segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

GROUCHO E ELIOT/ a correspondência, com retratos, selos e tudo





 Esta deliciosa correspondência entre T.S.Eliot e Groucho Marx foi traduzida por Helder Moura Pereira, por sugestão dele, para o nº2 da revista Magma, dirigida por Carlos Alberto Machado e Sara Santos, que eu coordenei. A tradução foi revista para esta postagem.


26 de Abril de 1961

Caro Groucho Marx,

Escrevo para lhe dizer que o seu retrato já chegou, o que me deu grande alegria, e que, depois de emoldurado, o vou pôr na parede junto de outros amigos meus igualmente famosos, como W.B.Yeats e Paul Valéry. Não sei se me pediu uma fotografia minha por querê-la mesmo ou por mera amabilidade, mas, seja como for, enviá-la-ei logo que possa. Já mandei fazer uma das que considero melhores e nela hei-de pôr uma dedicatória que expresse toda a minha gratidão e sincera admiração. O seu retrato, de entre todas as figuras mais conhecidas que aprecio, era o que eu mais ambicionava ter e, no que diz respeito ao meu, ficarei contente se houver um cantinho na sua colecção onde possa caber.
            Termino dizendo-lhe que, se e quando vier a Londres com Mrs. Marx, a minha mulher e eu gostaríamos muito de ter a vossa companhia num jantar em nossa casa.

Com os melhores cumprimentos,
T.S. Eliot

P.S.
Sou também grande apreciador de charutos, mas no meu retrato também não aparece nenhum.

19 de Junho de 1961

Caro T.S.,

A sua fotografia chegou em boas condições e eu espero que esta simples nota de agradecimento o vá encontrar igualmente bem.
            Não fazia ideia de que era tão bem parecido. Você nunca ter recebido qualquer proposta para actor principal de um filme de amor só pode dever-se à estupidez de quem faz os elencos.
            Se for a Londres, decerto aproveitarei o seu gentil convite e se se der o caso de ser você a vir à Califórnia, espero que me permita ser eu a convidar.

Cordialmente,
Groucho Marx


25 de Janeiro de 1963

Caro Sr. Eliot,

Acabei de ler na revista Time que se encontra doente. Gostava só de lhe dizer que estou aqui a torcer para que a sua recuperação seja rápida. Em primeiro lugar, por causa da sua contribuição para a literatura, e depois pelo facto de nas mais difíceis circunstâncias nunca abandonar a companhia de um bom charuto.  
            Vá lá, despache-se e ponha-se bom.

Com toda a consideração,
Groucho Marx

23 de Fevereiro de 1963

Caro Groucho Marx,

A mim parece uma impertinência maior tratar Groucho Marx por “Caro Sr.Marx” do que tratar qualquer outra pessoa célebre pelo seu primeiro nome. Se o trato desta forma, meu caro Groucho, é apenas devido ao muito respeito que tenho por si. E não imagina a minha alegria se um dia recebesse uma carta de Groucho Marx que começasse com “Caro T.S.E.”. Mas se agora lhe escrevo é para agradecer a sua carta e dizer que estou a convalescer o mais rapidamente que me permitem os terríveis rigores deste Inverno, o que leva a que a minha mulher e eu partamos para as Bermudas, onde o clima é mais quente e o ar mais puro, nos finais do próximo mês, esperando estar de volta a Londres pela Primavera, a tempo, pois, de o receber com enorme satisfação. Seria magnífico se pudesse visitar-nos, digamos, no princípio de Maio.
            Mrs. Groucho virá consigo? (Julgamos tê-los visto aos dois na Jamaica, no princípio de 1961, prestes a embarcar naquele barco de fibra de vidro do qual tínhamos acabado de escapar). É importante que traga uma secretária, um encarregado de relações públicas e um par de detectives privados, para vos proteger da imprensa londrina; esperamos sinceramente que, apesar dos seus inúmeros afazeres, nos possa dar a honra de partilhar uma refeição connosco.

Com a maior simpatia
T.S.Eliot

P.S. O seu retrato já está emoldurado e pendurado na parede do meu escritório, mas tenho sido eu a dizer quem você é aos meus visitantes, pois ninguém o identifica assim, sem o charuto e os olhos a rodopiar. Vou fazer os possíveis por ter à sua espera charutos que sejam merecedores de si.

16 de Maio de 1963


Caro Groucho,

Era minha intenção escrever-lhe mal chegasse das Bermudas a fim de agradecer esta sua segunda e belíssima fotografia, mas, após cinco semanas no hospital no final do ano, e outras tantas em casa, entregue aos cuidados de minha mulher, acabei por ser despachado logo a seguir para as Bermudas, porque era urgente recuperar em clima mais ameno, e só agora de lá regressei. Ainda não estou completamente restabelecido, mas espero já me encontrar bem quando você e Mrs. Groucho vierem até cá. Já há alguma data? Estaremos no Yorkshire por finais de Junho e princípios de Julho, mas ficaremos por aqui durante o resto do Verão.
            Entretanto, deixe-me que lhe diga, o seu esplêndido novo retrato já está para emoldurar. Eu gosto muito das duas fotografias e não consigo decidir qual a que levarei para casa e a que ficará comigo no escritório. A segunda que recebi impressionaria mais os meus visitantes, sobretudo aqueles que eu gostaria de impressionar, pois é indesmentivelmente Groucho. Talvez a única solução seja eu andar com ambas diariamente de um lado para o outro.
Não sei se serei capaz de descobrir charutos da qualidade do que aparece no seu retrato, mas vou fazer os possíveis.

Com a gratidão do seu admirador,
T.S.

