sábado, 26 de fevereiro de 2011

DO AMOR: ALINHAVO E DESVIO

almada negreiros

Quando a minha filha Ana entrou na adolescência e desatou a procurar na internet as letras de todas as canções românticas-pimba-&-brega-&-deixa-o-pai-de-tímpano-almareado, eu tive a ideia, que me parecia um ovo de colombo, de lhe fazer uma antologia de poemas de amor universais.
Passei várias noites a folhear livros, a escolher e a traduzir poemas – só me faltava atrás das costas um daqueles gregos melífluos que com uma flauta acompanhavam o aedo.
Quando finalmente publiquei o livrinho com as traduções foi o meu fracasso mais rotundo. Nenhum adolescente lhe pegou.
Talvez à dúzia sirvam para omoletes. Enquanto não crescem.      

  

ÚTERO


Faz horas que aqui estão.
Partes do seu corpo, não as mais íntimas,
mas partes do seu corpo, espalharam-se
repartidas pelas quatro, as vinte esquinas
desta casa. E agora vivo
dentro da casa que amo.
Movimento que faça, se me estico
fora da toca, e toco uma meia,
um sapato, uma saia, a sua loucura por antúrios,
sei os marcos de uma terra que é a minha.

 

Gabriel Ferrater




DREAM


Às vezes
sonho com a Inglaterra (litorais,
comarcas azuladas).

Tu resides
na casa vizinha. Lilases
rebentam onde as ondas se desolam.

Vivemos num mundo
onde o amor não necessita
sentir-se desgraçado para sê-lo.

 

Juan-Eduardo Cirlot




FILHA DO CONHECIMENTO


E agora a amplidão do espaço
cinge-se à minha batida,
e tu, flor de ouro,
tu estás em mim.

A arte do Oriente que estudei amiúde
é a tua carne os teus ossos
a curva do teu olho
a tua língua mais os seus tons maviosos.

Face à nudez
dos teus seios a religião
perde toda a realidade

e a macia perfeição
do teu amorável ventre
prodigaliza a filosofia.

Kenneth White



HISTÓRIA DE UM AMOR

Para que eu pudesse amar-te
os espanhóis tiveram de conquistar a América
e os meus avós
de fugir de Génova num cargueiro apodrecido.

Para que eu pudesse amar-te
Marx teve de escrever O Capital
e Neruda a Ode a Leninegrado.

Para que pudesse amar-te
em Espanha houve uma guerra civil
e Lorca morreu assassinado
depois de ter visitado Nova Iorque.
Para que eu pudesse amar-te
teve Virginia Wolf de escrever Orlando
e Charles Darwin
de viajar ao Rio da Prata.

Para que eu pudesse amar-te
enamorou-se Catulo de Lesbia
e Romeu de Julieta
Ingrid Bergman filmou Stromboli
e Pasolini os Cem Dias de Saló.

Para que eu pudesse amar-te,
Luís Llach teve de cantar Els Segadors
e Milva os poemas de Brecht.

Para que eu pudesse amar-te
alguém teve de plantar uma cerejeira
na cerca de tua casa
e Garibaldi de lutar em Montevideo.

Para que eu pudesse amar-te
as crisálidas fizeram-se mariposas
e os generais tomaram o poder.

Para que eu pudesse amar-te
tive de zarpar num navio da cidade onde nasci
e tu de resistir a Franco.

Para que nos amássemos, por fim,
ocorreram todas as coisas deste mundo

e desde que nos amamos
persiste uma grande desordem.

