quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

COMO SAIR DO ALGUIDAR?

CARLO CARRÀ

Giorgio Agamben transcreve este belo e breve poema de Sandro Penna:
Vou a caminho do rio num cavalo
Que quando eu penso um pouco logo estaca
que associo àquela história zen da centopeia (a maria-café moçambicana) que paralisa no mesmo instante em que se põe a matutar na resposta a dar à criança que lhe perguntou, “eh pá, gente maluca, qual é a perna que mexes primeiro?”;
história que por sua vez me reporta a uma das frases-bordão de minha mãe que, dos meus 5 anos aos 20 e muitos, me repetia com uma regularidade exasperante, “não se pode, meu filho, fazer duas coisas ao mesmo Tempo”
– o que talvez signifique que, como defende a filosofia perene, haja uma sabedoria que nunca se suspende e se articula como uma espécie de ADN que só aguarda por uma oportunidade para aflorar…
Mas conto isto porque no mesmo texto do Agamben – Ideia da Cesura, do livro Ideia da Prosa, Cotovia – surge outro apontamento que me leva a um encaixe inesperado.
Refere o filósofo italiano: “(n)o Apocalipse 19.11, onde se descreve o logos como um cavaleiro fiel e feraz que monta um cavalo branco”. 
O que me atira para o expansivo e delirante reino das coincidências: a que existe entre o cavaleiro branco dos Evangelhos e a imagem com que a Ana Ulisses quis retratar o tio no comentário que fez ao texto que escrevi sobe a morte de João Ulisses, no postal que pus há uns dias.
Escreveu ela, julgo que para simbolizar como o verbo do tio lhe preencheu a infância e a fez acreditar em intangíveis nesta vida:
«Era um cavalo branco a galopar. Obrigado pelo gesto…»;
e toma-me o assombro porque tenho a certeza de que a artista plástica Ana Ulisses não anda com o Apocalipse na mochila.
Somos mesmo dominados por um acervo de imagens-matrizes e padrões  - como queriam o Jung e o Northrop Frye – que regem as nossas condições de possibilidade, isto é, de liberdade criativa?
Como sair do alguidar?

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

TÀPIES: A SECRETA VIDA INAPARENTE


O que áfono repetia naquela tarde debaixo dos ulmeiros, só a pedra onde se sentou, quebrado pelos rins, reteve.

Exortação, lamúria, maldição – quem sabe. Só na pedra se inculcou o conforme peso do rogo, que dor ou lapso nele o vento desarmou.

E a pedra obstina-se, silente.

Talvez o lodo se pronuncie quando a chuva lhe empapa as sílabas roídas pelo ror do medo, encarniçado o trovão.

O que áfono, fora de si, em círculos, naquele chiqueiro arvorado, repetia, nenhum clamor resgatou de sob o musgo seco.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

COTÃO NO UMBIGO DE ZEUS

meu deus, como sou feinha!


As cigarras não se calam, é um coro que extenua o mais pintado. Que goelas são estas que valem por um vitral?

Estou sentado na esplanada duma das avenidas de maior tráfego de Maputo, e sobrepõe-se este canto ao dos carros, engoma-lhe os colarinhos. A péssima canção que os ecrãs de plasma emitem, sobre as cabeças, é também cilindrada pela ladainha dos insectos, tão antiga como os extintos dinossauros.

Se eu quisesse enlouquecer deus enfiava-lhe à nascença uma cigarra no ouvido até os tímpanos vomitarem aquelas sílabas de bronze.

Um dos mitos gregos mais terríveis – enfim cada um tem o estômago que pode – é o de Titono, o marido de Aurora, que pediu a Zeus que lhe desse a imortalidade. Mas esqueceu-se de pedir também a eterna juventude. Assim Titono foi envelhecendo até que o encarquilhamento do corpinho se lhe tornou insuportável. Aí, por compaixão, a Aurora transformou-o numa cigarra.

O desfraldar da cigarra equivale então a uma estrela negra onde se concentram a massa, as vivências, espectativas e desilusões, do imprudente Titono. Cotão no umbigo de Zeus.

Ou não teria umbigo, Zeus?
As cigarras não respondem e acabo por comprar uma cautela.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

A DUPLA FACE DO ESCRITOR

janus, o meu carro de sonho, entrava por uma porta e saía por outra automaticamente, o que no meu entender até dispensa o trajecto