11 de Junho de 1963

Caro Sr.Eliot,

Sou um correspondente assaz descuidado e só agora, com a sua carta de 16 de Maio aqui à minha frente, é que venho dar-lhe notícias.
            A verdade é que uma coisa é o que planeamos fazer e outra o que a vida nos traz. Pouco tempo depois de receber a sua carta, vi-me a braços com uma infecção não muito grave, mas de que ainda não recuperei completamente, o que obriga a que todos os planos que tinha feito para sair no Verão tenham ido por água abaixo.
            Agora é minha intenção visitar Israel no princípio de Outubro, quando os turistas já estão todos de regresso aos seus países. E quando voltar de Israel, então sim, passarei por Londres para o ver.
            Espero que já esteja totalmente recuperado da sua doença e que cuide bem de si, para que nada mais lhe aconteça. Em Outubro, não se esqueça, fica combinado que nos vamos enfrascar os dois.

Cordialmente,
Groucho

24 de Junho de 1963

Caro Groucho,

A mudança de datas que me refere na sua carta tem, pelo menos, a vantagem de saber que estarei em melhores condições em Outubro para beber uns copos consigo. Invejo-o por ir a Israel e, se o clima não for mau no Inverno, talvez eu o possa fazer também um dia, dado que tenho uma genuína admiração por esse país. Espero que traga muitas coisas para contar quando nos encontrarmos e que, já agora, ambos gozemos da melhor saúde.
            Um dos seus retratos está na parede do meu escritório e o outro em cima da minha secretária, em casa.

Saudações do
T.S.

1 de Outubro de 1963

Caro Tom,

Se não é este o seu verdadeiro nome, é o cabo dos trabalhos! Mas acho que li já não sei onde que o seu primeiro nome é o mesmo que o de Tom Gibbons, um pugilista profissional que em tempos viveu em St. Paul.
            Não fazia a mais pequena ideia de que já tem setenta e cinco anos. Na secção de livros do New York Times de 29 de Setembro saiu uma excelente homenagem a si. Se não tiver conseguido arranjar o New York Times, diga-me e eu mando-lhe o meu exemplar. Vem lá uma magnífica fotografia sua feita por um tal Gerald Kelly. A avaliar por essa fotografia, eu não lhe daria mais do que sessenta anos, no máximo mais uns quinze dias.
            Havia também um parágrafo que mencionava os muitos retratos que povoam o seu escritório. Um dos nomes brilhava pela ausência. Cá para mim, deve ter sido por lapso de Stephen Spender.
            A minha doença, que, há três meses, os meus médicos descreviam como trivial, tem-me deixado de rastos. Enquanto isto, os tais três médicos vivem à grande e à francesa. Até agora, já me extorquiram oitocentas notas. Só falo nisto para lhe explicar porque não posso deslocar-me aí em Outubro. Contudo lá para Maio ou à volta disso conto estar nas melhores condições para usufruir da refeição grátis que me vem prometendo desde há dois anos.
            Tudo de melhor para si e para a sua encantadora mulher, seja ela quem for.
            Espero que a boa saúde tenha voltado.

Os melhores cumprimentos do
Groucho

16 de Outubro de 1963
Caro Groucho,

Tenho aqui comigo a sua carta de 1 de Outubro. Não consigo lembrar-me de quem seja Tom Gibbons, mas se o ajudar a lembrar-se do meu nome, tanto melhor.
            Acho que Stephen Spender estava apenas a referir-se a pinturas a óleo e a aguarelas, não a fotografias – pelo menos assim me pareceu. Sendo certo que há uma grande profusão de fotografias de parentes e amigos no meu estúdio, também devo dizer, por amor à verdade, que não me recordo de o Stephen lá ter entrado alguma vez. Ele mandou-me o que escrevera para o New York Times e eu propus umas alterações, fazendo-lhe notar que também havia por aqui uns quantos livros bons, coisa que ele próprio podia ter visto se olhasse um pouco mais para cima.
            Existe também no meu escritório um intrigante retrato que pertence a uma pessoa muito importante e que já tem sido identificado por visitantes e amigos de ambos os sexos.
Lamento que não possa vir até cá este ano e ainda mais lamento as razões que o impedem. Espero, contudo, que seja possível na Primavera, isto se os seus médicos lhe deixarem dinheiro na conta bancária que dê para as despesas da viagem. Se não puder vir, receio bem que todas as pessoas a quem me andei a gabar de o conhecer (e de nos tratarmos pelo nome próprio) me vão achar um fala-barato. Pode contar com a tal refeição grátis, bebidas incluídas, quando vier em Maio. Entretanto, estaremos em Nova Iorque durante todo o mês de Dezembro e se por acaso acontecer estiver por lá nessa altura do ano, espero poder antecipar, com muito gosto, a refeição grátis. Creia que ficarei encantado se puder encontrar-me consigo e for visto na sua companhia, seja em que sítio for. A minha encantadora mulher junta-se-me nos desejos dos melhores votos para si, mas devo dizer que não acrescentou “seja ele quem for” – ela sabe quem você é. Fui eu, de resto, quem lhe deu a conhecer os filmes dos Irmãos Marx e agora ela é tão sua admiradora quanto eu. Não há muito tempo, fomos ver uma reposição de Os Irmãos Marx no Faroeste, que eu ainda não tinha visto. E não demos o tempo por perdido.

Sempre seu,
Tom

P.S.
A fotografia foi tirada a um retrato a óleo, feito há 2 anos, não é uma fotografia extraída da vida real. Ficou muito bem e a minha mulher diz mesmo que é a minha representação fiel.

