ou no quarto e o bicho adivinha, ele vai à cozinha.
Imediatamente se me enleia nas pernas, parece um rio a correr entre a curva e contra-curva dos meus pés, e que, em chegando à cozinha, desagua. Mas aí é que as coisas acontecem, assim que desemboca na cozinha vira-se e num impulso escorrega de costas na tijoleira da cozinha como se fosse um jogador de hóquei do gelo a comemorar um golo.
Desliza até chegar ao frigorífico, aí instintivamente pára, adivinhando, ele vai ao frigo.
E, de pernas para o ar, oferece-me o ventre, enquanto lança a cabeça para trás e fecha os olhos, no antegozo da carícia.
É o meu pé que se entrega ao contacto, aos movimentos naquela pelúcia, o pescoço dele esticado para a carícia se alastrar numa espécie de golfo, do baixo-ventre ao queixo. Quatro cinco vezes ao dia, com a precisão de um pêndulo.
A palma do meu pé começa a estar macia. À noite, por duas outras vezes parece-me que ronrona, a palma, e ao dedo grande já o ouvi miar. As unhas encurvam-se-me numa garra.
Ainda não sei como contar à minha mulher que estou em alerta amarelo.  


DEUS, QUE COCKPIT?

mark rothko

Não sou cristão, pois não basta ter sido baptizado para assumir uma tal condição – isso é a grande falácia do condicionamento político ou do catolicismo, que têm estado demasiadamente em fusão. Mas não prescindo de uma certa “espiritualidade” (detesto a palavra) e de alguma reflexão sobre isso. Aqui deixo uns apontamentos.


                                                                                                                      para o Rui Almeida 

A vida enxameia-nos o caminho de paradoxos, e muitos são lá postos para nos divertir. Como o de sacar a história que reproduzo em baixo do livro de um brilhante ateu confesso, Xavier Rubert de Ventós:
Havia um monge budista famoso pela sua imensa sabedoria, que o ancorara num silêncio inviolável. Todos os noviços do mosteiro respeitavam e reverenciavam o seu silêncio, mas, cumpridos os 85 anos, ao verem que declinava a sua saúde, decidiram pedir-lhe que, enfim, falasse.
- Explique-nos, antes de morrer, o que em todos estes anos haveis aprendido e      contemplado. Não vos ides sem deixar-nos uma pista que nos ajude no estudo e nos oriente a contemplação.
E o ancião, respondia a tudo com um sorriso e continuava mudo. À medida que a sua saúde se ia debilitando, a impaciência crescia entre os noviços. E cresceu ao ponto de, no leito de morte, os noviços desatarem aos berros à sua cabeceira, de o ofenderem inclusive, na súplica de uma sílaba do seu tesouro espiritual.
- Não sejais egoísta e cruel! Para quê levar consigo tudo o que haveis acumulado e que pode servir-nos como luz e guia.
Mas o ancião continuava silencioso, imperturbável entre os jovens que começavam a maltratá-lo. E foi só no momento de exalar o último suspiro que soltou uma palavra, a sua única palavra:
- Fogo!
E o mosteiro começou a arder.
Afastemos a hipótese do incêndio ser uma expressão metafórica – o mosteiro ardeu até aos caboucos.
Instaura-se aqui um outro nível, no qual a palavra deixou de ser o interruptor que acciona uma certa tensão metafórica e passa à ordem da experiência, a um acontecer literal, fogo posto que actua como um revertor de escalas e de natureza, na atenção e no fulcro.
O que obstrui as fantasias de uma prática ao alcance de todos. Alcança quem pode – embora se deva abstrair aqui a fantasia inversa, que é a de supor que existe neste movimento um suplemento de heroísmo. Depois do fogo não fica uma trave a que se agarre o ego.
E como sabiam o velho monge e Wittgenstein, que cito, a experiência é intransmissível: «Os filósofos que pensam ser possível fazer, por assim dizer, no pensamento uma extensão da experiência, deveriam pensar em que é possível transmitir uma conversa, mas não o sarampo, por telefone».
Está por Cratilo quem pode, está por Sócrates quem pode. Ambos têm razão.


«O segredo é a possessão na unidade, não a perda na unidade. Deus e o homem, o mundo e o Além, devém Um quando se conhecem um ao outro. A sua divisão é a causa da ignorância, da mesma forma que a ignorância é a causa do sofrimento»: foi necessário ter lido este aforismo de Shrî Aurobindo, a oito mil metros de altitude, a caminho da Índia, aos 38 anos, para me reconciliar com uma hipotética ideia de Deus. Já não o acuso, novas grelhas de leitura corrigem-me a sua acção trágica.
E aos 47 anos perdi o receio de declarar que apesar de rejeitar o modelo do catolicismo participo pelo menos da crença que alguma «tradição hermética» sugere e que alude a «um segundo nascimento» do homem e a uma dimensão da História entendida de forma kairológica.


