quinta-feira, 28 de abril de 2011

EU, KATE E WILLIAM

Tenho andado tão distraído a empacotar a minha vida que me esqueci de vos contar que vou ao casamento de William e Kate. Vou de jacto e volto de balão.
Não vou propriamente eu, que estou ocupado com a mudança de casa, mas o meu clone. É uma história comprida, que tentarei resumir em três parágrafos.
Em Agosto de 2007, William e Kate Middleton passaram uma semana a sós em uma remota ilha das Seychelles. A ilha foi alugada exclusivamente para o casal, com escolta policial incluída.
Foi aí que o meu amigo David Caruso, numa noite, a raptou e clonou. Quando William acordou, na manhã seguinte, tinha ao lado o clone.
Após as férias, chegou à imprensa a notícia do recomeço do namoro.
A verdadeira Kate vive na ilha do Ibo, ao norte de Moçambique, com o David, um cientista louco que já me depenou três vezes ao poker, e que pensa mudar o mundo através do «golpe da tesoura» na cama dos poderosos.
A Kate é o primeiro míssil ao «sistema». O William é já um fantoche nas mãos dela. A prova é que em Buckingham, na última semana, já mudaram todos os batentes das portas para madre-pérola, como Kate exigiu.
Eu fui convidado por David para ser o relator das manobras de Kate nos bastidores do palácio mas fiz-lhe entender que não era ubíquo e que, apesar de isso me devastar, não podia deixar uma mudança de casa (vocês não imaginam como odeio os livros nestas ocasiões) nas costas da Teresa. Ele foi compreensivo e clonou-me.    
 O meu clone fará parte do novo corpo de «bodyguards» que assegurará a segurança do jovem casal. Já compreenderam: o meu clone replica os meus vinte e cinco anos, bonito, escorreito, espadaúdo, com a inteligência e o sentido de observação treinados por muitas horas de espaldar.  
Estou excitadíssimo porque ele, moi, não vai perder pitada.
Eu prossigo a minha saga na mudança para o Alto Maé, um território excruciante de popular e em que cada esquina se ouve cantarolar aquele célebre refrão: «um homem é um homem/ e Mané é Mané».
Giro foi comprar-lhe os sapatos mesmo à frente da minha nova casa, onde um estendal de 200 metros de sapatos, sandálias e botas, atapeta o passeio. São uns sapatos afivelados com sola de pneu, que vão fazer furor e entrar na moda. Foi tudo pensado (e esta operação custou seis dólares).
Amanhã conto-vos. As caixas reclamam-me. Acabo de descobrir que tenho em triplicado O Elogio da Loucura, do Erasmo. Que idiota tem Erasmo em triplicado, em Maputo? Vai ser o soldo de um dos carregadores, ó se vai!
(à suivre)

MOURINHO: O CISNE ROUCO

cartier.bresson.  a táctica é esta: para trás mija a burra
Se é verdade, como dizem, que José Mourinho faz o melhor balneário do mundo e tem uma influência assolapada sobre os jogadores, então carece de táctica.
Ou tem-na suicidária.
Ontem, depois da expulsão de Pepe, tive a nítida certeza de que ele se fez expulsar para levar os jogadores a reagir, a superarem-se: passavam a jogar não apenas contra o Barcelona mas também no transporte da raiva contra a injustiça. Foi uma extraordinária cartada psicológica.
Infelizmente não deu resultado por três motivos:
- o meio-campo do Real Madrid  só desfaz, e delega todas as funções criativas em Ronaldo que,
- com Mourinho, joga mais para a equipa mas perdeu ímpeto, génio, improviso; o que se evidencia quando joga contra uma verdadeira equipa e
- Messi, o terceiro elemento desta equação, e que leva o Real Madrid à diarreia total.
Temo que o Mourinho tenha hipotecado ontem a sua temporada. O resultado foi justíssimo. Mourinho arquitectou o melhor plano defensivo, esqueceu-se foi de orientar os jogadores para atacarem.
Hoje, o Barcelona ganhará sempre 4 sobre 5 jogos contra o Real porque os seus processos de trabalho são também tácticos. Não é possível exibir aquele fio de jogo por milagre. E dá para perguntar: porque não o tem o Real, com tão magníficos jogadores?
O Mourinho é um enorme treinador mas está diante do desafio da sua vida: ou aprende a aprender de novo e as suas derrotas alimentam-no ou cai na armadilha de se desculpar com os outros e desarticula um mito.
O facto é que o Real não pode querer ganhar com um ataque gago, contraído, frouxo.
Se eu conhecesse o José Mourinho pedia-lhe: deixa lá o Cristiano subir aos coqueiros e deixa a equipa reencontrar o prazer de jogar aos berlindes.
De que é que uma equipa precisa para triunfar? Talvez de gana, da subtileza, do pôr-se em cena e do desenlace inesperado que se encontram no poema de Lokenath Bhattacharya, que traduzi, e que dedico ao irado Mourinho:

DOS CEGOS MUITO DISTINTOS 

Numa palavra, eis a proposta: deves subir lá acima, e fazer soar a trombeta. De imediato, alternância do visível no invisível, e mudança de estação na floresta. Este é o programa do dia. Mas eu não sou mais que um homem vulgar, que mantém a sua oração, as mãos em prece. Se os velhos temas são mencionados – e sê-lo-ão -, se ele se compraza em repetições – é inescapável –, que se lhe queira, por bem, perdoar as deficiências, naturais para um incapaz.