1 de Novembro de 1963

Caro Tom,

Uma vez que Você descende dos primeiros americanos (não quero com isto dizer que seja uma velha peça de mobília mas que, para todos os efeitos, as suas origens estão lá em St. Louis), já deveria ter ouvido falar de Tom Gibbons. Para seu proveito, deixe-me dizer-lhe que Tom Gibbons é natural de St. Paul, no Minnesota, que fica tão perto de Missouri que, se atirássemos uma pedra, ela lá chegaria. Isto, claro, se a pedra fosse dentro de um míssil. Tom foi, a determinada altura, campeão do mundo de pesos-leves e, apesar de ter menos nove quilos do que Jack Dempsey, obrigou-o a um combate nulo em Shelby, Montana.
            O nome Tom dá para muita coisa. Houve em tempos um famoso actor judeu chamado Thomashevsky. Além disso, todos os gatos se chamam Tom – a não ser que tenham sido capados. Nesse caso, são apenas neutros e, como os acontecimentos em Saigão tão bem demonstraram, já não há lugar para os neutros.
            Há uma velha canção de embalar que começa assim: “Tom, Tom, dorme que é bom”, e por aí fora. O terceiro Presidente dos Estados Unidos também se chamava Tom… se é que Jefferson não lhe tinha ocorrido ainda.
            Portanto, quando o trato por Tom, isso quer dizer que você é um misto de pugilista, gato vadio e terceiro Presidente dos Estados Unidos.
            Acabei há pouco tempo o meu último opúsculo, Memórias de Um Pinga-Amor. Muito do que lá está é autobiográfico e muito pouco é ficção. Duvido que possa sobreviver ao tempo, mas se você estiver mais inclinado para as coisas do sexo na noite em que o ler, pode ser que o estimule a um ponto inesperado e lhe reacenda recordações que há muito não habitavam a sua mente.
            O  sexo, como indústria, é um grande negócio neste país, tal como acontece em Inglaterra. É algo em que toda a gente está interessada, nem que seja teoricamente. Eu acho que nunca deixou de ser assim, embora pense que nos bons velhos tempos era discutido e praticado de uma forma mais sub-reptícia. Seja como for, agora os novos escritores não se inibem de trazer para a praça pública o quarto e a casa de banho. Os responsáveis por isto tudo são Havelock Ellis, Krafft-Ebing e Brill, Jung & Freud (agora até pus aqui um trio, especialmente para si!). E, claro, há que acrescentar o falecido Sr. Kinsey, que, achando pouco o que lhe contavam, andou de casa em casa a meter o nariz em sítios onde os anjos sempre temeram entrar.
            Ainda assim, gostaria de saber a sua perspectiva sobre o sexo, portanto não hesite. Confie em mim: embora possa haver quem não me ache de confiança, em assuntos tão importantes como esse garanto-lhe que o sou.
            Se houver alguma possibilidade de poder estar em Nova Iorque em Dezembro, creia que farei para que tal aconteça e que lho direi.
            Tudo de melhor para si e Mrs. Tom

            Seu,
            Groucho

3 de Junho de 1964

Caro Groucho,

Escrevo para lhe dizer que já diligenciámos para que um carro da International Car Hire (uma firma a que recorremos várias vezes) vos vá buscar, a si e a Mrs. Groucho, pelas 18.40h de Sábado, no Savoy, a fim de vos trazer até nossa casa para o jantar e vos leve de volta mais tarde. Sois nossos convidados em tudo, claro está, e ambos ansiamos pelo momento em que teremos o grande prazer de vos ver.
            A notícia que acompanhava a sua fotografia nos jornais, referindo que, entre outras coisas, você vinha a Londres para estar comigo, aumentou em muito a minha reputação aqui no bairro, sobretudo na mercearia da esquina. É óbvio que agora sou uma pessoa importante.

Sempre seu,
Tom








 

CARTA DE GROUCHO MARX A GUMMO MARX REFERINDO O JANTAR EM CASA DE T.S.ELIOT E ASSINANDO TOM MARX

Junho, 1964

Querido Gummo:

A noite passada a Eden e eu fomos jantar a casa do meu famoso pen pal, T.S. Eliot. Foi uma noite memorável.
            O poeta recebeu-nos à porta na companhia de Mrs. Eliot, uma senhora de meia idade, loira e com muito bom aspecto, cujos olhos se enchiam de adoração sempre que olhava para o marido. Ele, por sua vez, é alto, magro e encurvado; não sei se isso se deve à doença, à idade ou a ambas as coisas. Devo dizer-te que este que te escreve chegou à casa dos Eliot completamente preparado para o que desse e viesse, no caso da conversa se tornar mais literária. Durante a semana li duas vezes Assassínio na Catedral, três vezes “A Terra sem Vida” e, pelo sim pelo não, li também umas coisas do Rei Lear.
            Bom, passou-se então, meu caro, que, enquanto serviam os aperitivos e durante um daqueles silêncios sempre inevitáveis quando estranhos se encontram pela primeira vez, eu, a propósito de coisa nenhuma (e “não com o som de um estrondo, mas com o de um lamento”[1]), lancei para o ar uma citação de “A Terra sem Vida”. Isso demonstraria, pensava eu, que costumava ler umas coisas para lá das  notícias do mundo do espectáculo.
            Eliot sorriu vagamente – como a querer dizer que sabia os seus poemas de cor e salteado e não precisava que lhos recitasse. Posto isto, atrevi-me a uma incursão pelo Rei Lear. Disse que o rei era um velho incrivelmente tonto, Deus bem o sabia; e que, se fosse meu pai, eu teria fugido de casa aos oito anos – nem esperava até aos dez.
            Também não foi coisa que impressionasse o poeta. Parecia estar mais interessado em conversar sobre Os Galhofeiros ou Uma Noite na Ópera. E contou mesmo uma piada – uma das minhas – de que já nem eu me lembrava. Foi a minha vez de esboçar um sorriso vago. Eu não ia deixar ninguém – nem mesmo o poeta britânico de St. Louis – estragar o meu serão literário. Assinalei que o discurso de abertura do Rei Lear era o cúmulo da idiotia. Imaginem (disse eu) um pai a perguntar aos três filhos: Qual de vocês gosta mais de mim? E renegar depois a mais nova – a doce e amável Cordélia – , porque, ao contrário da irmã mais nova, uma perversa, era incapaz de se desfazer em falsas bajulações. Além do mais, Cordélia era, lembremo-nos, a favorita do pai!
            Os Eliot escutavam educadamente. Mrs. Eliot começou então a defender Shakespeare; e também Eden, lamento dizê-lo, se pôs do lado do Rei Lear, apesar de eu ser a única pessoa em todo o mundo que a apoia. (Para ser justo para com a minha mulher, devo dizer que, tendo representado o papel de Princesa numa produção escolar de O Cisne, soube reter da peça o calor humano que advém da dignidade).
            Quanto a Eliot, perguntou-me se eu me lembrava da cena do tribunal em Os Grandes Aldrabões. Felizmente que eu nem de uma palavra me lembrava. E assim chegámos ao fim do Serão Literário, que foi, apesar de tudo, muito agradável. Descobri que Eliot e eu temos três coisas em comum: 1. uma verdadeira paixão por bons charutos e 2. por gatos; e 3. pelo vício de fazer trocadilhos – um vício que tento deixar há muitos anos. T.S., pelo contrário, faz gala disso – até sente um certo orgulho. Inventou o Gus, por exemplo, o Gato do Teatro, cujo “verdadeiro nome é Asparagus[2]”.
            Já que falo de espargos, deixa-me dizer-te que o jantar incluiu bife, um excelente e suculento bife inglês, muito bem cozinhado. E que, apesar de haver uma espécie de mordomo a servir, o próprio Eliot fez questão de ser ele a tratar do vinho. E era um vinho extraordinário, nenhum maître d’hotel podia tê-lo servido de forma mais delicada. Ele é uma pessoa muito simpática e recebe de uma forma bem afectuosa.
            Quando lhe disse que a minha filha Melinda andava a estudar a sua poesia na Faculdade de Beverly, ele afirmou que o lamentava, pois não tinha o mais pequeno desejo de tornar-se leitura obrigatória.
            Não ficámos até muito tarde, dado que ambos sentimos que ele não aguentaria uma longa noite de conversa – sobretudo comigo.
            Já te disse que o tratámos por Tom? Se calhar por ser esse o nome dele. Eu, como é óbvio, pedi-lhe que me tratasse também por Tom, mas só porque detesto o nome Julius.