Na adolescência e nos primeiros anos de adulto, caldeado por uma propensão libertária, era absolutamente contra o casamento. Aos vinte e seis aceitei casar-me dando como certo que se o amor não merecia o sacrifício de todas as leis, inclusive as próprias, então decompor-se-ia na sua insignificância. Era uma intuição. O casamento quis contrariar-me e regurgitou-me ao fim de ano e meio.
Na Índia, dez anos depois, no pico de umas fragas onde se situava um templo a Shiva sou fintado pele breve diálogo com o brâmane responsável por aquele espaço sagrado – conversa que reproduzi assim que cheguei ao hotel:
«Sorrindo sempre, o brâmane pega-me de caras:
-       Você tem um olhar límpido, magnífico.
Desmancho-me, num sorriso. Andar vinte horas de avião para ser desmascarado logo à primeira, pela vaidade. Não sei como responder e anuo:
-       Obrigado.
Mas as surpresas não se ficavam por aqui:
-       Estou pronto.
-       Pronto?
-       Pronto para ir para qualquer lugar.
-       Não percebo.
-       Pode levar-me consigo que eu trabalho em qualquer coisa, sou um bom técnico.
-       Um homem dos sete instrumentos?
-       Yes. Lisboa fica muito longe de Copenhague?
-       Três mil quilómetros.
-       É longe, mas não faz mal, estou pronto.
-       Você é um «padre». E os seus fiéis?
-       Shiva está no coração. E estou farto de calhaus. Dá-me um Classic?
Faço uma pausa para digerir a catadupa de contrasensos e lamento:
-       Não posso levá-lo, homem. Já tenho filhos, muitos filhos, seria mais...
-       É como o excesso de bagagem não é? Peso a mais. É uma estranha forma de classificar uma alma, mas compreendo... Um talkman, ao menos um talkman não terá a mais?»
Pedia-me o gravador. Fui incapaz de não lho dar, com uma cassete de Arvo Part lá dentro. Que desdita a dele e nossa, que na limpidez daqueles ares esperávamos por uma palavras de mestre, por uma sílaba entremeada de sublimidade!
Anos depois, relendo a Bhagavad Gita descubro uma passagem onde Krishna, depois de ter longamente analisado com o seu discípulo Arjuna os princípios que comandam o «yoga da acção» e lhe ter explicado que «aquele que age conforme a sua natureza atinge a perfeição», segreda no fim ao seu discípulo: «Desapega-te de todas as leis...», após o que acrescenta: «Simplesmente, esta palavra nunca a digas a aqueles que são sem obediência e sem devoção».
Estas últimas palavras dão conta do carácter moral que subjaz ao conhecimento – na medida em que aquele que não já necessita de recorrer a qualquer autoridade para validar a efectividade da liberdade que experimenta aceita ainda o rito, essa garantia exterior, como penhor humano -  mas o que me interessa sublinhar é que a comunhão com a plenitude se realiza apesar do próprio e ao arrepio das suas leis. Percebi então que havia agido bem ao casar-me contra os meus princípios e que aquele brâmane que eu na altura verberara como um “desertor” e uma vítima da voragem consumista que ameaça desvirtuar a Índia era afinal uma criatura livre e de uma intensa lucidez.


O meu pai habitava um anti-clericalismo tão subtil que, após uma insistência sem esmorecimento de minha mãe, me deixou ir à missa com a minha tia surda. Sem querer, esta insólita concessão – a minha tia surda não acedia directamente à Palavra, o que disparava em mim um Sherlock Holmes obcecado pela charada da dádiva  – levedou-me O Mistério.
Durante anos, pensei que a Fé me fora vedada por aquele exercício de ficar a admirar a resoluta concentração de minha tia num ritual em que a comunicação (pensava eu) estava para além das suas possibilidades físicas, mas afinal o mistério da Fé polinizou-me pelo negativo, como se fosse o molde de gesso duma estátua. Hoje, o esforço da minha habilitação à palavra justa corresponde à busca do nervo da Palavra no forro desse negativo.


Há duas provas irrefutáveis da presença do sagrado na vida: o compromisso das endorfinas – substâncias segregadas pelo próprio corpo para assegurar que as suas operações se realizem sem dor e cuja ausência tornaria impraticável e doloroso o gesto trivial de levar um copo de água à boca –
e o facto da existência ser tão perdulária.
Prosseguir este trilho de uma opulenta generosidade é uma tarefa árdua e sem abrigo, pois é difícil fazer aceitar aos demais que o verdadeiro “lucro” pode não ser económico.