É flagrante o contraste entre a forma como me veem os outros e me veem em casa, onde sou duplamente catarrento e raramente desmancho a catadura. As minhas filhas sabem que “quando quero” sou animado e bem-disposto e isso traduz-se em ansiedade e torna mais inexplicável o meu resmoneio, a minha “distância”. E sou acusado de egoísmo – eu que por amor abandonei posições bem mais vantajosas – e de indiferença. No fundo, todos temos razão. Que sentido faria ter abandonado tudo, se a isso não se seguisse uma devoção obsessiva à escrita (o perímetro da minha estulta vocação) e, por outro lado, como manter os fluidos domésticos amenos sem um mínimo de dedicação? Equilíbrio instável.
O que me liga à Teresa, sem muito custo (não sendo embora isento de discussões), para além do óbvio das filhas e das afinidades, foi ela ter aceitado implicitamente que vivemos em adultério e que a minha “legítima” é o isolamento que penhoro na escrita. Houve uma altura em que a isso se somava o alcoolismo, fantasma dominado.
Mas a escrita exige esta dimensão da exclusividade, nada saudável, e não admite rival, ou só a espaços quando, por cansaço, nos alheamos mutuamente. Não tem nada de humano o desapego a que nos confina – é o contrário das tretas que ensino em Comunicação Interpessoal, ó meu querido Bateson perdoa-me lá – e lamento reconhecer que troco um contacto humano de terceiro grau pela escrita de um conto que me satisfaça ( - embora se dissesse o contrário também seria verdadeiro).
Se a disciplina da escrita me trouxe um aparente apaziguamento dos instintos – sou fiel ao “amor único” – é porque na verdade apenas sublimo (e constato como o D.H. Lawrence que está por estudar a força da sublimação), não há em mim o menor acatamento dos meus “penchements” selváticos, aprendi apenas a dizer não e a regatear o tempo, sendo certo que se fosse católico estaria frito por pecados de pensamento e omissão.
Na verdade estou, pelo meu lado, absolutamente encurralado pelo egoísmo da escrita que me acua e trepana e devora a pouca inteligência às colheradas, como faz Hannibal aos seus incautos. Se houver um escritor que diga que se quisesse dispensava esta crueldade é porque ainda não é um adicto, e vive em pura bazófia como um artesão de best-sellers que está carimbado da medula às sinapses pelas fórmulas.
Há um bocadinho de forçado (de balela romântica) na afirmação de Aragon de que nunca terá escrito uma história de que conhecesse o desenvolvimento e que terá sido sempre, ao escrever, como um leitor que faz o conhecimento de uma paisagem ou dos personagens (o seu carácter, biografia, e destino) à medida que os lê. Mas digamos que a coisa se fica pela metade e que o mais importante está de facto no que desconhecíamos antes de ter acontecido a escrita.  
Esta ignorância é como uma lapa que simbioticamente se confunde com a pele, que faz desejar a insegurança de um pensamento em estado nascente.
Quem conviveu comigo nos jornais durante vinte anos sabe que eu nunca estive “integrado”, sempre um bocado à margem, o que me tornava suspeito, pois quem é que este gajo se julga, pensavam. Nunca me julguei assado ou cozido, sentia-me apenas em liberdade condicional e um tipo entre comas porta-se de outra maneira e não dá muita importância ao que está a fazer. Por isso seria incapaz de fazer como tantos jornalistas que reúnem os artiguelhos e as suas suspicazes opiniões em livro. E bons artigos fiz. Mas as opiniões para mim pouco contam. Há antes algo de que padeço, está para além da minha inteligência ou do aparato, e o que faço agora é unicamente um meio, uma travessia.
O melhor está para vir, nas costas fica o rasto dos meus fracassos. A todos os poemas que publiquei até hoje carece o ímpeto do arpão do capitão Ahab.
Porque o escritor almeja, como lembrava o Proust, embora isso esteja esquecido, inventar dentro da língua uma língua nova, e para que tal enxurrada suceda não são permitidas folgas. Enfim, mais ao menos. Na verdade, só se entra no “paraíso” pela porta dos fundos, tirem o cavalinho da chuva os que ambicionam lá penetrar pelo portão da frente – só a quem se distrai do seu propósito lhe acontece penetrar. Permitir esta distração é o que visam as correntes alternas da vigília. Afinal (como no amor) só lá penetra quem já é transparente.
A muitos títulos preferia viver em Paris do que em Maputo (uma absoluto erro de cálculo quando decidimos partir), mas a vantagem de estar em Maputo é que somos irrecuperavelmente o outro e ficamos extensivamente sujeitos à pressão do olhar “nativo” – como irredimíveis estrangeiros. Esta condição mantém no ponto uma tensão que nos situa e não autoriza que alguma vez sejam amorfos os lugares. Ficamos então adequadamente desconfortáveis, gerando-se um clima propício à criação.
É claríssimo para mim que o meu isolamento em Maputo me fez crescer como escritor, que o meu anonimato me desencadeou uma energia nova, que a distância me recuperou o humor e o pleno sentido das proporções (ainda que a distância na comunicação gere tantos equívocos e provoque silêncios e mal-entendidos, por exemplo: quem não me conhece como pessoa e não vê os meus gestos, o meu sorriso, toma às vezes por literal o que é irónico, pura paródia, e confunde o que diz o meu personagem momentâneo comigo) e que mesmo em termos humanos – apesar do que digo atrás – ganhei um lastro que não tinha. No fundo, saí da esfera da literatice para a do vivido.
O que visto de fora me parece acrescentar uma pele áspera e insensível, como a do Rinoceronte de Ionesco. Sócios iméritos da vida.
Bom, há duas horas que me mantenho na esplanada, garatujando e lendo, enquanto a Teresa se ocupa das crianças na piscina. Há que ir substitui-la durante um pedaço, dar umas braçadas com as miúdas, ver como a Jade simula o mecanismo das ondas com o chouriço ou sonhar que um dia ouvirei a Luna tocar violino debaixo de água, rirmos com algumas partidas durante cinco minutos, até que o chapão de uma bóer na água me lembre uma freira a mergulhar num charco de rãs e isso me arranque ao recinto para ir anotar num caderno encardido e já de língua de fora mais um cabotino canteiro de flores.     
  


sábado, 25 de fevereiro de 2012

4x1: O ABYSMO DAS CARREIRAS DO AMOR


Dedico estas traduções, minhas, ao João Paulo Cotrim que foi agraciado (é assim que se diz, não é?) com um Prémio Revelação para a Abysmo. Como ele no fundo é um santo devassado pelas hóstias feitas com farinha alucinógenica que invadiram o Brasil, aqui lhe administro o veneno:

FAZER, DESPERTAR

Aí, quem
te respira
às cinco da manhã, na luz mortiça?
Verão.
Farejo-te,     quentes
os lugares onde os nossos corpos se tocam, soa
uma suave  melodia nos teus pulmões,
não há palavras, a minha cabeça
                 e ombros movem-se na madrugada absorvem
                               os diferentes ângulos de uma carne e de um
rosto adormecidos
onde o ar se enovela,
junto a mim.
Inspiro, cola-se
a mim
o teu cheiro
na bruxuleante amarelecida luz, obtenho 
diversos ângulos do teu rosto, dos teus seios, as
tuas ancas encaixam-se sob o liso doce ventre, um
rosto diferente de cada vez
que me mexo, perspectiva das ancas, um seio

arredonda-se. Em Guadalajara, a 55
quilómetros de Madrid
                         gritam-no todos os placardes,
soerguo-me sobre um cotovelo, repouso
enfim a minha cabeça entre as tuas pernas,
tomo o teu gosto, a
única coisa
que resta.                                                                              

Paul Blackburn

COSMOGONIA

Desdobrava ligeiramente a coxa
encaixando-a entre as pernas,
e por cima colocava
a sua perna esquerda, pelo exterior
da minha coxa direita.

Joan Brossa

NO AR QUENTE DE ABRIL


Nus no ar quente de Abril,
estendidos sob os pinheiros
na ensolarada reentrância de uma falésia.
Tu ajoelhas-te sobre mim e noto
pequenas incisões vermelhas nas tuas espáduas,
como mordeduras, no sítio
onde as pinhas calcavam a carne.
Encontramos as mesmas marcas,
turvando as linhas dos estratos, na falésia,
por cima das nossas cabeças. Sequoia
Langdorfii antes do período glacial,
e sempervirens nos nossos dias,
entre elas a diferença é mínima
comparada com o desfilar dos anos.

Aqui, no doce e moribundo odor
das flores primaveris, rejeitados,
dois destroços em comunhão -
os nossos corpos frescos e nus
que a sombra desta árvore uniu.
Pelo espaço de um instante,
escapámos à rudeza do amor,
do amor perdido, do amor
traído. E o que poderia ter sido
e o que era, afeiçoaram as suas linhas
àquilo que é – para unicamente
deixar estes ideogramas
impressos sobre os imortais
hidrocarbonatos de carne e de pedra.

Kenneth Rexroth

O SONO VENCEU-A POR UNS MINUTOS


Quem seria por Deus quem era
aquele homem meio abstraído
que olhava a lua cúmplice
o copo sempre atestado
um cigarro caído entre os lábios
e nu como o demónio?
O sono venceu-a por uns minutos
mas ele não se moveu. Observa
o amante, o conhecido de poucas horas,
se bem que ele sim parecia sabê-la de cor
apesar de se terem acabado de encontrar.
Olha o relógio. Pensa na sua casa:
na quietude que a mantém
enquanto ela... patetices!
Com assombro constata agora
que não sente pena ou sobressalto.
Levanta-se para beber:
ele vai ouvi-la e virá ao seu lado
para voltar a estremecê-la.

Juan Agustin Goytisolo



ALGUNS POEMAS COM FIGURAS

david hockney: banhada
Em 2010, depois de ter visto duas provas de um livro, Bar La Fontaine, que seria editado pela Cosmorama, desloquei-me em Julho a Lisboa, entre outras coisas para o lançamento do livro e acabei por saber, por insistência minha, já em Lisboa, que o livro afinal não seria editado por insolvência da editora.

Foi triste, sobretudo, por ter sido tudo feito pela calada, pela omissão, sem a hombridade de uma conversa entre adultos, e eu ter feito uma viagem de 10 000 km absolutamente iludido.

Era um livro com 150 páginas e ficou irremediavelmente encalhado. Partes do livro seriam distribuídas pelo livro seguinte, Não se Emenda, a Chuva, e por um inédito, que em princípio sairá este ano. Mas uma série de poemas ficarão à deriva, sem chão. Como estes poemas com figuras:     



O CÉREBRO DE LENINE: O MAPA DAS ILUSÕES 


Somos ainda o resto de um mundo antigo, um dedo de criança

                     deixado para trás na fresta da porta.

No ano de 1927, namoriscava o meu avô

       – futuro falangista da Legião Estrangeira – uma flausina

empertigada que se furtava ao adestramento manual

nas matinés do Lethes em Faro,

               inaugurou-se em Berlim uma exposição sobre Lenine.

E aí se mostrava, em lâminas sabiamente documentadas,

o cérebro do político. Imensas ampliações

             fotográficas reproduziam as diferentes camadas do cérebro

e pela 8ªou 9ª camada, a marca do génio era anotada a vermelho.

Vivia-se claramente um momento em que o entusiasmo,

            mesmo estando a perder por sete a zero, comia a relva.

No século em que nasci, ainda um dedo de criança

latejava na abóbada estrelada, algures para Órion.




DA AMAZÓNIA 

1

«Eis os pássaros arremessados ao peito de Deus,   
                      cravados na sua aorta»: o último verso
não escrito por Mário Faustino, poeta de Belém do Pará,
sinistrado por desastre de avião, no único voo
que lhe foi impossível evitar
                desde que sonhara, anos antes,
que faleceria em desastre aéreo.