Nenhum obstáculo, o minarete ergue-se à tua frente. No caminho para o seu cume, resplandecem os degraus, um após outro, de mármore branco. Do exterior, o ar quente não penetra. Desde que puseste o pé sobre a pedra – que frescura! Lembras-te de tocar o ribeiro? - começa o louvor da viagem.
A escadaria não oferece nada de verdadeiramente tortuoso, não é sinuosa. É mais como um bom rapaz, um coração ordeiro. Sob os teus passos, desdobram-se os degraus, generosos, companheiros de um caminho desimpedido, que o esplendor chama. Se não te resolveste a subir até ao cimo, a tua respiração será amena, quase igual do princípio ao fim: treparás em brandura, amigo!
É a escadaria de um minarete, assim não te cansarás de virar. A cada volta o teu olhar esmaltará novas paisagens azuis, os teus ouvidos serão sondados por murmúrios preciosos, sempre novos e doentes de amor por este mundo de poeira. Sobre os muros: cenas dispostas uma após outra desde a primeira hora. A cada etapa da viagem: assistência completa com cantores, instrumentos, músicos.
Subirás ao cume e soarás a trombeta, a nova há-de espalhar-se por si. Então o pôr-do-sol deixará de exalar, o pavão esquecido de tudo selará uma imagem; ambos - atrás da porta, à espera, longe dos olhares - a roçam. Às cores, não as vês, ainda, não é? E como as verás? Deitar-te-ão o meio-dia ou a tarde? Que importa? Surgirão, ao primeiro som da trombeta, cintilantes.
Vês como flúi tudo, a que ponto tudo é fácil, sem obstáculo, amigo! Inútil até transportar o instrumento, degrau após degrau. Assim que chegares à pequena plataforma, lá em cima, tendo essa minúscula cúpula, como um guarda-sol, sobre a cabeça, tu verás, junto à balaustrada de pedra gravada em flores, a trombeta deitada sobre o chão liso. Não te restará mais que tomá-la nas mãos; depois, de pé, bem direito, na posição requerida, a perna esquerda avançada, a cintura encolhida, levar os teus lábios à embocadura.
E não cai de imediato uma chuva de flores, como convém a uma obscuridade que já se palpa, dilacerando o torso negro do céu com um foguete imenso, deslumbrante?
Lá estamos, hoje, para assistir à festa, meu amigo! Todos os da nossa cidade, jovens e velhos. A nova voou da boca à orelha. De uma ruela para outra, a vida pulula. Que se vê agora, do alto do minarete?
Tão longe quanto alcança o olhar, todas as casas estão decoradas: grinaldas de empolas vermelhas e azuis, desenhos propícios sobre os jarros, diante das portas. Sobre os caminhos, a multidão aperta-se. Nenhuma agitação. População fervente alinhada sabiamente, trajada de branco, exibindo na testa o ponto de sândalo, maxilares e queixos recobertos por tatuagens de um desejo ardente.  
Neste pátio, junto à porta que conduz à torre, eis a tua estreia – a sós, bem entendido. Atrás de ti, em semicírculo, a turba dos tocadores de búzios espera pronta. No seu séquito, chegados num passo firme e confiando honrar com a sua presença o lugar reservado aos convidados de marca, alguns cegos de grande distinção. Eles ouviram uma mensagem divina: hoje, recuperarão a vista.
Não há sinal de obstáculos, em parte alguma. Simplesmente, nesse momento silencioso, de espera, tu sobejas, escultura perfeita. As tuas pestanas não se mexem. Se o teu coração bate ou pelo contrário cala, não o deixas transparecer.
Subirás ou não – a escadaria? Não o queres dizer. Não a sobes.
  

quarta-feira, 27 de abril de 2011

DÚVIDAS DE UM PROFESSOR

matta, coigitum: o mundo é complexo, não é?