Que rosto dar a Deus? O de uma emoção partilhada, o de o terceiro incluído que caligrafa uma relação. A maior lição que tive sobre o amor deu-ma um franciscano quando me disse: «Já casei centenas de casais apaixonados que se separam dois anos depois. Porquê? Porque não basta a paixão, é preciso a decisão.» Anos a pensar no que engatilharia a decisão até compreender: a decisão é a extrema vulnerabilidade com que aceitamos o terceiro na relação – aquele que ambos criam e que ao emergir mata o egoísmo. Com a Não-Dualidade que a figura de Deus personifica sucede a mesma coisa: a Unidade é uma medida que cresce à medida da nossa colaboração, um pequeno ladrilho – o terceiro - vital para a leitura dos pormenores que é a entronização do eterno no instante.
Faltando um pormenor há um lapso no eterno. Chamar-lhe Deus ou não, é irrelevante para o processo.
E esta «interobjectividade» torna inadmissível, mesmo em farsa, um Deus-Pai-Autoritário como o do Velho Testamento.
Por elocubração, apesar da deliquescência do cristianismo, ainda podemos simpatizar com um Deus nosso vizinho que dá a face quando o agridem, e que podia proclamar com Aurobindo, segundo a versão francesa de «La Mère»: «O homem é Deus que se esconde da natureza para poder possui-la pela luta, pela persistência, pela violência e surpresa». ( Contudo, julgo não errar se presumir que o verbo «possuir» deva ser aqui substituído pelo verbo «revelar». É de «revelar-se» – ou de ser-se avatar - que se trata e não de possuir. Do mesmo modo que a violência referida se circunscreve à dobra da reflexão, mormente quando o que se repete devém imanência e o sujeito fica surpreendido pela extensa oportunidade do sentido.)

Começa a chover no trajecto do restaurante para casa. Levo comigo a pizza do jantar. Instintivamente coloco a caixa quadrada na cabeça para me proteger de uma carga tropical. Felizmente que são duzentos metros e que a gramagem da caixa aguenta o embate das bátegas. Chego à escada, sacudo o corpo da chuva, e a tepidez da pizza encharca-me as mãos e sobe pelos braços. Sobre a tampa, como a corrida foi curta, as bátegas imprimiram o desenho de uma galáxia radiografada. Subo a escada olhando o espraiar dos astros de cinza sobre a tampa branca. Assalta-me o espírito: isto foi uma árvore - e espanta-me o súbito vislumbre da transformação. Nada se perde, tudo se transforma. Uma bétula dá quantas caixas de pizza, quantos palitos? A transformação de tudo borbulha contínuamente à nossa volta mas nós amortecemos o seu ímpeto, esquecemo-nos, tornamo-nos indiferentes – de nada tiramos a devida consequência, uma ranhura onde o senso comum mete o pé-de-cabra, antegozando o assalto da casa, o mobilar da mesma com as suas respostas prontas.
«Não conheço outra revelação para além da do encontro do divino e do humano, no que o humano colabora com a mesma medida do divino. O divino aparenta-se a um fogo que derrete o mineral humano. Mas o que resulta daí não é algo que estivesse na natureza do fogo.» Martin Buber.

Começo a intuir que aquilo que Deus contestou de si mesmo a Moisés – Ehié ashér ehié – foi: “Eu serei o que serei!”, uma forma verbal que não indica tempo mas sim o aspecto dinâmico, inacabado, como se a sua essência não fosse ser mas a acção, o imparável suceder-se: algo por realizar, por devir.

Será hoje o retorno à fé um rompimento de novo necessário? Talvez estejamos necessitados de uma nova orientação, de uma metanóia (conversão), precavidos embora pela lucidez de Jung quando afirma que o homem, de um modo geral, não deve sucumbir nem mesmo ao bem.
Justa restrição que sobreleva um outro problema: decorrido um século após o apelo de Nietzsche para que nos evadamos da gramática, a responsabilidade que exige a simples alusão a um “Deus” não legislador ainda atemoriza a grande mole.
Se ao menos se conseguisse divulgar convenientemente aqueles que o cristianismo manteve em segredo para a maioria dos homens e que davam expressão à dinâmica obscura das representações míticas – Giacchino da Fiore, Mestre Eckhart, Jacob Boehme – talvez os processos de «individuação» (no sentido compartilhado por Kierkegaard e Jung,) se multiplicassem e uma nova energia encarnasse na distância desumana que nos afastou da fé. Mesmo “vaga” como a que Lévinas assemelha ao pleno da concha em cujo vazio se ouve o mar. “Vaga” como a pedra onde Miguel Angelo apoiava o escopro na escuta de uma palpitação intrínseca, dum rasto imaterial, erradio, que nos situa além do saque que a vaidade e o sucesso social convocam.
A simples noção de pertença que se experimenta quando avançamos até ao limite de um molhe de duzentos metros e reparamos, nesse instantâneo perfazer de uma vírgula líquida, que estamos submersos e pertencemos a algo exponencial. Que, persuasora, a baleia persegue-nos e que estamos como Jonas: contidos.