Há intuições tramadas, piores
                 que poemas concebidos sem pecado.
Há-de Deus ter olhos para quê?  


2 

Eis um rio que se intervala, a árvore.
                                  Julgava eu.

Na Amazónia é tudo um,
               ou a batida é em microtons:
verde e esmeralda.
Tudo o que aquele índio emudecido
na banqueta desejaria explicar ao cassetete
                da força de intervenção que lhe invadiu
o peito, a aldeia, a mando dos garimpeiros.

Eis um céu que se intervala:
            não são nuvens mas a ignomínia.
O deserto carece de sentido, basta-lhe não ser.



 O QUEIJO DE THOMAS MERTON 


Thomas Merton, trapista, foi dispensado

na inspecção militar por não ter os dentes suficientes,

o que o safou de dar com as fuças no Mar do Norte,

                   como o seu irmão Jean-Paul.

Mas Merton, a quem não faltavam os incisivos,

e era o tremendo de um «sensacionista místico»

                  (diria Paulo Leminsky),

levou um dia aos seus amigos um queijo do mosteiro.

Estes, sornas, maldizentes, chamaram o maitre-d’hotel

e mostraram-lhe o «queijo do monge».

O maitre, homem de improviso,

julgando-se picado por uma piada

de que não estava a ver o alcance,

                   carregou o sobrolho

e examinou detidamente o lacticínio.

O lance seguinte foi de sorriso rasgado,

pisando as sílabas: «Ah, eis-me

finalmente ciente de que um monge

                   é como uma cabra!».

O maitre-d´hotel tinha razão:

um trapista é intransigente como uma cabra

porque quando mastiga a erva não fala,

e se rumina não fala, e se dorme não fala,

e quando urina flúi, e quando contempla

                    fica lento como a lesma,

e se reza não faz sala, e quando côa

o soro do coalho no leite fermentado,

                     não raciocina, e,

havendo um grilo a tocar violino

                  no claustro, escuta e frui.

Os seus amigos riram de si próprios

rindo do cozinheiro – sem compreenderem

que o monge é tão verde como a cabra

e como ela não quebra os fluxos da erva,

da água, o mosteiro de silêncio

com que o vento

                   perdoa os lapsos do pastor. 






NÃO SE EMENDA A CHUVA 



«Reaprender tudo com a dor

que chameja nas costas,

acordar para a claridade

e encaixar: só em mim

não houve restauro…»,

calcetei, eu sílaba a sílaba,

numa derradeira página

de uma antologia de Gabriel

Ferrater, catalão nascido

ainda em liberdade, num «ro-

dado enredo de entrepierna»,



mas que depois do franquismo

escolheu não ficar entre línguas,

e lavrou com acinte na língua

de Salvador Espriu poemas

que conversam como os musgosos

molhes e dispensam o estilo

«porque não se emenda a chuva»

(- embora nas bebedeiras,

amiúde, se escudasse na farsa,

isto antes de quebrar as gafas).



Gabriel, que tinha uma erudição

aracnídea e aprendeu polaco

para ler Gombrowicz, não chegou

a conhecer a democracia

porque («lo diré del revés»)

arrancou a sua pedra angular ao Fado

(«Olha a torre: como se inclina»),

asfixiando-se com um saco

de plástico. Isto, uns mesitos

antes de fazer cinquenta,

oxidação que não aceitava para si.



Releio-o enviesadamente (as-

simetrias do álcool) na noite

em que perfaço meio século,

e sublinho de urgência:

«Consternado, um caracol a meio

de um muro seco». E de repente

paro… julgo ouvir a sua voz rouca

de ressaca.  Pigarreio. Já não temo,

o tipo que ouve vozes não está

doido: trabalha com outro tipo

de hipóteses. Beberico e retomo

a leitura de um poema

sobre a caducidade, intitulado

As Moscas de Outubro.




TEATRO E ZOOLOGIA 



Graciosos unicórnios, nos semáforos de Nova Iorque?

Desde que aquela fera da Broadway quis encenar O Rinoceronte.

Uma alvorada de cotovias cadenciou a chamada intercontinental.

Ionesco, o dos Cárpatos, tartamudeou a tudo que sim:

«oh yes… oui…oui…je comprend… yes…j’accepte!»



Mês e meio depois, voltou o romeno a erguer o auscultador.

O americano estava interdito. ‘Desembuche, homem!’,

encorajou o dramaturgo, a pulsos com o terceiro vin rouge. 

A eminência parda detectara uma metástase sombria

entre o segundo e o terceiro acto. Mas um ‘negro’,

sossegava, desatara o nó. Que foi que acrescentaram,

trovejou o autor de A Cantora Careca.



Lembra-se, Béranger vai a casa do amigo averiguar

o seu silêncio… (pausa) pusemo-lo ao telefone,

a tentar avisá-lo da visita. Ionesco,

(a vida é quando não é sentida na pessoa de outro,

explicou mais tarde) teve uma quebra de tensão.



À fera da Broadway não metia espécie a insânia.

Mudava a sua mãe em rinoceronte? Ça va!

As coxas da amada sabiam a corato?

É a ordem das coisas. O luminotécnico,

ao terceiro dia de ensaios, exibia um corno

a meio da fronte? Não era esse o tema da peça:

‘faça-você-mesmo, mostre o rinoceronte que há em si!’?

Minudências que armavam a congruência da fábula

ou, quando muito (se, afinal, até o Messian

se converteu à passarinhagem), elucidavam

a aparatosa tropelia com que o tempo maneja os cordéis.