Cristina Peri Rossi


ALBA


Tão fresca como as pálidas folhas húmidas
                                             do lírio do vale,
ela deita-se ao meu lado, e amanhece.
Ezra Pound



Adoras deitar-te na nossa cama desfeita.
Os nossos suores antigos não te incomodam.
Os nossos lençóis sujos por sonhos esquecidos
os nossos gritos estampados no papel da parede
tudo isso exalta o teu corpo esfaimado.
O teu rosto desairoso ilumina-se então,
e os nossos desejos de ontem
são os teus sonhos de amanhã.
Joyce Mansour


A NOITE É-LHE PROPÍCIA


Foi tudo muito simples:
aconteceu que as mãos
                                     que ela amava
tomaram de surpresa
a sua pele e os seus cabelos;
                                      que a língua
descobriu o seu deleite.
Ah, deter o tempo!
                                    Ainda que a história 
vá no seu início
e ela saiba que a noite
                                    lhe é propícia
teme que com a alba
continue com uma sede
                                     igual à de sempre.
Agora, o amor invade-a
uma vez mais. Ó tu
                               que bebes !
Apieda-te dela
vê como tem seca a garganta
                                   nem falar pode.

E escuta a sua condoída
respiração; a agonia
                              de um êxtase
e o rogo: não te vás…
não te vás. Façamos pois
                              uma saúde!
      Jose Agustin Goytisolo
         


Quando a água debaixo do chuveiro
a resgatou ao aturdimento
de olhos fechados crio ver
milhares de gotas apressadas
a salpicar-lhe o manto da infância
como se fosse uma tempestade
de algum longínquo veraneio.
Na estância que os conduz
pelos caminhos da noite
pede “seca-me os cabelos”
como lhe faziam em menina.
Depois vai à janela e encara
de frente o céu assombrado:
estas horas passarão num ápice
chegará o dia e o adeus
e só ficará a ausência.
O frio roça a sua pele húmida.
Jose Agustin Goytisolo



O SONO VENCEU-A POR UNS MINUTOS


Quem seria por Deus quem era
aquele homem meio abstraído
que olhava a lua cúmplice
o copo sempre atestado
um cigarro caído entre os lábios
e nu como o demónio?
O sono venceu-a por uns minutos
mas ele não se moveu. Observa
o amante, o conhecido de poucas horas,
se bem que ele sim parecia sabê-la de cor
apesar de se terem acabado de encontrar.
Olha o relógio. Pensa na sua casa:
na quietude que a mantém
enquanto ela... patetices!
Com assombro constata agora
que não sente pena ou sobressalto.
Levanta-se para beber:
ele vai ouvi-la e virá ao seu lado
para voltar a estremecê-la.

Juan Agustin Goytisolo



NÃO HÁ RETORNO


Já terminou o domínio
                                 da noite
e um ar macilento
                            surde
detrás dos cristais.
                               Vestiu-se:
recolhidas as suas coisas
                               enrola agora
o último cigarro.
                              Depois, em pontas
dirige-se para a porta:
                                não se vira
ela dormita e contemplá-la
                                           dói.
O seu corpo de luz é
                              desfechado na luz,
e ele esgueira-se tenso:
                                não há retorno,
adivinha que a morte
                                 lhe é propícia,
que há de fundir-se na sombra
                                 mais profunda
e vária. E que nada lhe aliviará
                                a derrota.
Juan Agustin Goytisolo


ELA CONFESSA O SEU AMOR ENQUANTO ESTÁ MEIO ADORMECIDA

Ela confessa o seu amor enquanto está meio adormecida
           no cúmulo da escuridão
                      em meias palavras, ciciadas:
enquanto a terra desperta o seu sonho invernal
           e faz germinar a erva, as flores
                       a despeito da neve,
                       a despeito da neve que cai.

Robert Graves




Sonhava com cidades longínquas
em paisagens ignotas, de cores ruidosas,
mesmo na orla dos desertos.
Os meus sonhos ausentam-se rapidamente
como as estrelas nas noites já extintas.
Faz frio nas catedrais
e o sorriso das mulheres
tornou-se raro, lapidar, estranho
como as flores da floresta tropical.

Só resta o desejo de não estar só
e a curiosidade.
É o que espicaça – todos os dias.
Felizmente que entre nós as mulheres não usam
um véu até aos tornozelos.
Mas a tenacidade do tempo já me fatiga
e arrasta para algures.

Adeus. Nada traí na minha vida.
Disso estou certo
e podeis crê-lo.

E o mais belo de todos os deuses
é o Amor.
Jaroslav Seifert

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