Há situações que nos deixam desarmados, sem saber exactamente como reagir.
Procurava explicar aos meus alunos da universidade, do curso de Teatro, a diferença entre “teatro psicológico” e “teatro metafísico”, segundo o Artaud. E deu-me para exemplificar com a possessão.
Expliquei-lhes, na Europa acredita-se mais na dimensão psicológica: que uma pessoa cresce fomentando uma personalidade própria e que esta é intencional, dotada de vontade própria, pelo que cada um pode moldar o seu destino; enquanto aqui, em África, se acredita mais no agente externo, na influência que um espírito possa exercer sobre nós, apesar de nós e muitas vezes contra nós.
E, continuei, isto implica horizontes virtuais muito diferentes: na Europa as barreiras, os condicionamentos do que nos pode limitar, são tangíveis, são as circunstâncias sociais, as quais podem dificultar mas não impedem o acesso a uma consciência de si, portanto, há a sensação de que moldar, mudar o destino e a vida só depende de nós, i. é, idealmente, a vontade pode controlar o destino.
Aqui as barreiras são mistéricas, invisíveis, sobrenaturais, e não há limites para os efeitos dos espíritos sobre nós (O Espírito sopra onde quer, lê-se no Ezequiel), pelo que estamos mais indefesos e menos capacitados para dizer «eu», no sentido duma potência que se exerça. E então ficamos mais nas mãos do destino, sofremo-lo, não o dominamos.
E por isso, concluía, os africanos estão mais em condições de produzirem um teatro trágico ou metafísico do que um teatro psicológico.
Estou a reduzir muito, aquilo que foi uma longa exposição. Que acabava brincando: «mas como só na semana passada fomos possuídos 3 vezes, e já somos  experts na possessão, podemos passar aos meandros da psicologia, e minuciar agora as suas ilusões…». E vejo que se alastra um silêncio pesado, com velame e fortes rajadas de vento. Com a pulga atrás da orelha, ataco a coisa de frente: já alguém aqui esteve possesso?
E quatro alunos levantam o braço. Quatro em nove.
Peço que me contem como foi, e relatam-me experiências de alteração da consciência mas demasiado vagas e acostadas à crendice. E chego ao último que me diz: eu fui possesso há duas semanas. Peço-lhe então que pormenorize, pois tem ainda a memória fresca do que lhe aconteceu. E diz-me, eu estava no culto… Que culto? Da Igreja Universal, retorque. Fui tomado por uma inquietação e perguntei, há mais alguém aqui da Igreja Universal, e quatro alunos levantam o braço. Fiquei paralisado.
Não é a primeira vez que deparo com este facto, aqui. Normalmente metade da turma vive a cavalo entre duas epistemes, digamos assim, entre dois tempos históricos e cognitivos. Lembro-me, no ano em que cheguei, do longo debate entre os alunos, na universidade onde então dava aulas, porque no noticiário da maior televisão privada tinha passado “uma reportagem” sobre uma mulher que havia parido um bule e três chávenas de chá. E do burburinho, da discussão apaixonada que isso provocou na cidade, com metade da gente a jurar já ter assistido a fenómenos semelhantes. Mas para além do caricato, na verdade, não sei se sei exactamente lidar, enquanto professor, com quem vive entre dois modos de vida e de percepção tão distintos, vestindo um e outro consoante a conveniência. Tento, mas têm sido incertos os resultados.
E posso adquirir, assimilar, aprender uma coisa – o que quer que seja – se a minha gramática emocional pertencer a «outro lugar»? Ou posso ter dois amores, absolutos de manhã, parcelares à tarde, sem estoirar com os dois a prazo? Do ponto de vista da língua este “bilinguismo” não tem sido fértil: há mesmo um fosso de aprendizagem entre quem teve o português como língua mãe desde sempre e quem mamou primeiro noutra língua – o shangana, o ronga, o bitonga –, é uma coisa que qualquer professor isento sente. E pode-se ser um “actor completo” sem, dominarmos a língua a ponto de nos perdermos nela? Podemos de manhã fazer exercícios a partir dos métodos stanilavskianos e à noite participarmos na orgia dos espíritos do bispo Macedo, servindo dois deuses? Como “dar a ver” Picasso por braile? O teatro para eles é uma extensão do rito, ou é ao contrário? Há evidentemente pontos de contacto, mas eu que sempre fui um homem de fé (que se vestisse alguma religião seria budista) pressinto que terei de penar para converter em melhores alunos quatro flechas do Macedo.
Falo disto porque acho mesmo que é um desafio e que deve ser debatido e já decidi: na próxima aula incidirei nesse cruzamento entre teatro e rito.
Teremos de aprender conjuntamente, se calhar terei de me converter para captar o âmbito. Já me vejo de bispo, Bispo Cabrita. Ou será mais vantajoso ser Apóstolo, como o Tadeu? Talvez o Grotowski me promova a cardeal. Mas aí só trilarei ou acederei à palavra?   

terça-feira, 26 de abril de 2011

OZO 3/ Tirésias e outros poemas

Hoje descobri, continuando a catar os cadernos para separar o trigo do joio e aliviar a mudança de casa, que ocorrerá daqui a três dias, mais alguns poemas do Ozo. E uma nota onde se referia que o Ozo era professor numa escolha do Bairro do Picapau Amarelo, nos arredores de Lisboa.
Deixo-os em homenagem a Gonzalo Rojas, um grande poeta chileno que faleceu esta noite e que prometo traduzir esta semana, num intervalinho entre arrumos e encaixotamentos.


Ozo

fugaz
zigue-
zague
entre
dois o-
vários,

Ozo

a meio
caminho
entre osso
e buco,

Ozo

a espiga
a-
gramatical,
que amarelece
o olho

Oza-
damente
mozam
biva
lente-
mente
luso:

o ovo.




GLOSA DO POETA MALDITO

O poeta tinha um amante,
o Zarolho, que gostava
de tirar o olho de vidro
e de lho enfiar no cu,
para lhe ciciar ao ouvido:
o meu Tirésias está contigo.



PRAÇA DOS HERÓIS     

Lembrar João e Manuela, serviçais mínimos,
que quinta 22 subiram juntos do 7º
para o 32º no Trinta e Três
e num ápice desatracaram do molhe,
deixando no ar do sorumbático
elevador uma fragância
a sargaços e cueca caída.

Lembrar Marcelino Araújo
que no primeiro dia da independência
decretou, as crianças
a partir de hoje ficam proibidas
de manusear o dicionário,
que é um instrumento colonial.

Lembrar Umbelina, a canhota, que pariu
onde a mixórdia confunde céu e terra,
sem um queixume,
um ciclone de aviso,
compenetrada na fendida massa de sua carne
e nos suores frios com que o cometa
Emanuel lhe dilacerou o ventre.

Lembrar o beirense Ezequiel Chauque
que votou contra a redução das taxas aduaneiras
e se absteve na lei que preconizava o aumento
de honorários dos professores
e manteve o não à lei que previa
uma indemnização para as vítimas das cheias
porque era um deputado da oposição.

Lembrar Noel Kinhassa que se levanta às quatro
e palmilha até às dezassete as avenidas
de Maputo, de cabo a rabo, como palha esquecida
na vassoura, sem vender um cacto.

Lembrar Omega Catembe
que conheceu Custódia no Naval
e sonhou ser guarda-redes do Barcelona
até que ela lhe pregou os chifres
e um vírus e acabou guarda,
em Sommerschield,
da doçura dos indiferentes.

Lembrar Pinto Chauque
que levantou casa de caniço
atrás da gasolineira e a saia
de Rosalina, na mira do fogo
que medrava nela,
persistente como uma unha.

Lembrar “Qual é a Coisa
Qual é Ela?”, que há cinquenta anos
participou da primeira experiência
piloto do napalm sobre um mangal
e que, cega, sem um desmentido,
azarada-sem-um-desmentido,
vende agora cartelas
do Moçambique Dá Sorte.