Teu,
Tom Marx


[1] not with a bang, but a whimper – a citação pertence a um outro poema de T.S. Eliot, The Hollow Men
[2] Ficam, a propósito, os primeiros quatro versos de Gus: the Theatre Cat, de Old Possum’s  Book of Practical Cats:
                Gus is the Cat at the Theatre Door.
                His name, as I ought to have told you before,
                Is really Asparagus. That’s such a fuss
                To pronounce, that we usually call him just Gus.

OS ÓSCARES E AS FONTES DO GANGES

Orson Welles: o bruto estava-se nas tintas para os Óscares. Como é possível?

Da mesma forma que passei ao lado duma carreira de crítico de cinema, embora tivesse exercido o ofício durante vinte anos, dezasseis no melhor jornal de Lisboa, o semanário Expresso, onde pontuava os filmes com estrelinhas e botava faladura (- para muitos incompreensível, pois claro!), nunca compreendi a excitação entre os meus colegas encartados com a cerimónia dos Óscares.
Com as suaves excepções que honram as regras, o que pode a grande indústria oferecer-nos senão o esplendor da sua afirmação e, portanto, marcas de reconhecimento? Perde-se semanas em pleonasmo puro, quer nas redacções dos jornais ou televisões, quer na mente dos que anualmente, texto a texto, repetem os mesmos argumentos gizados há décadas. Se se quiser conhecer a preguiça dum jornalista cultural basta encarregá-lo de cobrir os Óscares.
Vejo na televisão o meu amigo João Lopes (um homem inteligentíssimo e com um olhar particular sobre o cinema) e verifico que nem ele pode escapar ao formato imposto: pede-se que se chova no molhado, e considera-se isso um espectáculo. É um enigma.
Nunca participei destes festins na televisão. Na verdade fui a uma vez a um programa da Clara Ferreira Alves, por causa de um livro de ficção que havia lançado, As Cinzas de Maria Callas, e o meu organismo portou-se tão vergonhosamente que fiquei banido de qualquer convite por décadas.
Descanse a rapaziada, não me masturbei em directo, ou tirei burriés do nariz. Simplesmente, era a primeira vez que estava em directo num programa de televisão durante 50 minutos (ainda que acompanhado iriam recair 15 minutos sobre mim), e a minha mente bolsou num alarme: está um milhão de pessoas a ver-te neste instante. O que fez o meu corpo portar-se como o da Madre Calcutá quando possuída por mafarrico: com o pânico gravado no olhar e no meu raciocínio, bloqueado, afásico, brutalmente em círculo, desatei a transpirar o Ganges. Eu metamorfoseei-me na fonte do Ganges em directo. Não é preciso consultar o mapa para saber onde fica a dita, é na minha testa.
No dia seguinte fui com a minha mulher ao Pingo-doce e tive a alegria de ver repetida em 200 ecrãs alinhados na secção de electrodomésticos a minha figura de ribeiro desenfiado em barroso delta, o que mereceu, ali mesmo, ao meu lado, o comentário duma criança de quatro anos que apontou o meu olhar de pânico na televisão e o caudal concomitante, e resumiu: “aquele senhor é um cocó!”. Nunca mais o cocó foi convidado para ir à televisão, fosse qual fosse o pretexto e a sua competência: definitivamente carimbado como excelso cocó.
Curiosamente, foi no Brasil, onde fui lançar uma revista literária onde colaboravam vários escritores de S. Paulo e Belém do Pará, que aprendi a apresentar-me compostinho na televisão e escorreito como Pã que vê a ninfa cabriolar à sua frente. Foi só o camaramen ter tido a simpatia de me sussurrar: “olha que atrás da câmara, só estou eu”, e uma pergunta idiota da pivot, mais concentrada no penteado, sobre se o Manoel de Oliveira não seria um teenager divorciado, para me descontrair, soltar, e ter até pegado na conversa e nos seus ritmos. Nunca mais soltei o Ganges que há em mim ou tive medo da câmara – mas a minha carreira de showman televisivo estava perdida.  Ó Gugu, perdeste um concorrente à altura!
Se um dia tiver que ter um epitáfio – porque enfim, embora ainda me veja detentor de uma insofismável imortalidade, e não vislumbre a mínima necessidade disso, enfim, quem sabe se um dia não renuncio e começo a declinar, tudo voluntariamente, esclareça-se -, se um dia for mesmo preciso, então poderá ser:
“Era tão humilde que os jovens telespectadores do seu tempo quando o viam julgavam ter encontrado o Ganges e os seus esgotos!”      

