NICANOR PARRA (1914)
poeta e matemático chileno e invariavelmente candidato ao Nobel nos últimos vinte anos, Parra, irmão de Violeta, é o anti-Neruda e um poeta que revolucionou a poesia do seu país ao rechaçar a metáfora e evadir-se de todo e qualquer obscurantismo expressivo. Poeta de grande verve, a sua capacidade para “coloquiar” com o leitor, e o seu enfoque em cenas, figuras e imagens populares e quotidianas, tornaram-no uma figura central no panorama poético da América do Sul. Entre os seus livros contam-se Poemas e Antipoemas, Cueca larga, Hojas de Parra, entre outros.
As traduções são minhas, talvez com a ressalva de Canção (e caso não seja, lamento) pois já as fiz há uns anos e não me lembro em que ataque de tosse ou de sonambulismo a terei feito, apesar de estar na mesma pasta.
VIAGEM PELO INFERNO
Numa sela de montar
fiz uma viagem pelo Inferno.
No primeiro círculo
vi umas figurinhas
placidamente recostadas
a uns sacos de trigo.
No segundo círculo borboleteavam
homens em bicicleta,
à rasca, sem saber onde apear-se
- pois estavam bravas as chamas!
No terceiro círculo reparei
numa só figura humana
que parecia hermafrodita.
Era criatura sarmentosa
e dava de comer aos corvos.
Trotando e galopando queimei
um espaço de várias horas
até ter chegado a uma cabana
no interior de um bosque
onde vivia uma bruxa.
Sacrista do cão,
foi por um triz!
Já no círculo número quatro
topei um ancião de longas barbas,
calvo como um sandeu
que montava um pequeno barco
no interior de uma garrafa.
Que afável o seu olhar!
No círculo número cinco vi
uns jovens estudantes jogando futebol
araucano com uma bola de trapos.
Fazia um frio de rachar.
Tive de passar a noite em claro
num cemitério, encostado
a uma tumba
para não morrer de frio.
No dia seguinte continuei
a minha viagem por uns cerros
e vi pela primeira vez os esqueletos
das árvores incendiadas por turistas.
Só restavam dois círculos.
No primeiro lá estava eu
sentado a uma mesa negra.
Lambuzava-me com uma codorniz
e a minha única companhia
era um candeeiro a petróleo.
No círculo número sete não vi
absolutamente nada, só ouvi ruídos
estranhos e uns risos espantosos
enleados nuns suspiros
profundos, que perfuravam a alma.
CANTA-SE O MAR
Nada conseguirá arrancar da minha memória
a luz daquela misteriosa lâmpada,
o resultado que nos meus olhos fixou
ou a impressão que incrustou na alma.
Tudo pode o tempo: sem embargo,
creio que nem a morte a há-de aplacar.
E vou explicar aqui, se mo permite
o eco mais incisivo da minha garganta.
Naquele tempo, francamente, sequer atendia
ao nome, estava longe de escrever
o meu primeiro verso ou de sofrer
o derrame da minha primeira lágrima
e assemelhava-se o meu coração, nem mais
nem menos, ao esquecido quiosque de uma praça.
Mas aconteceu que certo dia o meu pai
foi desterrado para sul, para a desviada
ilha de Chiloé, onde o inverno
é como uma cidade abandonada.
Parti com ele e sem pensar chegámos
a Puerto Montt numa manhã clara.
A minha família de sempre habituada
ao vales centrais ou à montanha,
de maneira que nem por sombras
ou telepatia alguma vez se conversou
sobre o mar em nossa casa.
Sobre esta matéria eu sabia apenas
o que na escola pública ensinavam
e adivinhava uma ou outra ribeira clandestina
pelas cartas de amor de minhas irmãs.
Descemos de comboio entre bandeiras
e uma solene festa de paróquia
e então o meu pai puxando-me por um braço
e virando a cabeça para a branca,
eterna espuma, que ao longe
até um país sem nome navegava,
com o peso de uma oração disse-me:
«rapaz, olha o mar!». O mar sereno,
o mar que banha o cristal da pátria.
Não sei dizer porquê, mas é o caso,
uma força maior tangeu-me a alma,
e sem medir, ou suspeitar sequer,
a magnitude real do que observava,
desatei a correr, sem ordem nem concerto,
como um condenado para a praia
e num instante memorável pus-me face
a face com esse grande senhor das batalhas.