Lembrar o rústico, desafortunado, Isaías
Macumbe que se queria mineiro
para lolobar com colchão
e chapa de zinco
a galinha choca da cunhada do primo
e acabou catarrado nas Minas do Sétimo Céu.

Lembrar Artur Aparício que escreveu quinhentas
Cartas ao Director no matutino Notícias,
até que saiu a primeira,
a quinhentos e um, e morreu de júbilo,
o coração atropelado por uma bebedeira
com Tentação, o exilir que leva a exilar-se
de miúfa o mais carecido bebedor. 

Lembrar Jacub Mendes Sabonete,
que para ser militante do Partido
decorou a história do Pinóquio
e que mentiu pela última vez na fronteira
quando fugiu com parte do orçamento da câmara
e agora é assessor de imagem no Zimbabwe. 



LEITURA DE BORGES

Interstício
absoluto:

‘é muito cedo
para estar
em casa!’

diz ao celular
a vamp
da mesa do lado.

Ri e respira
como os juncos
que acolhem
felino:

o ouro dos tigres,
peut-être!



A EXPLICAÇÂO DE FILOSOFIA

Em que parte
de Hegel
descruzou ela
as pernas?

Coincidência
da unidade:

não acabo
de me vazar,
centr
ípeto
dervixe,

na sarça
lúbrica
que revoluteia
o ar.



UM HÉRCULES POLITICAMENTE CORRECTO

“Sou eu. Acordei-te? O que tens despido?”
perguntaria hoje Hércules, ao celular
às 3 da manhã, alvoroçado por um sonho
em que - desfrutado o sável
e duas garrafas de Dão - voltava
a desvirginar as 50 filhas de Tespio.

Sorve então um duplo malte
na tentativa de placar as muitas milhas
da solidão, o mito já em saldo.
Nem nos anúncios da benneton
se aconselha 1 macho pra 50
genuínas fêmeas, ou tal se ousa
nos sonhos de Mastroianni.

E então vem-lhe um soluço ao 3º drink,
comichão na já glabra cabeleira:
“cinquenta para um,
e alguma delas gozou”?



PARECER AO S.PEDRO SOBRE O POETASTRO

À minha frente,
com o descaro de um asno
que rumina codornizes
e jura navegar
no encrespamento
de pélvis
da Angeline Jolie

vi O poeta
pôr os olhos em alvo
e a orelhinha oblíqua
num funil invisível
por onde, amaro,

se vazava sopro,
uma cifra iniciática
e exclusiva.

Comíamos
carne à alentejana,
eu no púcaro,
a cismar
no alheamento dele,
de escleróticas
nevadas (vazias?)
enquanto rebolava a carne,
macia, na língua.

Antes míscaros
envenenados
baforava eu – sentido
com o seu ar de tabaco
enrolado por deus.

Poeta?
Deu-me ali gana
de arrependido.



LAGO DOS CISNES

Ser bailarina e regressar
a casa de chapa -
eis onde começa
a metafísica:

não sentir o peso
agoira o voo?

Mas é no rodeio da lingua
do meu namorado
mineiro
que o mundo inteira se refoca:

leva um dia inteiro
a não demorar
um minuto.



UM JOGO BÍBLICO

«À mesa do árbitro, o teu nome
é Repita», vaticina o marido
na sua pureza de apito
e eu, solícito, que ' té
não prescindo da meiguice
do drible, sob a mesa,
faço um pique e en-
cabrito na coxa da mulher.

Ele é dos do ‘«Puerto» e eu,
no assombro de me ver
d' «águia ao peito»,
dou-lhe corda,
«a bola tá torta, pá!”,
e dedilho, sob a mesa,
sofrendo, duplamente
refém - morrer
de empate com tonel
tão a preceito! Melam-se
os apiedados dedos, amém!

Sete anos, sete,  jejuou
Jacob de Raquel, sete anos
frustes, de carneiros,
sem mola, c' as atribuladas
prenhezes da cunhada
a acirrar a inveja dos olheiros
e os sábados, heim,
muito a uisque de sacavém
que era raro o de malte.
«Sete os pecados capitais
e eis o oitavo:», goza a Ester,
brandindo languidamente
a colher que disfarça,
«Não falharás o penalty!».

P'ra depois recolhida,
em devaneio, pôr uns olhos
hidráulicos e fixar
p´ra cima de 1 minuto,
a sacarose, grão a grão,
deglutida. Sobre
sob o creme, em pose,
com-
penetra
da.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

O MEU "PAS DE DEUX" NO BRASIL

tudo a postos para o meu "pas de deux" no brasil. quem será o meu partenaire?
Está feito: em Novembro vou ao Brasil lançar o romance A Maldição de Ondina.
Acabo de receber as provas do livro. O layoute está lindíssimo, em Garamond 13, que torna a leitura atraente como uma azeitonada pele de raposa. O meu pescoço, já se sabe, é alvo e tem a elegância de um hieróglifo.
Desta vez, não posso é levar o Amadeu comigo senão ele rouba-me todo o brilho e até a cinza dos parcos momentos de glória. Desta vez já sabes, ó Baptista, ficas em casa a cuidar do blogue. Para escalpe basta-me a sombra.   