domingo, 27 de fevereiro de 2011

SE AS COISAS NÂO FOSSEM O QUE SÃO/ texto revisto e acabado

foto de mapplethorpe
Acendi a televisão por acaso e dei com a cerimónia da atribuição do Prémio Autores SPA (Sociedade Portuguesa de Autores)/ RTP, onde se consagravam os artistas e escritores do ano de 2010. De entre os três nomeados para o prémio de melhor livro de poesia do ano lá estava o Helder Moura Pereira e o livro “Se as Coisas não Fossem o que São”. Perdeu, ganhou um jovem António Carlos Cortez, que ainda não li. Pode ser que o livro de Cortez seja de facto magnífico, di-lo-ei depois de ler.
Contudo, não creio, à partida, que a nomeação do Helder tivesse outro propósito senão a de chamar a atenção para o livro (o que já é um papel positivo) pois não vejo em Portugal coragem para enfrentar as controvérsias (sobretudo tendo como tutela a RTP) e premiar um livro onde se escreve «que vá prò caralho este poemazinho», (pág.87), ou «À noite, depois de me deitar,/ carregado com uma droga qualquer,/ de vez em quando surgem/ em catadupas melodias…»(pág.71, sublinhado meu).
A única coisa que lamento sobre a não atribuição do prémio ao livro é que a maçaroca, as lecas, a mola… viriam na altura certa para o Helder. Não falo por ele (só o Helder pode falar por si mesmo), opino em abstracto. Os prémios não devem vir nem tarde demais nem cedo demais. Era o momento de estímulo certeiro. Ele não precisa disso para continuar a produzir, mas daria jeito… (repito, não falo em nome de ninguém, simplesmente imagino).
Este revés Campo de Ourique deu-me por outro lado o pretexto para acabar, remexer, corrigir o texto que vinha a fazer neste blog sobre o livro. E portanto aqui posto, acabado, o fruto do meu diálogo com ele.
Seguir-se-ão conversetas com o Armando Silva Carvalho e o Nuno Dempster.    

matta-clark
"SE AS COISAS NÃO FOSSEM O QUE SÃO" 
 Assírio & Alvim/ 2010

Eu risco e dobro as páginas dos livros. Sou um horror. E ao ler pela quarta vez o Se as Coisas não Fossem o que São, do Moura Pereira Moura Pereira, dei conta de que tinha dobrado todas as páginas. A cada leitura as suas preferências, como os estratos na terra.
Não vejo aqui um poema dispensável, mesmo os que parecem ser (e já lá iremos). À primeira leitura é um puro alienígena ou lembra um livro «desajeitado, muito maluco», que nos agarra como quem não quer a coisa, à espera que aconteça algo que ao fim percebemos ter sido a própria experiência do livro deflagrada em nós:
«Acendeste a luz
para me veres a cara e viste
um lugar obscuro e todo vazio».
Quem é que acendeu? O leitor. 
Talvez seja este um dos aspectos que faz a adesão crescente que a poesia do Moura Pereira tem conhecido: esta escrita convoca-nos, não a lemos como observadores distantes mas no acto de deambular por dentro duma floresta que se nos assemelha. Ficamos imersos. Lê-lo é retomar uma conversa inacabada.
Este livro começa com a fala de um morto e tem, no poema tremendo que a meio do livro fecha o terceiro capítulo - onde o narrador se encontra com a sua figura já morta -um dos seus pontos focais, mas não quero para já ler o livro como uma catábase, ainda que o quinto poema do primeiro ciclo seja um belíssimo poema de amor («Metáfora? Nem penses, os teus abraços/são quentes e é por isso que finjo/ ter frio o tempo todo.») onde é sugerido que só o outro nos pode devolver a temperatura do mundo, a carne dos vivos e, no livro, o sentimento da morte esteja omnipresente:
«A morte e o seu cheiro presentes no beijo
da criança a uma velha com pêlos no queixo,
que ainda por cima depois retribuía – oh
céus – com outro beijo lambuzado na bochecha.