Inadmissível, isso sim, um homem bater à porta

dum amigo sem avisar. Não há modo de escamotear,

pensou o romeno com os seus botões (e ao refugiar-se

em casa de seus botões, Ionesco entronizava a solidão

das personagens), a inteligência vive no buraco de golfe

onde o coelho parte o ilíaco e o homem é o único costume

alheio a si mesmo. Olhou-se ao espelho, sobre

a mesinha do telefone: estava um caco,

seria patético insistir na porta lúbrica

duma ou outra palavra ainda virgem.



Não é mau, este rouge da Sardenha,

sublinhou, estalando na língua um certo travo

a derrota. Serviu-se de um penalty

e esperou que uma plateia de tartarugas ovacionasse.




DA POESIA  



1 

Fora acusado de plágio

      pelas sombras chinesas.

                  Nunca mais foi o mesmo.

Uma vez contou: ‘Num sonho, sobrevoo Veneza

de helicóptero com Mastroianni a meu lado,

         que comenta, É uma bela cidade sem pés,

de varandas pelos joelhos!’,

para rematar: ‘achas que devo contar

               este sonho como meu?’

Repliquei: ‘Como neva!

Olha, não me levaram os deuses cedo

e já só o branco me embriaga.

Partilho contigo a decepção,

                 ou aceito como só meu

o pólen derramado no chão?’





2 (morte do jovem poeta) 



Observa: estão tapadas as linhas de passe.

No futebol e na poesia a mais pequena estaca

está pela hora da morte. Isto



não enredaria em varejeiras o jovem

literato se a letra tumefacta do seu corpo

não esbarrasse na seca exasperação do dela.



O melindre é este: o alcance do poema

é curto e resvala nos olhos do leitor que, 

embora de comum magnifique as estátuas,



nem sempre lhe cede as pupilas. Pior,

se inabordável parece ao intérprete,

ou duma polpa amassada que há sete gerações



ninguém empolga.‘Compreende as pessoas,

mas não os sonhos!’, lastimou o suicida,

que ao almoço papava Frank O´Hara



e se imaginava um desvelado lavador de janelas

em Nova Iorque. No velório, resignada,

comentava a mãe: ‘Ia ser um adulto



tão indeciso!’. Venha o diabo

ao horto e espalhe o adubo - ele

que escolha as linhas de passe!




O QUE DESIGNA UM ICEBERG


Por vontade própria e alheia tem andado o Raposas ancorado. Retomemos a navegação:

Como sempre, na primeira aula, bato na tecla duma necessidade de mergulhar na escuta, de um despertar na palavra, e reforço a necessidade de nos aventurarmos no dicionário como num safari de luxuriantes colibris. Pelo menos cinco ou seis vezes ao dia, acentuo, mentindo com o meu exemplo, que se não descubro cinco palavrinhas novas por dia me sinto um abajur depreciado pela virilidade da sua pera, etc., etc. E insisto que me interrompam, caso nas minhas deambulações ocorra alguma palavra que eles desconheçam. Não se inibam, não se inibam… E entrego-me ao fluxo, desopiladamente, alternando a gaguez com blocos de alguma fluidez e duma impensada pertinência, desemperrando a língua… e uma aluna levanta o dedo. Diz, convido, e ela pergunta, dr., O que quer dizer iceberg, O que designa um iceberg, repisa, num orgulhoso assomo de erudição. O que designa um iceberg, ecoa no meu crânio, ao ralenti. Não sei o que é, conclui. Não viste o Titanic, pergunto, angustiado. Ela não se deixa esmorecer, Vi até metade. Viu precisamente até ao momento em que aparece o iceberg, o que é o mesmo que não ter visto. Sinto uma gota de suor frio a sulcar-me as fontes. Ressalvo, é natural que desconheças o que seja um iceberg, és uma rapariga dos trópicos. Mas por dentro estou gelado com o esforço de não deixar transparecer que talvez não seja admissível no século XXI que um estudante universitário, em qualquer parte do globo, não saiba o que é um iceberg.

Lembro-me de um choque semelhante em Quelimane quando um aluno, que teve de ler uma palestra de Merleau-Ponty, me trouxe uma lista de palavras-mistério para eu lhe desvendar, havendo, no meio de alguns conceitos, um aguaceiro de palavras corriqueiras, que culminava num cirro cinzento e pesado, a única palavra que ele se havia esquecido de apontar e que agora pronunciava de viva voz: professor, o que é “espontaneidade”? O mesmo aluno que, num jantar de convívio que tivemos depois, já alegrete com um copito, me falava do mar vertical, metáfora que eu aproveitei para definir a poesia.

Mas a mais mortal talvez tenha ocorrido seis ou sete meses depois de ter chegado a Maputo. Fui apresentar um livro de contos de Albino Muianga, e conto uma história com o Picasso.

Um soldadito vem de fim-de-semana a casa e passa por uma galeria onde se inaugurava uma exposição do basco. E fica logo de cabelos em pé com as mulheres do quadro que está exposto na montra, com os rostos de frente e de perfil ao mesmo tempo.  E resolve ir dar uma lição ao pintor. Entra abruptamente pela galeria, acotovelando à esquerda e direita, e pergunta estentóreo, onde está o bardamerda do pintor? O Picasso acolhe-o sorridente, com a sua boina basca e uma taça de vinho. Escuta o arrazoado do soldado sobre os distorcidos corpos daquelas mulheres e a sua falta de realismo e então pergunta brandamente: O amigo tem namorada? A pergunta desconcerta o soldado, que anui, tenho. E tem uma fotografia consigo, pede o pintor, amavelmente, num tom que não admite recuo. Tenho aqui, e o soldado tira a carteira do bolso, abre-a e mostra a fotografia da namorada, que passa imediatamente para as mãos atentas do pintor. É muito bonita, observa o pintor depois de uns segundos de silêncio, muito bonita mesmo… pena é ser tão pequenina.

