quinta-feira, 11 de agosto de 2016

DESANUVIAR AS NUVENS, CELEBRAR O CORPO



Quando estou um dia sem ler sinto-me como o carreiro que se extraviou da sua formiga.  E gaguejo. Para retomar a articulação da fala preciso de alimento, isto é: de leitura.
Hoje calhou-me o Efeitos de Captura, de Luís Filipe Sarmento. E calhou-me bem porque numa região deserta um dia enevoado é sempre bem vindo.
Abre o Wittgenstein o seu Cultura e Valor com a seguinte proposição: «Temos tendência para confundir a fala de um chinês com um gorgolejo inarticulado. Alguém que compreenda o chinês reconhecerá, no que ouve, a língua. Muitas vezes, não consigo analogamente, distinguir num homem a humanidade».
O que gosto no livro do Sarmento é que: a) ele posiciona-se perante a linguagem como nós diante do chinês, b) nele, o «gorgolejo inarticulado» estende-se ao “mistério” do corpo, c) o espaço de abertura ao outro não descura o social (o político) e na sua busca, também ele, procura «distinguir num homem a humanidade».
O livro divide-se em três andamentos ou blocos temáticos:
- Do Abismo
- Da Superfície
- Do Raro
No primeiro fala do abysmo (é com ipsilon que o poeta o grafa nos poemas) que se abre no corpo em relação ao mistério do seu sentido intrínseco.
Logo nos dois primeiros versos do poema de abertura:
«Capto a imagem do corpo
e dou-lhe um nome: rosto.»
vemos que o rosto está no lugar do corpo, como  remate de um feixe que não traz logo consigo elucidação mas antes dúvida:
«O rosto não é uma face
mas a sua assinatura
plena de perplexidades».
Espantoso é o que vem a seguir, porque sendo embora uma evidência é um achado, no sentido que predetermina um ovo de Colombo:
«Porque sou um rosto que não vejo
nunca me libertarei da imagem
captada no corpo do outro,
capturando-me inexoravelmente.»
Portanto, o primeiro obstáculo da condição humana começa no facto de «tudo significar outra coisa» (uma asserção que Herberto já havia sublinhado) e só pela imagem do corpo que o outro me devolve se manifesta um vislumbre de assentimento. Antes desse apaziguamento erguem-se os «pontos de abstracção», obstáculos no caminho para a transparência, e que, aliás, nos tendem a enganar porque a luz que os assinala é afinal diferida, codificada:
«Como se tudo começasse
nos sentidos negros
da abstracção: a luz
sintética revela-nos
o conhecimento
que nos perturba.»
E por isso tantas vezes:
«Entre mim e o objecto do meu olhar
há um abismo que me aprisiona
a palavra libertária.»
Esta aporia, esta violência que enclausura a própria palavra na intransitibilidade com que os objectos estabelecem connosco uma “economia de relação” (sempre a merda de economia) que acaba por fantasmear-se, deixando-nos à míngua de significação, só tem escapatória na realidade do corpo, o qual, por sua vez, depende, para volver inteligível, da relação, da abertura ao outro e «à captura mútua» em que os significados permutam de valores até o vínculo impor uma liberdade (uma liberdade dilatada por rejeitar na base qualquer “economia de relação”) que se preserva pela sua paradoxal dádiva ao outro:
«Na experiência do corpo
a impossibilidade total do objecto
risco de fronteira
(…)
a boca inunda-se
de um dilúvio pleno
retomando o corpo perdido».
Portanto, um ser humano completo é mais do que uma disposição intelectiva e só se produz face à extrema coragem de abrirmos os poros ao «dilúvio» do outro, que começa como a água na boca. E nesta reciprocidade, como se diz a fechar o livro, há:
«uma tomada de posse
neste espelho que já não me pertence
a derrota de quem vence.»
O último verso do livro funciona como uma espécie de paráfrase a uma espantosa asserção de Maria Zambrano, a qual capatulta uma redimensão ética nos relacionamentos históricos e humanos: «e um dia os vencidos serão plagiados».
E por aqui creio estabelecer-se outro veio deste Efeitos de Captura, que começa por indagar o mistérios do corpo para clarificar o que existe de político no seu devido ou indeviso uso. Lê-se no primeiro poema que abre o andamento Da Superfície:
« (...) se Trimegisto tinha razão –
se tudo o que está em baixo
é como o que está em cima –
a evasão ao medo
será um confronto histórico
com os sequazes do dinheiro.
Não é uma luta divina
com a nova ordem mundial:
será o corpo a corpo
com a sobrevivência
em busca do berço perdido.»
E este corpo a corpo cedo é assediado por milhentas armadilhas, de entre as quais a massa de descrições com que o poder nivela a textura áspera da realidade numa superfície escorregadia e atreita à reprodução discursiva (convertendo em viciosos círculos a espiral que a libertação dos corpos funda ao reinventar a cada instante da relação a sua “linha de pensamento”), à retórica dos manuais-de-instrução que tecem as nervuras, os dispositivos de desejo impostos pela “natureza” redutora do “consumidor”:
«Corpo a corpo com a deceção:
luta de uma geração agnóstica
por imposição, o mundo à superfície
é um manual de instruções,
um ritual iniciático,
pela sobrevivência
no pantanal dos economistas eleitos,
(...) contra a humanidade desfalcada.
 (…)
e o mundo tremeu, desabou, ruiu em inglês
e deflagrou em mandarim»