E aí, sim, estendi os braços sobre a asa
ondulante das águas, rígido o corpo
e fixas as pupilas na verdade
sem fim da distância, sem
que no meu ser se movesse um cabelo,
tal como a sombra azul das estátuas.
Quanto tempo durou a nossa saudação
não poderiam dizê-lo as palavras.
Só devo acrescentar que naquele dia
nasceu na minha mente o desassossego
e a ânsia de repetir em verso o que incessante
e onda a onda deus à minha vista recriava.
Data de então a fervorosa abrasadora
sede que me fisga até ao fundo:
na verdade desde que existe o mundo
ressoa a voz do mar na minha alma.
NÃO CREIO NA VIA PACÍFICA
não creio na via violenta
gostaria de crer
em algo - mas não creio
crer é crer em Deus
a única coisa que me vem
é encolher os ombros
perdoem-me a franqueza
não creio nem na Via Láctea.
COMO LHES IA DIZENDO
número um em tudo
nunca houve não há não haverá
sujeito de maior potência sexual que eu
uma vez fiz ejacular dezassete vezes consecutivas
a uma empregada doméstica
eu sou o descobridor de Gabriela Mistral
antes de mim não se tinha ideia de poesia
sou desportista: papo os cem metros planos
num abrir e fechar de olhos
hão-de saber que eu introduzi o cinema sonoro
no Chile e em certo sentido acrescente-se
sim sou o primeiro bispo do país
o primeiro fabricante de chapéus
o primeiro indivíduo que suspeitou
da possibilidade de voos especiais
eu disse ao Che Guevara Bolívia nunca
e expliquei-lhe com luxo de detalhes
quando se está avisado para quê arriscar a vida
a haver-me feito caso
não lhe teria acontecido o que lhe aconteceu
- lembram-se vocês do que aconteceu ao Che na Bolivía?
imbecil me chamavam no colégio
mas eu era o primeiro aluno da turma
tal como vossas excelências me vêem
jovem - bom moço - inteligente
genial diria mesmo
- irresistível -
com uma verga de cura e padre nosso
que as colegiais adivinham de longe
apesar de eu tratar de dissimular ao máximo.
SERMONES Y PRÉDICAS DEL CRISTO DE ELQUI
XX
Na realidade não há adjectivos
nem conjunções nem proposições
quem viu alguma vez um Y
fora da Gramática do Belo?
na realidade há só acções e coisas
um homem dançando com uma mulher
uma mulher que amamenta a cria
um funeral - uma árvore - uma vaca;
a interjeição coloca-a o sujeito,
o advérbio é estampada pelo professor
e o verbo ser é uma alucinação do filósofo.
XXVI
Resumindo a coisa
ao tomar uma folha por uma folha
ao tomar uma rã por uma rã
ao confundir um bosque com um bosque
estamos a comportar-nos frivolamente
esta é a quinta-essência da minha doutrina
felizmente já começam a vislumbrar-se
os contornos exactos das coisas
e já as nuvens se vê que não são nuvens
e os rios se vê que não são rios
e as rochas entra pelos olhos que não rochas
são altares!
são cúpulas!
são colunas!
e nós devemos dizer missa!
XLII
A presença do Espírito Santo
é um halo nítido no olhar inocente
num casulo que está por abrir
num pássaro que se balanceia no ramo
difícil que alguém possa pôr em dúvida
a presença do Espírito Santo
num pão recém tirado do forno
num copo de água da serra
numa onda que se estrela contra uma rocha
cego de nascimento teria de ser!
até um ateu treme de emoção
diante da sementeira que se inclina
sob o peso das espigas maduras
diante de um belo cavalo de corrida
de um volkswagen último modelo
o difícil é saber detectá-Lo
onde parecia não estar
nos lugares de menor prestígio
nas actividades inferiores
nos mais desesperados momentos
aí falha o comum dos mortais
quem poderia dizer qu’ O percebe
nos achaques da velhice
nos enfeites das prostitutas
nas pupilas dos moribundos?
e no entanto O Indelével nunca falha
pois permeia tudo como o sódio
que o digam os Padres da Igreja!
Genuflictamos uma vez mais
em homenagem ao Espírito Santo
sem cujo visto nada de bom nasce cresce
ou tão pouco morre neste mundo.
O TÚNEL
Passei uma época da minha juventude em casa de umas tias
arrastou-me para isso a morte de um senhor que nunca deixou de lhes estar ligado
e cujo fantasma as molestava sem piedade
tornando-lhes a vida irrespirável.