O ANTI-FILÓSOFO E O POETA: DOIS CANIVETES-SUIÇOS

ainda por cima o sacana é bonito
Um amigo emprestou-me um livro de entrevistas com Medhi Belhaj Kacem, um jovem romancista e filósofo (ou anti-, como se auto-classifica) e actor de filmes franco-tunisino, discípulo de Badiou.
O livro, que se chama Pop Philosophie, é notável, mas o que espanta sobremaneira em Kacem é a sua assustadora capacidade de produção, tendo em conta os seus 40 anos. Este livro de entrevistas, que já é de 2005, tem 500 páginas e revela um pensamento denso, amadurecido, informado, irónico e acutilante. Leu tudo, pensa como um carro de fórmula 1, enquanto se entretém com jogos vídeo e ouve rock que se farta. E não receia a colisão, ser controverso.  Precedem este livro dez outros calhamaços – entre romances, ensaios sobre estética ou de filosofia – e sucederam-lhe mais cinco ou seis. E vê-se pela entrevista que esta urgência da escrita não o impede de viver: não perde um filme popular, pitada de sexo, não extravia um copo, uma oportunidade de estar com amigos.
Fascina-me esta voragem, pobre de mim, mais lento e perfurado de lacunas. E invejo-a. Esta capacidade de trabalho não a encontro a Sul, não só porque há um tanto de lagarto no coração dos sulistas como o calor dá o álibi para o delitro e a mais honrosa irresponsabilidade. Irresponsabilidade a si, como se depois duma coisa bem feita fosse uma tensão excessiva fazer uma segunda. Aqui o fluxo do pensamento é muito mais intermitente.
Depois constata-se nele uma crença da passagem ao acto, que é socialmente desaconselhada a sul. Repare-se,  Kacem, que escreveu o primeiro romance aos 17 anos, fez das suas tertúlias juvenílias o plinto para duas revistas de filosofia, Tiqqun e ÉvidenZ. Eu não conheço um intelectual em Portugal e Moçambique que não reivindique o «direito à preguiça». Foi a minha cartilha por décadas. Um artigo ou crónica por semana, um poema em respiração boca-a-boca, doze projectos na gaveta, e, upa, upa, a inscrição adiada no Clube dos Procastinadores. Com decalitros de cachaça a correr entre as desmemoriadas pernas da táctica e da estratégia.
Há por aqui algo dum imenso fedor a Carnaval – perpétuo, mecânico, dispersivo – que combina uma hostilidade profunda ao método com uma entrega à paródia e à líquida vocação para a paráfrase. Se alguém produz, de modo regular e inescapável, como a Agustina Bessa Luís ou o João Paulo Borges Coelho, de imediato há quem reconheça aí um defeito, pois «que benefícios traz publicar livros a uma velocidade que o leitor não acompanha?». O problema é deslocado da preguiça do leitor para a insensatez do escriba.
A ninguém passa pela cabeça que imprimir um ritmo contínuo de trabalho ao trabalho criativo ou intelectual favorece uma permuta entre as sinapses de outra voltagem, e que esse é o segredo duma criatividade caudalosa, consequente, enquanto a atracção pelo devagar abre um poro na direcção da contingência que torna tudo mais aleatório, para além de sujeitar a navegação aos caprichos do clima.
Agora mesmo, no autocarro, vinha ao meu lado um estudante universitário. Um rasta com um gorro de lã. Para além das extensões no cabelo que lhe enrodilham a cabeça num toucado tépido, um gorro de lã.  Tudo o que pedem os 32 graus da manhã. Que argúcia pode surdir de tal estufa? Quando um gajo tem a cabeça à temperatura do interior das tripas que pode nascer daí?
Fazer da vida uma aprendizagem para o desfoque, a fissura, o desperdício, nem tem mal, pode ser uma carreira simpática falhar a vida, mal tem, sim, a auto-complacência, as desculpas de mau pagador. O furor de Kacem relembra-mo e faz-me entender o que dizia certo treinador de futebol: «o jogador descansa com a bola nos pés».

a única coisa em que passo a perna ao amadeu é nisto: eu sou muito mais fotogénico
E serve isto para vos falar de um dos poucos poetas portugueses que conheci que não sofrem dessa suficiência do poucachinho, e como Kacem um outsider que não teme o derrame e o enfrentamento contínuo com a palavra e a sua erosão: Amadeu Baptista.
Um mouro de trabalho, o Amadeu escreve na cadência supersónica com que a funda de David derrubou Golias. E está para a poesia como o canivete-suiço para os seus pares: abre em todas as direcções, profuso e eficaz. Confluem nele o sagrado e o profano, a contenção e o ímpeto, o discursivo e a metáfora, ora cultiva o soneto, ora se desprende em odes de quilómetros; flirta com a contradição, e não teme, depois dum ciclo de poemas religiosos, onde fareja o sublime, entregar-se ao erotismo ou à mais fragosa obscenidade. É absolutamente um criador sem auto-censura, sem outro estilo senão o da sua fúria de viver; um epicurista que ama a colisão.
No último projecto dele que acompanhei de perto, Os Pássaros da Babilónia, projectava escrever 500 poemas sobre obras de arte do século XX – despachou a coisa em seis meses. É doido, e lê-se sem um grama de cansaço.
Acabou de abrir as contendas, com um blogue: aqui.

domingo, 24 de abril de 2011

ENQUANTO EU/conto de Susana Gonçalves

Os meus amigos começam a ceder à minha chantagem para participarem no blogue. A Susana é a primeira. Primeiro porque é uma estreia – apesar do seu extremo talento, e de ter muitas páginas inéditas, preteriu a escrita pelo ensino, durante décadas, e nos últimos anos voltou-lhe o bicho de enxurrada –, depois porque é a forma de celebrarmos o nosso reencontro, após 30 anos de afastamento. Fomos muito próximos aos 20 anos, quando eu publiquei o meu primeiro livro, e ela era uma pré-universitária. Depois ela foi estudar para Coimbra. Não comunicámos mais até há um mês atrás e foi uma alegria descobrir que ela estava «intacta» e com o mesmo brilho. Por isso os ovos da Páscoa vão para ela. E o melhor é poder anunciar que vou editá-la em Moçambique, na colecção que dirijo com a Teresa Noronha para a Escola Portuguesa. Fica para já este aroma:
Mote: um selo antigo, carimbado: Danzig, 1939; a lembrança da noite fria em Estocolmo; Andrei Rubliov, o monge das estepes; um email vindo de uma amiga da Polónia, a informar que a velha senhora, sua mãe, depois de tanto sofrer, descansa enfim na paz do Senhor…