Isto para explicar que aceitar a arte implica aceitar as suas convenções, de igual modo que se aceita que aquela imagem da fotografia “seja” a pessoa que retrata.

Contei esta história, que é no mínimo risonha, e fiquei siderado pelo silêncio gélido que se seguiu na plateia, que reunia umas dezenas largas de pessoas, quadros, intelectuais e médicos - a profissão do Aldino.
No beberete que se seguiu houve uma cirurgiã que se apiedou da solidão do apresentador e se aproximou calorosa para me perguntar: o Picasso é aquele artista que pintou aquele menino das lágrimas, não é? Falava-me de um poster absolutamente foleiro e kitsch que forrou as paredes da pequeno-burguesia urbana dos anos 70. E então fez-se-me luz, a maioria da gente ali reunida não sabia quem era o Picasso.
Para espanto meu, descobria um sítio no mundo – muitos, verifiquei depois – onde não se sabe quem é o Picasso. E não sei se tem mal, embora os intelectuais na Europa saibam quem é o Malangatana. Um lugar onde um jovem universitário desconhece o que seja um iceberg. Nunca estaremos suficientemente advertidos para as nossas diferenças.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

CRAVEIRINHA: O POLÍGAMO DA NOSTALGIA

José Craveirinha faria 85 anos este ano e o Movimento Literário Kuphaluxa resolveu homenageá-lo, no Centro Cultural Brasileiro, onde, sob a batuta de Calane da Silva, tem a sede. A sessão foi no passado dia 6, tendo eu sido convidado para moderar uma mesa com vários escritores num debate de evocação do poeta. Embora seja um poeta que admiro mas não amo, reconheço que de cada vez que o tenho de reler com mais atenção descubro sempre coisas novas, o que é a marca de um grande poeta.
Por isso deixo estas notas, sacadas ao documento que preparei para essa sessão:

1
Dou um exemplo de como grande parte da literatura é desencadeada por empréstimo, por uma troca, extraindo-o do livro mais improvável, precisamente o Poemas da Prisão. Na página 117 lê-se «Estou só/ mas viajo no pensamento./E à minha cabeceira/ a voz que escuto/ é Fernando Pessoa que responde», e este poema esclarece uma estrofe do primeiro poema do mesmo livro, onde se lê: «A vida/ órfã de sempre/ dá-me em cada verso/ uma veia esticada em mim/ a retinir poesia.//Deus deu-me/ esta arte mínima/ de confessar as coisas/ dizendo tudo a fingir.// E desta dádiva me sirvo/ polígamo de nostalgia.»
A estrofe a que me refiro é a segunda: «Deus deu-me/ esta arte mínima/ de confessar as coisas/ dizendo tudo a fingir», e que corresponde à famosa quadra de Pessoa ortónimo que abre o poema Autopsicografia: «O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ A dor que deveres sente
Portanto não existe o génio espontâneo, mas sim as janelas que alguns abrem para além da clausura do condicionamento e que são mais ricas se o poeta estiver tão encharcado de cultura como de vivido.

2
José Craveirinha, muitas vezes, é embaciado como poeta, ou antes, engravatado como um estrito poeta social, quando as dimensões da sua obra não suportam grelhas de leitura tão redutoras.
E, de novo, para começar, a confusão entre tema e poesia é-lhe claramente prejudicial – e servirá mais aos interesses políticos que à memória plectórica da sua obra, que transcende os ferrolhos da sociologia.
Vamos aos exemplos. Um poema como Aldeia Queimada: “Mais/ nas noites/ desparasitadas de estrelas/ é que as hienas/ actuam. // É/ de cinzas/ o vestígio das palhotas”. O que faz deste feixe de versos um poema não é a denúncia do acto (embora console saber que como homem, Craveirinha não perdoava as canalhices) mas a translação que sofre o insólito adjectivo «desparasitadas», que primeiro alude às estrelas para depois - “deslocado” pela ausência das mesmas - adquirir um novo sentido que desqualifica (o que é realçado pelo ineditismo do adjectivo) os que estão presentes: os parasitas das hienas (leia-se: os guerrilheiros da Renamo, que fomentaram uma guerra civil durante uma década, em Moçambique). É quando a noite se desnaturaliza que atacam as hienas.
Cá está: a poesia  não é apenas uma representação das coisas do mundo, mas sim, essencialmente, um processo da linguagem e neste caso estamos diante de um engenhoso mecanismo de economia verbal.
Fosse o poema escrito, exactamente com o mesmo conteúdo, mas com sinónimos e sem recorrer àquele insólito adjectivo, exemplifiquemos: «Pela calada/ da noite/ é que as hienas/ actuam/ etc.», não passaria de uma informação, pertinente face à contingência mas que só sobreviveria como imitação de poema. É o que nos ensina Manoel de Barros, um poeta brasileiro contemporâneo: «um passarinho desapareceu de cantar», é um verso de Guimarães Rosa, enquanto «um passarinho deixou de cantar» não passa de uma informação, digna de figurar nos fait-divers de um jornal.
Num outro poema de testemunho ao seu comprometimento político, Vila Algarve, o poema não seria o mesmo sem o modo verbal com que fecha este terceto: «No entanto um típico tremor/ quando olho os clássicos azulejos/ são os meus joelhos a recordar». A abrupta a passagem do verbo para o presente do conjuntivo dá conta da inscrição do medo no corpo e dilata (porque a actualiza) a brutalidade do vivido, pois na foi na Vila Algarve que o poeta foi torturado pela polícia política portuguesa; e apesar da sua consciência e da sua rejeição moral e política quanto à sua provação no passado (o poema acontece dez anos depois do poeta ter estado preso pela Pide) o corpo treme-lhe involuntariamente, quando o poeta se aproxima da casa onde foi torturado. A denúncia não seria tão forte sem esta subtil intensificação emocional pela alteração do verbo.
Mas temo que Craveirinha esteja a ser lido apenas pelos conteúdos (leia-se: políticos). Temo que um poema antologiável como O Trilo:
«Da
ave o trilo.