Ao princípio mantive-me surdo aos seus telegramas
e cartas lavradas numa linguagem de outra época
prenhe de alusões mitológicas
e de nomes próprios desconhecidos para mim,
muitos dos quais pertenciam a sábios da antiguidade,
a filósofos medievais de menor coturno
ou a simples vizinhos do lugarejo em que habitavam.
Abandonar assim às boas de supetão a faculdade
rompendo com os encantos da vida galante
só para satisfazer os caprichos de três anciãs histéricas
afigurava-se-me um estorvo irreparável.
E aturar-lhes toda a infinita classe de problemas pessoais
resultava, para uma pessoa do meu carácter,
um futuro pouco lisonjeiro, uma ideia descabelada.
Mas a verdade é que aboborei quatro anos n' O Tunel,
em comunidade com aquelas damas medonhas
quatro anos de um martírio inalterável
dos confins da manhã à noite extrema. Breve,
as poucas horas de ripanço debaixo das árvores
converteram-se em semanas de fastio
em meses de angústia que dissimulava ao máximo
sob pena de despertar curiosidade em torno da minha
[pessoa
e assim se passaram anos de ruína e miséria,
séculos de encarceramento vividos por uma alma
inadvertida no bojo de uma garrafa de mesa!
A minha concepção espiritualista do mundo
colocava-me ante os factos num plano de franca
[inferioridade
porque eu via tudo através de um prisma
ao fundo do qual as imagens de minhas tias se entrelaçavam
com filamentos vivos, numa espécie de malha impenetrável,
que feria a minha vista, tornando-a cada vez mais ineficaz.
Um jovem de escassos recursos não se dá conta das coisas.
Às tantas vive numa campânula de vidro que se chama Arte
que se chama Luxúria, ou que evoca as leis da Ciência,
tratando de estabelecer contacto com um mundo de relações
que só existem para ele e para um reduzido grupo de amigos.
Debaixo dos efeitos de uma espécie de vapor de água
que se filtrava pelo piso da habitação,
permeando a atmosfera até tudo se tornar invisível,
eu passava as noites diante da minha mesa de trabalho
absorvido na prática da escrita automática.
Mas para quê aprofundar estas matérias desagradáveis -
aquelas matronas vigarizavam-me miseravelmente
com as suas falsas promessas e as suas bizarras fantasias
e as suas dores sabiamente simuladas
retiveram-me anos entre as suas redes
obrigando-me tacitamente a trabalhar para elas
em fainas de agricultura
compra e venda de animais -
até que uma noite, olhando pela fechadura,
surpreendi uma delas
- a tia paralítica! -
a caminhar lestamente sobre a ponta dos seus pés
e voltei à realidade com um sentimento dos demónios.
UM HOMEM
A mãe de um homem está gravemente doente
Ele parte à procura de um médico
E chora
Na rua vê a sua mulher com outro homem
Vão de mão dada
Ele segue-os de perto
De uma árvore a outra
E chora
Depois cruza-se com ele um amigo de juventude
Aos anos que não nos víamos!
Acabam por entrar num bar
Discutem riem
O homem sai para ir mijar ao pátio interior
E vê uma rapariga
Já é de noite
Ela lava os pratos
O homem aproxima-se da rapariga
Toma-a pela cintura
Dançam uma valsa
Juntos saem juntos rua fora
E riem
Acontece um acidente
A rapariga perdeu a consciência
O homem vai telefonar
E chora
Chega ao pé de uma casa iluminada
Pede para telefonar
Há alguém que o reconhece
Fique para jantar amigo
Não
Onde está o telefone
Coma amigo coma
Depois logo vai
Ele senta-se para jantar
E bebe como um condenado
E ri
Fazem-no cantar
Ele canta
E depois adormece no escritório.
CANÇÃO
Quem eras tu repentinas
donzela que se desapruma
como a aranha que pende
da pétala de uma rosa.
O teu corpo relampeja
entre os maduros pomos
que o cálido ar arrancou
da árvore da santola.
Cais com o sol, escrava
dourada da papoila
e choras entre os braços
do homem que te desfolha.
És mulher ou és deus
rapariga que te incorporas
uma nova Afrodite sobrevinda
do fundo de uma corola?
Ferido no mais profundo
do cálice, desenrolas-te,
gemes de prazer, estiras-te,
rachas como um copo.
Mulher parecida ao mar
- violada entre onda e onda –
eras ainda mais fogosa
que um céu de rubras nuvens.
A mesa está posta, morde
a uva que se passa
e beija com ira o duro
cristal que te deixa louca.
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