Um livro que se posiciona do lado da espiral contra o círculo só pode denunciar a usura que hoje abala a Europa (e neste aspecto o “fascista” Pound tornou-se profeta), mas, é uma das qualidades do livro, embora não ignore (e faz dele diagnóstico) o estado das coisas Efeitos de Captura não cede ao niilismo e antepõe ao «kaos» (curiosamente, o políticamente correcto) a vitalidade de um princípio de dilucidação solar:   
«Neste museu de destroços
não reconheço nenhum apocalipse: apenas o novo lugar
da minha residência destruída.
Nesta cidade impossível, o choro recém-nascido
devolve-me a consciência da memória
liberta de velhos ancoradouros.
Uma nova estética no palco de um teatro invulgar
abala a representação do passado: a derrota
do malogro descobre à superfície
um repositório desconhecido de sensações.»
Contra as aparências, portanto, ressalta o singular, o Raro, a terceira categoria dese livro e que organiza o “campo” do terceiro movimento:
«O raro
só deflagra, não se multiplica:
apenas a loucura dos meus olhos
o captura na sua efemeridade»
É o Raro que desanuvia o sombrio movimento da doxa, que repele as unanimidades e a realidade sensatamente organizada ( - ele «não se multiplica»). É o Raro que torna os universos (tal como os corpos) cambiantes e reversíveis e que re-converte o Kaos em sentido. É o Raro, por fim, que ilumina de forma tão apetecível as modulações sensíveis do vencido que se torna apetecível imitá-lo:  
«O indizível infinito
existe sem tréguas
como um espetáculo
que sensibiliza
o meu prazer. Rara
presença, o infinito
amedronta-me
no prazer de o tornar
finito: objeto percetível
cuja carne saboreio
numa lenta digestão
do kaos.
Rara ambiguidade:
a dor e o prazer de te comer
quando me capturas.»
É pois o Raro que permite distinguir, como um afloramento granítico, nas afecções do corpo o Amor e entre tantos supostos humanos a Humanidade. A qual continua a procurar-se, desesperadamente. Por isso há uma ambivalência no título do livro: aos efeitos de captura estamos sempre expostos, não há imunidade contra eles. Mas há os efeitos de captura patológicos, aqueles que nos aproximam da reificação, e aqueles que nos tornam autónomos porque eles são igualmente a combinatória da vulnerabilidade do Outro e o respeito integral que só o Amor desempenha nisso.
É também Raro este livro, com certeza um dos mais apaixonantes de 2015.


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Este textículo, impressivo e rápido, sob influência imediata da leitura fez-se a partir da leitura da versão parcial do livro, ainda que bilingue, saído na Argentina, na editorial Levíatan.
Para uma análise apurada e magnífica do texto integral deve ler-se https://mjcantinho.com/2015/10/04/apresentacao-de-efeitos-de-captura/