Pássaro
canoro trilando
possesso.

Trilando num galho
exéquias.

Recolho
e transcrevo o timbre
que é um canto de luto notável – o poema insinua: se a Maria estivesse viva o poeta estaria distraído a não ouvir o pássaro, a ponto do seu canto não lhe parecer uma exéquia, pois a sua presença ofuscaria o sentido do canto – este poema nunca o vi valorizado porque não é explícito, declarativo, aqui não se grita contra o colono, sendo apenas um poema de luto subtilíssimo que eleva a qualidade expressiva à perfeição, inclusive num recorte quase concretista (repare-se, como o desenho que forma na página o terceto central do poema: «Pássaro/ canoro trilando/ possesso.» lembra o bico de um pássaro).

3
Os poetas não são santos, nem comissários políticos («Sabotagem é despromover um verdadeiro poeta em funcionário», escreveu o poeta em Saborosas Tanjarinas d’Inhambane, talvez prevendo a sua sorte póstuma), e a sua obra é para ser dessolenizada. Só assim o poeta desce do pedestal das efemérides para conviver com os homens. E para isso é preciso não o dar por perfeito, como figura ideal, como único. Ele próprio não se dá como único, e para mim, o que dá densidade humana à obra de Craveirinha, mais do que a retórica nacionalista em que ele tão necessariamente investiu a seu devido tempo, ou a aura de herói que isso depois lhe deu, e que ele nunca quis vestir, o que para mim lhe dá um carácter que como poeta coloco acima das evidentes virtudes, é antes a sua declarada fragilidade, os inúmeros, porque são inúmeros versos em que o poeta fala do seu desamparo, da sua solidão, da sua vulnerabilidade e mágoa diante do passado e do presente, da falta, das rasteiras do tempo, o seu face a face com a distopia e as suas dúvidas de homem que sem nunca ter faltado ao seu compromisso com a história e com o seu povo nunca deixou de ser o Zé particular, o Zé ninguém, aquém do estatuto, imerso no seu quotidiano anónimo e ao rés dos seus, tantas vezes traídos nas suas expectativas. É este Zé Craveirinha, pouco espectaculoso, que me faz lembrar um grande poeta checo Vladimir Holan, é este homem disposto ao amor do ínfimo e às contradições que para mim trazem a grande complexidade do poeta, como no conhecido poema Interrogatório: «Era não!/ mas o tabaco/ é um vício.// E o vício/ fumado nas omoplatas/ põe-nos sobre a língua a nicotina// descerra os lábios para o sim». Repare-se na complexidade que aqui se joga: este não ou este sim são a inocente afirmativa ou negação de aceitar um cigarro oferecido pelo inimigo, ou trata-se, o que é mais grave, de vender uma informação por um cigarro? E o Craveirinha pode bem não ser o sujeito do enunciado e este ser antes o nós impessoal que é a soma dos presos políticos, portanto desiludam-se os que lêem aqui uma confissão, o Craveirinha está a encenar, a colocar o actor deste poema diante da miríade das pequenas armadilhas pessoais que podem minar naquela situação extrema a vontade e a coragem do preso; e então assistimos ao modo como um problema pessoal se eleva a categoria, tornando-se universal - é o que faz a força do poema.

