A trilobite, o camaleão e o tubarão-martelo. Que trio. Nenhum deles povoa o imaginário infantil. Para os ronga o camaleão simboliza o infinito. Claramente por se dissimular e poder estar em todo o lado de modo invisível (a ubiquidade de Deus) e por causa da particularidade que os liga: vêem em 360%. De novo como Deus.
Arrepia pensar que a trilobite partilha uma qualidade de Deus. Não deve ser coisa boa, a avaliar pelo acossamento em que navega o tubarão-martelo. Quem olha em 360% sentir-se-à olhado em 360%? Dizia Lacan que a paranóia eclodia da impressão de ser olhado por todos os lados. Precisamos do nosso canto, recôndito, privado, de recuperar dos olhares do mundo num refúgio oculto, onde por instantes possamos ser Robinson Crusoé numa ilha, a gozar o pleno da sua solidão. Intermitentemente: desconectar.
E sempre atribuí o humano a essa possibilidade de não ver. Só quem anseia o controle deseja ver tudo, quem anseia pela liberdade aceita, como afirmou Blanchot, que todos os dias há uma coisa para não ver. Desse lugar à sombra há-de manifestar-se o inesperado, um doping vital.
A confiança, para mim, sempre esteve associada à vulnerabilidade de dar as costas. Como escrevi num monólogo dramático, O estoiro das mangas na chapa, a fala de um sem-abrigo, e de que transcrevo um trecho:
«Um dia, estava eu roto de fome,
como a pedra a quem já nem percevejo visita,
e roubei um livro, numa banca de rua,
que se chamava O Banquete. O autor tinha nome
de segurança: Platão. É com certeza um fuinha
de plantão, pensei, movido
pela evidência da miséria. Adiante,
eu queria era vender o livro
e comprar uma lata de sardinhas.
Abro-o no caminho, só para espantar o cansaço
de andar sem sequer a sombra de um caju no bucho
e calha-me ler a ementa do banquete.
Adiante, podia ser que comendo pela vista
também arrotasse pela vista.
Pelo menos na igreja estão sempre
a comparar a Palavra de Cristo à carne do mundo.
Li-o duma assentada… ganda pedra,
ainda que naquela altura o trocasse à primeira
por duas badjias ou um cachorro.
Cinco gajos à mesa, como os dedos numa mão,
põem-se a discutir sobre o amor.
Só que cinco dedos já se sabe o que decidem
fazer quando se põem a pensar no amor.
Aqueles não, era malta indecisa e tinham medo
de virar a mesa para dar azo ao apetite.
E às tantas conta um deles que os homens,
dantes, tinham 4 pernas e 4 braços
e os 2 sexos e andavam sobre os 4 braços
como se passassem a vida
a fazer a roda. Mas os homens puseram-se
em guerra com os deuses e Zeus,
que era lá o reizinho entre eles,
veio à terra e com um cabelo cortou
os homens ao meio, como se faz aos peixes.
Ficaram de um lado 2 pernas e 2 braços
e o pirilau e do outro o mesmo mais a xaxa.
E desde então, dizia o doido que estava a discursar,
cada um de nós procura o seu duplo pra acasalar.
É um céu à procura duma montanha,
um selo à procura do seu envelope,
da alma gémea… O tanas! Comigo
não dá, já deitei fora várias metades de mim
que não condiziam nada com as venetas que me dão,
mas o que tirei da história é que as costas
nasceram depois de nós. Depois de nós.
Eu adoro costas, vê-las pelas costas,
virar as costas, pôr-me de costas voltadas.
A gente diz, Não, Não, e tau,
no instante seguinte cedemos e estamos no Sim,
pelamo-nos para estar de pernas abertas para o Sim.
Mas quando viramos as costas, aí
não é palheta, é definitivo. As costas
é o que há de mais vivo em nós.
Quando conhecemos alguém devíamos perguntar,
Eh, quantas costas voltaste tu, na vida? Três?
Três?! Isso é canalha que não confia em ninguém,
nem em si mesmo. Lembrem-se do toureiro,
mata no único momento em que não vê os olhos
da besta e por isso não sabe se naquele momento
o bicho tem na ideia estripá-lo com os cornos.
O toureiro mata no momento em que pode morrer
e isso não é só o mais bonito como o mais justo.
Ao virarmos as costas é como se estendêssemos a face
para uma bofetada ou pronunciássemos respeitosamente,
em silêncio, a nossa aversão. Só fica mal visto
quem reage a quente e então quem mata pelas costas
é o mais indigno. Nós não, demos as costas
como homens de valor. Por isso: quantas vezes
voltaste as costas na tua vida, é disso que se trata.
Ter as almôndegas necessárias para nos expormos
ao perigo - eis o que encarece o respeito e o torna inteiro.
Entendem? Eu preciso de não ver para confiar.
Se eu visse tudo, brrr…até me dá um arrepio!
Se não houvesse coisas escondidas para mim
saberia lá que fazer com isso! Não ver tudo
ao mesmo tempo ensina-me a dar mais importância
ao que vejo agora, o dedo dela a encaixar a mecha
de cabelo atrás da orelha, a esticar um caracol,
estão dez mulheres à minha volta mas só uma
ao mexer no cabelo daquela maneira
me agita e só nesse gesto isolado percebo
que achei quem queria; sem esse gesto
ela não existiria fora do grupo. O livre
arbítrio é dar as costas, e nem vejo como
nem porquê há-de Deus procurar
em cada alma obediente a sua alma gémea,
quem o complete, como se fosse uma gata
borralheira desesperada por achar um sapatinho
onde lhe caiba o pé.»
Expor as costas é para mim o passo para o dimensionamento ético, um primeiro princípio de hospitalidade. Algo que a tribolite não conceberá com a sua vigilância perpétua.
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