Pois esse cheiro inesquecível está de volta,
acompanhou-nos nos piores momentos
e invadiu a casa como frango assado. (pág. 32)».
Como neste último verso, os signos do quotidiano, as frases bordão, os lugares-comum, as marcas da oralidade são recorrentemente combustível para os poemas, mas o Moura Pereira nunca esquece a lição de Hitchcok: deve-se partir dos clichés para os transfigurar e não chegar a eles. De igual modo, também nunca se esquece de que os “intervalos” da vida passamo-los com as matérias menos nobres. Foi o que separou Bataille de Breton; às sublimidades do último, Bataille contrapunha os rigores dos “baixos fundos”, as contingentes unhas (porque será que ganham em velocidade com a idade?), os pés, os cheiros, os descasos, a urina, toda a matéria ímpia. Do alto da sua pureza, lastimava Breton a Voznessenski que o Cocteau desse cabo da sua poesia, e exemplificava, horrorizado: «La guitare, bidet qui chante», enquanto o poeta russo, constrangido, retorquia, que, pelo contrário, essa imagem lhe agradava muito e que adoraria encontrar similares. Aí está uma coisa com que o Moura Pereira concordaria, ele que há muitos anos deixou de cultivar os brilhos na poesia e se “limita” a «rasurar a experiência/ e pôr em palavras a razão da sua banalidade».
Para Moura Pereira não há uma prévia comunidade de destino, há o a fazê-la. O que o fez distanciar-se das grandes narrativas agregadoras ou da tentação oracular do poema alquímico: 
«(…) Já não há sangue/ que nos una.
Ou oiro que derreta
qualquer símbolo na porta do céu. Eu
tu. Já quase não estamos, pó que somos (pág.32)»
Esta separação,  a cesura que afasta «eu» e «tu» é essencial. Para percebermos porquê terei de contar uma história.
Algumas vezes me escolheu o Moura Pereira para apresentar os livros dele e nunca percebi porquê. Suponho que era a vaidade que me levava a aceitar, para além de ter gostado do livro e da amizade. Mas uma coisa é gostar e outra arrancar daí alguma coisa que faça sentido. Mentir é fácil, mais difícil é acertar. Tenho uma memória difusa mas menos ruim do prefácio que lhe fiz para uma antologia em francês – Feuille de Vent Amour, Orfeu/ Livraria Portuguesa, Bruxelas 1995 -; já me vergo de vergonha à lembrança de um lançamento no Porto – do Nem por Sombras, da Afrontamento – com uma sala apinhada de gente que sabia o que o poema deve ser – Gastão Cruz, Echevarria, Fernando Guimarães – enquanto eu andava às aranhas para explicar que aquele livro representava um paradigma diferente, na pluralidade a que a poesia tende. E senti-me mirado até ao osso, na triste figura de alguém que tenta soprar as velas numa gelatina. Um texto absolutamente inócuo, ao lado, e inapropriado – lembro-me vagamente que discorria sobre os mecanismos do sonho e como estes contaminavam aqueles poemas. O Moura Pereira nunca me disse uma palavra sobre o meu “desacerto global” e continuou a rir-se nos almoços que se seguiram. Mas senti-me, naquela situação, bastante desconectado, sem perceber ainda que nessa ocasião experimentava afinal um dos temas essenciais ao poeta.
Lamenta-se o Hamlet: «o tempo está fora dos eixos: ó sorte malvada, ter nascido para o endireitar!». Vejamos como o Moura Pereira deslocaria esta asserção tão nobre, imaginemos: «O tempo está fora dos eixos,/ ó sorte macaca, ter de ir ao endireita!». Brinco, falo todavia de algo muito sério, de um redimensionamento ético inerente a quem sabe que não pode endireitar o mundo, não só porque tal tarefa ciclópica estafou em equívocos o século XX como também porque afinal o mundo está dentro de nós e não lá fora – não é uma prótese que se corrija ou substitua facilmente. E esta nova atitude face ao político projecta-se também no relacionamento interpessoal.
A poesia de Moura Pereira é (na recente poesia portuguesa) a que expõe com maior insistência as desordens, falácias e atritos da comunicação humana e da sua vertente amorosa. Porém, considero-a «reservadamente sarcástica» (Blok), isto é, apesar de às vezes embarcar numa auto-ironia que não teme a corda bamba considero erróneo conectá-la de imediato com a disforia, pois, o que nela se constitui como afirmativa força propulsora nutre-se, afinal, dos impasses, das aporias, dos desajustes ou das pequenas e grandes alegrias fugazes do relacionamento interpessoal. Além disso Moura Pereira foi apurando o humor, a força paródica.
Mas de facto, como temas dominantes, Moura Pereira fala do eu, do tu, das dissonâncias e falências da comunicação, das “traições” com que a vida aparta amantes e amigos, dos pormenores insignificantes que vão rasgando os afectos, e – esta é a sua força moral – da negociação permanente a que isso nos obriga, mesmo que estejamos absolutamente impreparados para ela e seja tarde: «Já quase não estamos, pó que somos».
Durante anos não percebi nada do que Moura Pereira andava a fazer – havia coisas de que gostava muito e outras que me deixavam desconfiado mas não sabia deslindar os pontos nos is. Uma vez íamos de carro, ele dava-me uma boleia, e, com o meu feitio metediço, inquiria-o sobre a necessidade de publicar tanto.
Eu estava ainda encharcado do que a poesia deve ser e chateava-me que ele me contrariasse tão a miúdo – devia ser isso.
Íamos das Picoas para o Marquês de Pombal e ele explicava-me que para si a poesia era um fluxo e uma presença e que portanto ele não podia alhear-se momentaneamente, nem suspender a viagem para ficar a desenhar um itinerário ideal; e que no percurso tudo o que eventualmente se repetisse seria objecto duma deslocação natural.
E estava neste divagar e não sei se de forma inconsciente ou deliberada demos duas voltas à rotunda do Marquês, antes de desembocarmos na nossa rota. Nunca lhe perguntei se na segunda voltinha ele havia voltado aos carrosséis mas fiquei a matutar naquilo e dei conta que ele ao dobrar o círculo estava a dizer-me o mesmo que serviu a Ingmar Bergman para explicar a repetição da mesma história, numa cena fulcral de A Máscara: a história que se conta nunca é a mesma que é escutada. Moura Pereira trabalha no que fica entre, nas refracções, na procura de emparelhar (como na conversa) os pontos de vista, e paciente, de livro para livro, as suas variações vão sobrepondo a deslocação à repetição, mostrando-nos como mudando de lugar a paisagem também muda. As cem vistas do Monte Fuji, de Hokusai.