A demanda do Absoluto, desse não-lugar evasivo a todas as formas de lucro, é hoje, neste amorfo e desvitalizado reino do signo, o verdadeiro escândalo e uma coisa mais difícil de aceitar que o incesto, reduzido a subplot cinematográfico.
Veja-se o que se passava com a censura espanhola que de uma forma sistemática, e dir-se-ia plácida, promoveu durante décadas o incesto através  das modificações que introduzia nos filmes. Em Espanha os filmes são dobrados e, como as autoridades espanholas do franquismo optaram por modificar os diálogos ao invés de cortar as cenas “chocantes”, sempre que o enredo desenvolvia um caso de adultério a moralidade espanhola  exigia que os culpados deixassem de ser «amantes» para passarem a ser «irmãos». Ah, saboroso catolicismo!

Qual o maior paradoxo da Modernidade? Talvez este, também formulado por Aurobindo: «Todo o mundo aspira à liberdade e no entanto cada criatura está “apaixonada” pelos seus apegos. Eis o primeiro paradoxo e o nó inextricável da nossa natureza».
Terá este paradoxo resolução?
Na Índia, Deus é «uma criança eterna jogando um jogo eterno, num jardim sem fim» e nós humildemente somos os dados – a liberdade relativa dos dados – na sua mão. E contudo, desse lance de dados depende também a «sorte» de Deus. O que nos coloca de novo diante da necessidade de uma responsabilização dos nossos actos.
Concomitantemente, procurar em Deus uma ordem, uma harmonia, para o caos do mundo é o mesmo que confundir uma decalcomania com a pele.
A crer em Deus, há que aceitar a fé apesar do caos que se incrusta na rugosidade do real.
Os Budistas não falam em Deus, dizem antes que os rios procuram o mar. De facto parece mais justo realçar que talvez nos espere o oceano fragoroso que antecede as calamidades mas é nosso dever não fugir ao repto.

Deus – que cockpit? Traduzo esta deliciosa rábula de Christian Bobin: «- Penso numa história... a propósito... – se posso dizê-lo frivolamente – a propósito de Deus. A anedota que mais me agradou, que me fez rir e continua a fazer-me rir quando penso nela, é uma história que encontrei em Maurice Clavel que contava uma experiência ocorrida com um amigo seu. Maurice Clauvel era crente, convertido, e tinha às vezes essa vivacidade demonstradora que têm amiúde os recém convertidos. Não falando então de alguma coisa mais além disso – como um enamorado que acaba de descobrir a sua bela e que não pode suportar nenhum outro discurso além do que tenha a sua bela como centro de atenção -, acontecia-lhe receber muitas confidências sobre o tema. E um dia um amigo disse-lhe: «Quanto a mim era completamente ateu, serenamente ateu, e depois um dia, num passeio pelo campo, vi um anjo (ou a Deus)». Então Maurice Clauvel pergunta-lhe: «Mas como? Onde?». E o outro, um pouco dubitativo, responde: «Isto pode parecer estranho, mas na altura eu não pensava em absoluto nestas coisas – estas coisas não eram nem um tema de preocupação, nem inclusive de discussão, eram-me totalmente indiferentes...e nesse passeio pelo campo olhei uma vaca, e nos olhos da vaca...eu vi! Fiquei totalmente transtornado, e depois do passeio fui falar com um sacerdote.

Evidentemente, o que me faz ainda rir mais, é que agora existe a história das vacas loucas... tem muita graça.
- Não apenas essa história é divertida como ao mesmo tempo é muito justa. Ilustra bem essa ideia de ver algo aí onde habitualmente não se via nada...
- Sim, sim. E o que me diverte, é essa coisa estranha e divertida no cerne mesmo da experiência. Para falar de Deus – sabendo que dificilmente se pode fazê-lo, e talvez em absoluto – pensei muitas vezes que Ele punha um nariz vermelho. Que Ele tinha um nariz de palhaço...Porque há muitas belas claridades que nos são dadas dessa maneira, de repente, na vida diária, com um lado sempre divertido, inclusive um pouco descabelado. E digo-me que a Verdade é sempre dessa ordem. No que a mim me toca as mais belas lições, os apoios mais seguros, os mais profundos, chegaram-me amiúde com uma vertente cómica, uma vertente um pouco semelhante à da desta história»: Christian Bobin, em diálogo com Marie de Solemne


Emprestemos a Adonis a palavra intermédia: «Nous mourrons si nous ne créons pas les dieux/ Nous mourrons si nous ne les tuons pas// ô règne du rocher errant».