4
«O choque entre o vocábulo comum e a reinvenção dele para uma rítmica esquematização; um estruturamento quase alucinado e alucinante das imagens e um sentido hedonístico da semântica como um espasmo heliocrómico, dá-nos, comunica-nos, faz-nos amiúde sentir as mais inconfessadas tensões…» E adiante: «fazer poesia não é oprimir calculisticamente conhecimentos e juntá-los ao bel-prazer de quem quer; porém sim, a partir da desopressão de cada vocábulo em si erguer a torre significativa em que o momento se intemporaliza (…) O homem atento às coisas do mundo está no poeta para exercer a ironia, o sarcasmo, um onanismo enfático também. Mas sempre nas formas de um poeta sensualmente ia além de se condoer, de co-doer-se.» 
Chamei estes excertos, duma crónica de Craveirinha sobre Grabato Dias, à liça posto que me parecem funcionar como um espelho diante de um espelho, isto é, podia ser o que alguém poderia escrever sobre muitos recursos estilísticos do próprio José Craveirinha, que realizou, - sobretudo com Xigubo e Karangana wa Karangana - uma verdadeira operação de translação na língua portuguesa.
Visto que não se trata unicamente de ter embutido termos rongas nos poemas, ou da introdução de neologismos onde o português convive com o ronga, o inglês e até o afrikans; não é isso, a meu ver, que “nativiza” os poemas, e vê-se como a inserção de termos autóctones noutros poetas é meramente decorativo. Aliás, Calane da Silva mostra na sua tese como Craveirinha pega em verbos ronga e os declina segundo a gramática portuguesa e neste caso estaria a “aportuguesar” o ronga. A sua intervenção é mais profunda, o que difere em Craveirinha é que ele empurra o português para fora das suas fronteiras forçando a língua nos seus mecanismos sintácticos e morfológicos. A coisa é simples: o poeta expõe os limites da língua portuguesa em relação às suas aspirações universais e então expande-a (, ainda que seja preciso dizer que, na época, em Moçambique, Grabato Dias também fez “contorções” linguísticas notáveis) com enxertos de uma sonoridade local que lhe abre as lentes. O sistema arterial da língua passa a correr num duplo sentido.
Escreve Craveirinha no poema A Fraternidade das Palavras:
  ()
  E eis que num espasmo
  de harmonia como todas as coisas
   palavras rongas e algarvias ganguissam
   neste satanhoco papel
   e recombinam o poema.”
               ( Karingana wa Karingana : 151)
Este namoro, propósito a que o sujeito empírico do poeta nunca se furtou, é visado em muitos poemas que realizam uma verdadeira cópula entre as línguas, numa plasticidade crioula. Há um mês atrás, numa entrevista que dei para o Brasil por causa do meu romance que lá saiu escrevi eu sobre a lusofonia:
«O imaginário lusófono é como o sentimento da queda no Paraíso bíblico: há um misto de culpa, de rejeição e de tremenda atracção pela Eva. O aparente decoro da Eva não nos deve deixar impotentes, e convém voltar a fecundá-la, com a diferença de que agora pode ser ela a tomar as rédeas do jogo, tendo o papel activo na função. É preciso aceitar a troca das posições no leito para que a coisa volte a animar. Enquanto não se entender esta coisa primária, a lusofonia não passa da simulação das erecções de um anão ao espelho. O Eduardo Lourenço já disse tudo sobre esta matéria no seu devido tempo, mas como os políticos portugueses não têm mais nada a oferecer senão retórica agarram-se à miragem.»
Trouxe isto à baila por causa do que acima sublinhei, pois quando o Craveirinha coloca o português e o ronga ao mesmo nível e destrói qualquer sentido da hierarquia entre elas, naquele tempo em que o moçambicano não tinha cidadania, já está a realizar esta troca de posições na cama. Mas é mais extensivo, ou antes, mais subversivo. A linguagem é uma espécie de mobiliário que nos reveste por dentro. Quando o Craveirinha muda a sintaxe está a alterar absolutamente a posição dos móveis na casa e com isso descalcifica alguns ossos e altera a arrumação dos órgãos internos. Corolariamente, não concordo com a ideia de que o Craveirinha tenha nativizado o português, eu acho que é mais fundo e que ele encetou uma crioulagem que “ já não tem remédio” e que é de uma enorme riqueza plástica.
Como ele mesmo insinuava numa crónica de Contacto: «Trata-se muito simplesmente de não abdicar de uma cultura indígena, nem renegar uma corrente europeia, quando de tal enxerto pode surgir uma beneficiação integral na riqueza do ritmo expressional duma forma literária.
Deste princípio surgiu o grito do poeta Senghor, do Senegal: «Porque não unir as nossas duas claridades a fim de suprimir todas as sombras…».
Daí que, a meu ver, quando, a pretexto de Bertina Lopes, Craveirinha afirma que “precisamos de cultuar a reminiscência ancestral como forma de reabilitação integral”, o integral aqui seja total, ambitransitivo, e preveja a abertura a todas as experiências da memória e não o fechamento, a restrição, a identidade autárquica; sendo que as claridades evocadas em cima devem ser lidas não cromaticamente mas como sinónimo de «clareira do bosque», lugares onde o discernimento e a sensibilidade afins de cada senda se encontram, dialogam e conectam numa síntese sem peias nem complexos.

5
No primeiro poema de Poemas da Prisão, o poeta define-se como um polígamo da nostalgia, o que lhe assenta magnificamente porque o amor que re-liga era nele maior que o dissentimento da fractura. Como em Mandela, em quem o perdão foi maior que o ressentimento.
E com a mesma lucidez com que declarou: o homem é uma raça, nunca embarcou em quaisquer jogos de poder, mantendo sempre a sua reserva crítica sempre à mão. Inclusive declinou uma oferta choruda de Samora Machel, dizendo-lhe que preferia não a aceitar para resguardar a sua independência. Esta dimensão cívica é ainda hoje um exemplo, num país tão causticado pela obediência e o deletério comércio do favorecimento.

6
Li esta semana que o ministro da cultura, o Armando Artur, teria dito sobre o Acordo Ortográfico que este era ainda muito confuso e que não se entendia bem em que é que Moçambique lucraria em gastar tanto. Depende. De facto Moçambiqu1e ainda não se meteu na discussão do Acordo, que agora promete ter voltes-faces devido à acção e influência de Graça Moura, mas acho que Moçambique devia ter uma palavra a dizer neste aspecto. Uma das razões principais é que um é um país de não-passivos utentes da língua. O espectro do legado de Craveirinha devia estar no centro das propostas que Moçambique teria a dar para o Acordo. E por esta sugestão me fico.