Porém, não se julgue que estamos a ouvir música minimal repetitiva, trata-se antes de um affaire de microtonalidades que oferecem tanto mais ao receptor quanto mais expansiva for a sua atenção.
E há uma dimensão que temos de considerar diante desta poesia e que a vem tornando, para mim, um dos lugares cimeiros da poesia portuguesa dos últimos vinte anos: a sua extrema liberdade em relação ao que seja o literário, nas tintas para “a arte” de escrever bem, para os efeitos, o seu arrojo é outro: transmitir com eficácia as ilusões, burlas e inabilidades da comunicação, num preito que projecta a solidão num lugar inabitável se não compensado pelo ethos da partilha.
ii
Mesmo quando o poeta escreve no ponto de cozedura (num poema que, aliás, merecia ser citado na íntegra), i.é num registo tão comovido e final: «As flores. Lembro-me delas
como me lembro da cadela morta, do pai
 morto, da mãe viva, do teu cuidado
em cuidares dela. E o teu dedo
cortado da seiva do cacto, calejado
de tesouras, descobre pequenos vermes
na raiz. Aqui secarão meus ossos. (pág. 24)»,
plasma de forma serena o seu contacto com o pensamento agónico, sendo sublime a materialidade a que se entrega, pelo desprendimento, pela infrangível descida ao cerne.
Este é um lirismo a contrapêlo que, sobrevoando o relato de incidências infelizes do amor, apesar do desgaste ou amarrotamento emocional, assim fecha outro poema,
«É tempo de terminar com os adeuses
escrevo enroscado na minha monotonia»,
porque, antecipa-se nos dois versos imediatamente anteriores:
«Descubro a água na terra, aponto a vara
e nasce em cada ramo uma firme haste».
Ou seja: o sujeito lírico constata que a sua capacidade de amar se sobrepõe inapelavelmente ao rotinado sentimento do luto, mesmo quando o amor não promete qualquer salvação:
«(…) Socorri-me do amor, pedi
que me defendesse, mas o amor
fez orelhas moucas, o mais
que consegui foi que me deitasse
sortes, sortes que disseram
para eu contrariar a dúvida
com outra dúvida maior.».
Falámos atrás de sujeito lírico, que não deve confundir-se com a pessoa do poeta, contudo as constâncias criam um sedimento, estrias, algo que permeia a sua personalidade poética, e no caso do Moura Pereira há um ror de janelas viradas para o golpe do amor, e é sem custo que divisamos nesta “possessão” e nas suas incandescências um dos grandes temas do poeta de Os Tranquilos Sobressaltos.
Outro aspecto interessante associa-se à dúctil performance da identidade poética, ao jogo de transferências (na sua acepção psicanalítica) e desdobramentos processados nesta poesia, onde nada acontece segundo uma linearidade. Quem lê este poeta desde sempre, mas não lhe faz uma visagem diacrónica, pode não detectar para além de uma aparente monotonia uma variedade multiplamente dobrável (o que aliás também acontece com outro poeta de talhe tão dissemelhante de Moura Pereira: António Ramos Rosa). Esta poesia põe as máscaras, despersonaliza-se, docemente ou duma forma abrupta (projectando-se para lá do subjectivo), coloca quantas vezes as palavras a conversarem entre si - o que não apenas electrocuta as certezas sobre quem narra e quem é narrado como funde as referências ao mundo real no jogo da escrita, num verdadeiro feixe de ambivalências, pois, nesta poesia, como diria o Agamben, onde acaba a linguagem, começa, não o indizível, mas a matéria da palavra.
Vejamos o que se enfeixa neste conseguido fecho dum poema:
«Apesar de trivial o momento é um misto
de tristeza e beleza, eu regresso a casa
para ir buscar uma cadeira. Sentar-me-ei
debaixo de uma árvore. Antes, porém,
fico a ver-me fechar as janelas
uma a uma, o que em mim é visto
pensa que ainda não é uma despedida.
O que em mim vê não sabe o que há-de
pensar. É uma criatura sem queda para
a troca de impressões, a palavra coragem
ainda continua a meter-lhe medo e encontra
beleza no gesto de um homem visto
de costas a fechar janelas e portas.» 
A estrofe organiza um travelling de recuo por uma psique fragmentada ou desencadeia uma mise-en-âbime?
Quantas “personagens/figuras/duplicados” se enfeixam/desdobram nesse movimento?  O descritor, aquele que vê no descritor, aquele que é visto, a quarta que a subtil passagem do verbo para a terceira pessoa (precisamente quando o descritor confessa que não sabe o que há-de pensar) introduz, e esta rede de olhares convergem num olhar que os reunifica: o leitor. Mas não estará este, por sua vez a ser observado? E o que é que trespassa todos estes olhares e os liga? Mais do que um sujeito-concatenador, uma energia: uma forma dinâmica de memória.   
iii
Não existe poesia que seja simples. Quanto muito há poesia que ignora os seus processos e a sua tradição e normalmente num caso destes não passa de um espectro nu, nem chega a ser um simulacro.
Bom, a não ser que provenha de um poeta culto e «mestre em ignorâncias» e que já esteja para lá do género, numa dimensão da escritura. É esta, no dizer de Henri Meschonnic que momentaneamente adoptamos: «o que acontece quando alguma coisa é feita na linguagem por um sujeito e que jamais havia sido feito assim até aquele momento – então a escritura participa do desconhecido. Ou seja do ritmo…» É o que se passa com António Ramos Rosa, os brasileiros Manoel de Barros e Vicente Cecim e, ainda que num registo absolutamente diferente e aparentemente antagónico, com Hélder Moura Pereira.
Moura Pereira, consentâneo com a sua geração, chega à publicação do primeiro livro no momento em que há uma inflexão na orbe das influências tutelares em Portugal e o paradigma deixa de ser francês para passar a ser anglo-saxónico, uma deslocação que já vinha de trás (com Rui Cinatti e Jorge de Sena, por exemplo). A poesia deixa de ter a metáfora como acendalha ideal, preferindo o lume mais brando da metonímia, e retorna o discursivo e o narrativo. Isto para sermos muito simples, que isto é um blog e não uma tese académica.