Enquanto eu, sozinha em Estocolmo, dorida e meio surda por causa da constipação, escolhia os legumes para que o cozinheiro daquele pouco sofisticado restaurante mongol os grelhasse no barbecue, os meus amigos, noutra cidade da encoberta e obscura Suécia, comiam carne de alce pela primeira vez na vida.
Escolhi espargos. Nesse momento um deles mandou-me um sms a contar que a carne era doce, a dizer que nevava em Uppsala e a perguntar se eu estava bem. Também escolhi cogumelos chineses, poucos. Nesse momento, a amiga polaca enviava-me um sms, a partir dos subúrbios de Varsóvia, a desejar boa viagem e a lamentar que desta vez não tenha podido vir connosco. Se a reunião tinha corrido bem, se os dear boys já tinham partido para Uppsala, se fazia frio em Estocolmo. Escolhi cenoura cortada em tiras finas e couve branca. Outro sms respondia-me, à pergunta sobre a saúde da mãe, que não tinha melhorado, que a velhice e a doença a mantinham alucinada e presa à cama, moribunda.
Entreguei ao cozinheiro o prato com a minha escassa escolha de legumes ladeados por dois desengonçados camarões-tigre, absorta na lembrança do que a amiga polaca me dissera, enquanto passeávamos de braço dado pelas ruas de Bratislava: que a mãe era sempre a mulher mais bonita e elegante entre todas, onde quer que estivesse; que as mãos dela eram brancas e finas; que os olhos azuis escuros pareciam o báltico de onde ela viera; e que a história dela dava um filme.
O cozinheiro mongol remexe sobre a placa incandescente os legumes do meu salteado e a vê-lo, hipnotizada pelos movimentos ritmados, eu deixo-me levar pela fantasia aos alvores de 1939. Imagino a mãe que acaba de chegar à catedral da cidade de Gdansk, chamada na época Danzig. Imagino-a a benzer-se no escuro e a pensar: que será do nosso futuro, Senhor? A mãe lituana veste um vestido cinza claro de corte primoroso e leva um chapéu démodé em feltro verde. Caminha com um andar elástico e, apesar do isolamento, da agressão dos tempos e da lonjura, atravessa a guerra com elegância e distinção.
Este pensamento surge-me de improviso e prolonga-se. O cozinheiro entrega-me o salteado e eu vou sentar-me a uma mesa de canto, junto à janela. Lá fora, raros vultos, encolhidos, apressam-se para fugir à neve que branqueja no ar.
Não sei se me apetece ou não escrever a história, se me apetece o frenesim criativo nesta improvisada Mongólia, bem no centro da Gamla Stan, bem no coração de Estocolmo. Levo os legumes à boca e ardo pelo efeito abrupto do picante. Entre golos de água, minúsculas garfadas de fogo, bofetadas de neve, entre estações e aeroportos, entre quartos de hotel na cidades às escuras, entre golpes de febre e cansaço, entre a cidadã batida pelo Báltico e o meu canto à beira do mediterrâneo, escrevo. Escrevo enquanto a musa me apoquentar e escrevo para carpir os males de uma história de vida inglória e para homenagear a velha senhora que, provavelmente com distinção e elegância, se debate no leito com a morte que se lhe veio aninhar ao corpo.
Entre polacos e alemães, entre os acasos passageiro de que se faz a história, imagino a mãe recém-chegada a Gdansk, essa cidade transgredida que agora enquanto a imagino se chama Danzig. Não me custa muito imaginá-la enquanto ainda estou em Estocolmo, entre os legumes ardentes e a neve ventosa. O Báltico é o mesmo, o vento cortante deve ser o mesmo e ainda que a mãe esteja setenta anos atrás de mim, está sozinha como eu estou agora e espera.
A mãe chega à catedral de Gdansk, sozinha, inquieta, adoentada. Quando cheguei à Gamla Stan também vinha assim, febril e com dores de ouvidos. Procurei o calor nas ruas, no deslavado brilho das recordações chinesas para turistas, nos cornos de viking em plástico reles, nas T-Shirt I love Stockholm, nos pisa-papéis com forma de globo, água lá dentro e cristaizinhos de papel metalizado. Viro e reviro o globo e a neve delirante cai do céu submerso da Suécia sobre uma cidade presépio em plástico à prova de água e parece que se ouvem anjos flutuantes a tocar cornetins lá dentro do pisa-papéis made-in-china.
Fora de moda, fora de contexto, mas na sua essência, cheia de carácter, a mãe de andar elástico caminha no país estrangeiro, em Danzig, deixa-se trespassar pelo vento e pela noite e pensa: que será de nós, Senhor? Na Polónia anexada não há souvenirs nem montras iluminadas. Há lojas vazias, senhas de racionamento, gente deprimida, judeus escondidos e outros mortos. Os cristais de neve abatem-se sobre as gentes como pedregulhos e o som dos anjos é afinal o das bombas a deflagrar.
E se eu fosse imigrante em Estocolmo como esta lituana é em Danzig? Se eu não estivesse de passagem, a fazer tempo para a madrugada, para o autocarro, o avião, o ir embora daqui a meia dúzia de horas? Ou se eu fosse como esta mulher asiática que me explica num inglês arrevesado como nos devemos servir do barbecue ao estilo mongol? Pedi-lhe que escolhesse os legumes por mim e vi-a retrair-se como se lhe pedisse um crime. Que não escolhia!
Escolhi eu então, contrafeita, e daí a pouco queimava-se-me a garganta com os legumes ardentes, pedi sopa a correr e a sopa chegou bruxuleante e à primeira colher vieram as lágrimas por ser tão intenso o paladar picante. E foi assim que se me curaram os males de Inverno de Estocolmo e se invocou a musa. Escrevo, e continuo a cometer os erros que cometem os imigrantes: o que escolho é picante a mais, agridoce a mais, cru a mais. Sinto-me perdida e escrevo. Congestionada pelo frio do báltico, com a garganta a arder, deixo-os entrar, atabalhoados, os pensamentos já com setenta anos.