No entanto, desde o princípio, e em nuances que posteriormente se acentuaram, que a poesia de Moura Pereira conheceu a tensão entre a palavra-como-problema ou a palavra como veículo de um referente. O Moura Pereira sempre acreditou no real, contudo, este nunca foi a matéria exterior que nos rodeia, apartada de nós, para abarcar também o modo como a nossa ambivalência de sujeitos submetidos às vagas alterosas da comunicação o traduz. E então, gradualmente, o jogo performativo do verbo foi-se infiltrando na poesia de Moura Pereira, paralelamente ao modo como nela foi emergindo a oralidade e (di-lo Paulo Henriques Britto sobre Elizabeth Bishop) «os aspectos complementares da existência física: o trágico e o ridículo». 
É um desafio com grandes riscos e resultados desnivelados, mas quando acerta e extraordinário. Leiamos este poema:
«       The art of losing isn’t hard to master.
            Elizabeth Bishop
Deparou-se então a velha
e típica folha em branco. Eu era
como aquelas pessoas que acham
que as doenças más só acontecem
aos outros. Aproveitei a folha
em branco para sugerir em que
se tinha tornado a minha vida.
Mais vulgar não pode haver,
e ao mesmo tempo que sussurrava
para mim próprio a toda a hora
constatação tão evidente, também
via na folha um encanto
irresistível, assim como um fim
a atingir, uma espécie de corpo
que viesse do nada que é isto
tudo, um adormecimento
de olhos abertos, o espanto
pacífico de não compreender
realmente nada. Guarda
as tuas coisas mais valiosas, ainda
tas roubo para ir vendê-las, mal,
claro, porque não sei negociar
coisas valiosas. Além do mais,
a folha branca está escrita, alguém
lá colocou frases dispersas,
a água e limão. Quando lhe bate
a luz do dia, estamos quase
em Junho, toda a gente sabe
do que estou a falar, revela-se
tudo, tudo, menos a assinatura.» (pág. 64)
O poema eclode numa espécie de paráfrase à epígrafe de Bishop que, por sua vez, funciona como o seu primeiro comentário.
De facto, a gratuidade da poesia só é aceitável como perda, como doença má: uma folha branca que se drena. E drena o quê? A vulgaridade da vida, no impulso de lhe restituir um sentido arrancado à derrocada dos cenários. Na vã miragem de descortinar «uma espécie de corpo/ que viesse do nada que é isto tudo». Este último verso, uma reminiscência dum célebre verso de Pessoa, na Mensagem, alude a esse dispositivo compulsório que emaranha o sonho no seu modo operatório, o mito no nada que o segrega.
Daí que o poema, brincalhão, nos reporte, malgré tout, no final, ao mito da inspiração –– pois, contra todo o cepticismo ou discursos desconstrutores, a prática do poema engrena no poeta um fluxo que o engolfa numa espécie de inteligência-não-circunscrita que desde os românticos recebeu essa designação equívoca. Donde chega aquela lufada? É apenas concomitante? Ou quem a assinou, a água e limão? E o que fica se, mesmo com o enigma da assinatura por resolver, verificamos que não passa de água e limão?
Algo fica («de tudo fica um resto», dizia o Drummond), como se lê noutro poema:
«Romper com tudo, mas deixar
uns fios soltos, com esses fios fazer
uma teia, armar uma rede, pôr-se
aos saltos numa rede, como um miúdo.» (pág. 82)
Atrás falei em fluxo e não por acaso. Será no poema seguinte – um dos nucleares deste livro – que se fará a crónica do “descalabro” que faltava ao anterior e se falará da corrente de que o poeta é apenas um elo. Leia-se o poema:
«Dobrado sobre o computador, com a cabeça
entre as mãos, como dobrado antes
sobre  máquina de escrever, com a cabeça
entre as mãos. Pôr isto numa moldura,
pintar isto, apanhar de toda uma vida
uma fixação neutra, um corpo, não
se lhe vêem os olhos, nem é preciso, animal
que fala nos seus dons de pressentimento
mortal, doido. Agitado, borrando-se
de medo, como se alguém o fosse degolar,
a cabeça à volta, cheia de um êxtase
modesto e popular, pobre velhinho,
magrinho, triste pau entesado. São coisas
transportadas em ilusão (espuma há,
a sair da boca?), canções batidas com ferros,
boa companhia o colchão dorido, manchado
de nicotina e esperma, outro mundo verias
nas estrelas, nos vermes, nas veias
a rebentar em sono solto. Se alguém
compreendesse e assobiasse para o lado,
deixando aquele homem à deriva, aquela
cara, ali enterrada nas teclas de um computador,
adquiria de repente uma beleza extraordinária.»(pág.65)
Logo desde o primeiro verso, erige-se o poema (auto-)reflexivo como uma homenagem (a Herberto Helder, autor de A Cabeça Entre as Mãos), e simultaneamente como um retrato dos efeitos da ilusão que lacera o corpo do poeta sob consentimento. Porque a poesia é um consentimento mútuo mas que só o poeta paga.
À promessa do Pneuma órfico, Moura Pereira, humano, demasiado humano e vincado pela ironia de também de chamar Helder justapõe uma simetria negativa, e, paralelamente à encantação, ao enredamento mágico de Herberto, lembra a aporia, o cansaço, a gangrena.
Não o faz no gesto de se situar contra, desenganem-se, a sua voz está afirmadíssima e o poeta não precisa de se entregar à desminagem, mas no movimento de se posicionar dialecticamente com a equidistância que nasce da maturidade, simplesmente porque Moura Pereira terá intuído que o seu já não é o tempo duma formulação mais romântica e heróica, mas antes o duma arte relacional, que aproxima e não exclui.
Corolariamente, Moura Pereira desentroniza em si o mito alheio para seguir a sua narrativa, o seu ritmo, pois em todos há um momento para afirmar “Eu não sigo o exemplo dos mais antigos: busco o mesmo que buscavam”. O que pressupõe a autonomia de uma resposta (ou de uma pergunta) com uma janela diferente.
Contudo, com a vivacidade de quem integra os opostos e não os teme, este diálogo de um homem a sós com a alhada em que se meteu - o tremendo inconveniente de ter nascido poeta e o render dos seus mitos – cede num poema seguinte ao sortilégio do que “denuncia”:
Começou a caminhar na direcção
do nada, o nada ficava sempre a direito
e por isso não havia que enganar.
(…)
Agora pára, de repente pára, nós
nunca saberemos se viu no fundo
da linha de luz a morte ou se
sentiu um hipotético recomeço. (pág.69)
No fundo, Moura Pereira Moura Pereira sente-se como aquele famoso peixe que, tendo ouvido falar da água, tinha decidido num grande impulso místico consagrar a sua vida a procurá-la.
A diferença é que é um peixe consciente da ilusão e ciente de, que apesar de tudo (sendo as coisas o que são), não há outro caminho: a insondável senda que a poesia abre na floresta do tangível.