A mãe lituana! Penso outra vez nela. Deste lado do Báltico, Estocolmo. Do outro lado, mais abaixo, Klaipeda, o condado onde nasceu esta mãe. Mas ela está longe. Vai a passo largo em direcção à Bazylika Mariacka, a catedral barroca de Danzig, como então se chama a cidade, sob ocupação alemã.
1939.
A mãe passa pelos carros de assalto alemães, cruza-se com a multidão desordenada, fecha os olhos para não ver a devassa a que este povo está sujeito. À sua frente, agora mesmo, um rapaz cai de bruços, o sangue escorre para o chão e mistura-se com a neve e a lama e tudo se derrete. O soldado passa as costas da mão pelo nariz, funga, respira fundo, esfrega a espingarda na barriga, vira as costas ao cadáver e afasta-se. Ela continua a andar a passo elástico, escondida no seu elegante chapéu verde, um verde sem simbolismo, nada de esperança ou afins, seria uma ideia muito debotada, para não dizer hipócrita, em tais circunstâncias…
Entre gritos e estertores, o rodopio da multidão, as falas polacas aflitas, vai uma idosa arrastada na rua pelo braço. Cai, grita. Uma voz judia. A mãe desvia os olhos. Eu também, não quero testemunhar. Com olhar húmido, não sei se por causa da emoção se pró causa dos espargos picantes, volto a interessar-me pelo chapéu verde. Não sei o que vejo nem o que devo contar.
Seria mais fácil se houvesse aqui a consistência do vivido, ou a segurança de uma história que nos foi contada com a determinação de quem a viveu. Não tenho a memória nem a escuta. Esta é uma fantasia feroz e irracional. Não a posso sustentar na ordem. Prossigo às apalpadelas, a ver por onde seguem os passos da mãe lituana, agarro-me à imagem abrigada do chapéu verde e nada mais me interessa, porque quero desviar o olhar da agonia da multidão violada, da criança que chora no meio da rua, do bruto ressoar dos tanques, cadavéricos. Dentro de um deles, o soldado alemão canta a canção Lili Marleen.
O chapéu verde? Onde está o chapéu verde? Quero desviar a atenção desta mortandade, das filas de gente assustada no outro lado da catedral, gente enregelada de frio e terror, empurrada à força de coronhadas pelos SS, não quero ver mais mas não posso deixar de ver homens e mulheres a ser metidos como gado nas carrinhas de caixa aberta, uns sobre os outros como gado, como coisas sem existência ou dignidade que mereça misericórdia e lá vão a caminho do recentemente inaugurado campo de Stutthof, a poucos quilómetros dali. Não sei quem são eles. Esta gente são judeus? Se são judeus a mim parecem-me gente, talvez lhes distinga os traços do báltico, mas mais que isso não, são gente apenas, que será do seu futuro, senhor? Pensa a lituana, benzendo-se e estugando o passo.
Persigo o chapéu verde. Ela entra na catedral e eu vou atrás dela. Lá dentro, gente lívida enche de súplicas as paredes, as colunas de pedra esculpida, os detalhes barrocos. As mulheres tremem e as crianças choram e é tão instável o momento que até a catedral parece que abana, movida pelos estertores do povo agonizante. Irreprimível sinfonia de horror dirigida ao altar. Perco-me neles, nas crianças, no medo dos rostos, na súplicas. Onde está ela? Não a encontro. Onde está ela? Ah, ali, vejo-a de novo. Aproximo-me.
Vejo-lhe a mão direita. Tão atenta estava ao chapéu, ao ondular do vestido cinzento de andar elástico, que ainda não tinha reparado neste pormenor. Ela tem algo na mão e eu quero chegar mais perto, é importante saber o que é isso na mão dela, pensamento supersticioso, bem sei, tão absurdo como os tiques obsessivos. É estúpido. Como se saber o que o condenado leva na mão quando vai para o cadafalso pudesse aliviá-lo do destino. Mas que leva ela na mão?
Ocorre-me Andrei Rubliov, a imagem da catedral devastada pelo saque dos mongóis. Lembro-me da sua protegida e lembro-me de como é fácil levar um homem de artes e espiritualidade a matar. Um santo que mata por causa de estar entre o amor e a falta de fé. Ele matou, Andrei, o monge, o filósofo, o pintor de ícones… Séculos depois, entrei num desses imponentes edifícios brancos do Kremlin e vi os ícones de Rubliov e percebi que é impossível soltar deles o olhar. Se chegamos a desviar o olhar não é por querermos, foram os ícones que se fartaram de nós.
A catedral de Gdansk imagino-a do mesmo modo que à do Rubliov, a mesma cúpula enorme, e quase tão grande como a de Colónia, de se ficar abismado pela altura, de fazer tonturas. Lá dentro, o sofrimento das pessoas não as deixa ver os ícones, pena que o sofrimento do povo lhe roube a contemplação da arte, ao menos que vissem Deus, que se inundassem nele, ou que se afogassem nele, como diria a Maria Zambrano.
A mãe reserva a última réstia de energia no punho cerrado. Foquemos esse pigmento da imagem, como se estivéssemos a observar o pormenor de um retábulo que passa a todos despercebido, a menos que sejam loucos ou sábios. O lugar onde está a mãe? Pertinho do altar e dos santos de pedra escura, encostada a uma coluna de pedra onde está pendurado um quadro de Rubliov. Olhamos para ela de alto a baixo, mãe lituana. Primeiro o chapéu verde. Depois o vestido elegante que já não é como o vi primeiro, passou de um cinza claro, de uma textura em espinha de peixe, para o que agora, estranhamente, me parece ser um tecido grosseiro e avermelhado. Um chapéu verde e um vestido escarlate!
Olhemos com mais atenção para a mão, para o punho cerrado. Ainda estamos tão surpreendidos pela beleza do rosto que se torna difícil concentrarmo-nos devidamente no punho fechado. É realmente uma mulher bela e elegante. Ficaria bem em salões de baile, em Paris, a fumar cigarrilha como Tamara de Lempicka, vampíssima e a dizer frases espirituosas aos pretendentes suspensos do seu sorriso e da benesse de um olhar. Mas à lituana calhou-lhe a má sorte. Nada de olhares melífluos, poses de salão e ditos espirituosos. Ela encontra-se imigrada em 1939, está perdida de medo junto ao altar da Bazylika Mariacka e lá fora é o abismo da invasão de Danzig e a pequenez humana.
O que ela tem na mão? Esperemos.
A lituana agacha-se, deixa-se escorrer pela pedra, fica acocorada no chão, escurece, apequena-se, parece ainda mais perdida. Finalmente, abre a mão e vemos o que escondia nela. Uma carta. Ela abre o envelope, lê a carta e depois deixa cair o envelope no chão da basílica e deixa-se cair também. Que foi? É então que vemos que o branco do papel se tinge de sangue. Percebemos que a lituana foi agredida. Um homem fardado, debruçado sobre o corpo da lituana, atira a arma ao chão e prepara-se para fazer nela obra do diabo. Sempre houve disto nas guerra, todos sabemos. Que é a guerra senão o estupor da violação colectiva?
O envelope, o selo. Danzig, cidade alemã, 19 de Setembro de 1939. O tempo ficou parado num selo de correios, enquanto o sangue escorre e a mãe lituana é invadida na profundidade do seu corpo. O homem colossal agarra-a pela cintura e despoja-a de dignidade. É como o outro, o mongol. Os homens da guerra que são afinal senão a face oculta da humanidade? O selo tinge-se de sangue e o envelope escurece e não chegamos a saber quem escrevera a preciosa carta.
A língua arde-me mais ainda e custa-me muito respirar como se os legumes fulminantes me estivessem entalados na garganta. A guerra custa a engolir por muito que já tenhamos vivido e mesmo que quando escrevemos é como se fossemos bem maiores que o mundo, vê-se tudo do alto e as coisas ficam noutra proporção, mais digeríveis, mas a guerra, senhores, a guerra custa muito a engolir.
Eis que me surge de dentro da memória colectiva um santo renegado, um Andrei Rubliov rebelde, um pobre homem a debater-se na luta ácida entre a fé e a falta dela. Este Andrei que vem a mim, inesperadamente surgido no fluxo imaginativo, parece-me polaco, mas podia ser russo, lituano, croata, sei pouco dessa gente, o que me disserem que ele é, acredito. Ele ergue um machado pequeno como uma adaga, sulca com ele o ar da Bazylika Mariacka e derruba o invasor. Foi para fazer justiça que ele me veio à mente. Eleva-se um cheiro forte a incenso e sangue. Felizmente, o sémen estava podre e não vingou no ventre da mulher. Engulo os legumes finalmente, a garganta desbloqueia-se, valha-me deus, deus me perdoe, respiro de novo.
Antes de sair desta retrospectiva imaginária, e para que conste, digo: o anjo vingador, um engenheiro refugiado parecido com o Andrei Rubliov, viria a ser nomeado, já depois da guerra, responsável pela reconstrução da basílica. O seu sémen é viril e vivo e assim se fará pai e assim surgirá aquela com quem, meio século depois, passearei de braço dado nas calçadas irregulares de Bratistava.
E o tempo passou-se. Há cicatrizes que não se podem dissimular, mágoas que se tornam crónicas, que ora vão ora vêm, que deflagram quando menos se espera. Dores são dores em todo o lado. Como o amor. Como os sorrisos. E que não fique nenhum mal estar, que a história acabe em bem. Vejam como vai bela, uns anos depois, toda vestida de branco, a lituana. Sorriamos, como os restantes convidados, por ver o amor triunfante, o beijo na catedral de Gdansk.
A catedral foi reconstruída, o tempo vai passando e algo nos faz ir ficando, novas raízes que se criam, uma nova língua que se aprende, filhos que nascem polacos, uma nova pátria que se aprende a amar. Polónia, que depois das agonias da invasão e do fervor da  libertação, nunca mais deixará que lhe mudem o nome: Gdansk é, Gdansk será.
***
Mais histórias amiga?, perguntam vocês. Que culpa tenho se a memória colectiva me entra assim adentro sem pedir licença? E ainda falta perceber, mas como vos posso explicar se eu própria não sei, como veio parar a Estocolmo esta mulher da Mongólia e porque foi que entrou de figurante num filme engalanado pela alusão a Rubliov. A ela, à mongol, acho-a mais dentro do realismo soviético que a ele. Ela não faz escolhas por mim. Que não, eu que escolha, eu que sofra se escolher mal, eu que decida até onde ir nos caminhos da memória colectiva. Eu que me aguente se o passado europeu está tão cheio de vulnerabilidade. Que eu sofra isso, porque havia de ser ela a sofrer por mim? Mesmo que seja num texto emaranhado, de vez em quando cabe-me emigrar também e saber como elas doem. Pago a conta, agasalho-me e saio para a neve. Levo na mão um postal ilustrado, Gamla Stan em dia de sol, já tem selo e tudo, a ver se não me esqueço de pedir no hotel que mo mandem para o endereço da amiga polaca.