saudade de massimo troisi/ a fotomontagem é de ida gallo/idadrok |
Este conto foi escrito a pensar em Massimo Troisi, como protagonista, esse fabuloso comediante que o grosso do público conheceu em «O Carteiro de Pablo Neruda», mas que aprendi a adorar em «Ricomincio da tre», quase vinte anos antes. Era poeta, realizador e actor e um portento no dizer de Edoardo de Filippo, o afamado dramaturgo napolitano, mas infelizamente morreu cedo de ataque cardíaco, logo depois do Carteiro...
Este conto, como o anterior dedicado a Walter Matthau, já foram publicados e maravilhosamente ilustrados no blog Casa de Jade (veja aqui), de Diniz Conefrey e Maria João Worm, dois dos melhores desenhadores e ilustradores portugueses.
YES, WE CAN
É lamentável, mas não posso narrar esta história e esconder-me atrás da página, como o pintor Apeles, que se punha atrás dos quadros e escutava a crítica do seu público, tirando disso proveito. Primeiro, não tenho público, depois perderia o ritmo do que aflui e ninguém escreve um conto à posteriori, sob risco de sair o texto requentado como as respostas ao fundo da escada.
A sede própria para o conto acontecer é esta: esta página dobrada pelo instante único em que uma pedra parte um vidro e uma corrente de ar engolfa a casa.
- Querido, vai ver o que se passa… senti uma pontada de ar nas costas… - pediu Irinah, a Ulisse, na mansidão que o dispunha à ternura. Ulisse beijou-lhe a omoplata, que a alça descosida da combinação fazia despontar, e levantou-se para ir verificar que janela da casa se escancarara. Ouve-se o mar. O mar é o grampo que segura aquela casa de madeira à duna.
Na saleta, caída entre a máquina de costura e o sofá de verga, a pedra – uma concha fundida em grés – testemunha o acto voluntário que rebentou o vidro, em estilhas. Ulisse coça a cabeça, não se lembra de ter inimigos, de quem lhe queira mal. Nem depois de casar com Irinah, a mais bonita rapariga da região. A beleza de Irinah era um isco que tornava insistentes e belicosos os homens e a timidez de Ulisse acabara por ganhar nela um lugar preponderante.
Ulisse poisa a pedra no sofá e volta ao quarto.
Só então dá conta de estar sozinho, de ter sonhado o chamamento dela, o beijo; Ulisse levantara-se meio sonâmbulo, automaticamente, ao barulho da pedra na vidraça.
Ulisse enrosca-se na cama e chora. Está viúvo há cinco dias. Irinah desaparecera no mar, diante da casa, no mar que todos os dias desafiava para a faina. Está viúvo e tem uma pedra na sala.
Três dias depois do ocorrido, abandonadas as buscas, foram mandadas pela igreja, duas senhoras falar com ele. A uma encavalitavam-se-lhe os dentes, enormes, represos numa boca de polvo, a outra tinha tão obstinadamente tratadas as sobrancelhas que as pobres estavam já mortas – era um vinco ósseo sobre osso. Tinha que as desenhar com um lápis.
Ulisse, não ouviu nada do que diziam, ao cabo fim de quinze minutos, num balbucio, pediu que saíssem. A duna onde a sua casa se incrustava, ficava a quilómetro e meio da povoação. Num extremo da baía, repontava um mangal, no outro extremo estendia-se um pequeno estaleiro, com um guindaste de onde se quis atirar. Foi impedido por três estivas que o sovaram. Agora, todas as manhãs, sondava o horizonte e pedia a Deus para que enterrasse todos os guindastes do mundo.
Ulisse, para amparar o busto da tristeza, só tem o crédito que lhe dá o cantineiro da aldeia (um português analfabeto e encardido, com duas mulheres negras, cinco gaiatos ranhosos e um gato zarolho). O pouco que tinha está em reserva, para o enterro, depois do aparecimento do corpo. De resto, está liso. Imagine-se uma algibeira com uma enorme língua de fora. É a de Ulisse. Extenuada, indiferente à própria salinidade que acumula, ao sol.
Uma vez por semana faz sair a canoa ao fim do dia e o que apanha aguenta-o.
O resto do pescado troca por álcool, pão, arroz, alguns legumes. Nos outros dias prega os tímpanos às ondas. Entalado entre o silêncio e o mar, as insónias cavam-lhe olheiras fundas. Dava tudo para ensurdecer, que o interior do seu crânio fosse uma micaia tocada pelo fogo, mas a vida cobra tudo em mistérios: ei-lo vazado em eco. Sabe, sente, julga que enlouquece. Mesmo que quisesse não seria capaz de voltar à faina mais do que uma vez por semana, é o seu farnel de auto-piedade, a bacela.
E às vezes pega no remo e espanca com ele as águas, até ficar cansado; numa fúria, já partiu duas lâmpadas à bóia de pilar que sinaliza a terra aos pescadores. Felizmente, ninguém soube. O sonho, agora, se algum caco sobra ao embutimento da tristeza, é virar as costas ao mar e ir para Maputo, trabalhar para os comboios. Um tio prometeu-lhe que o chamariam. Espera, como o sargaço espera pelos seus náufragos.
Já conhece aquele americano de vista, há pelo menos dois anos que ele ocupa a casa da duna que vai morrer ao mangal, mas nunca conversaram. Era raro, como naquele dia, ver o americano na cantina a bebericar uma aguardente de caju e a ler um livro, em cujas margens anota gatafunhos.
Ulisse, imerso, despejando umas cervejas sobre outras observa-o durante um bom pedaço. O cigarro do americano mantém-se enfiado na orelha, não lhe tocou. Não é novo nem velho, nem afável, nem macambúzio, estar sempre tão metido consigo é que o torna enigmático. E Ulisses nunca viu ninguém embrenhado nas letras com a concentração de quem remenda redes.
Ulisse aproximou-se da mesa do americano e, desequilibrado no prumo da garrafa, a palavra entaramelada, comenta, «estou aqui há um bocado a admirar o seu trabalho e entendi tudo: está a corrigir umas letras que são falsas!»
O americano ri com gosto, depois manda-o sentar-se. Lá se entendem, o inglês de trapos de Ulisse mais os farrapos portugueses do camone e a mímica que, nascida da agonia do silêncio, se faz loquaz.
O americano estranha-lhe o nome e Ulisse conta, é filho dum grego que passou um verão na praia com os pescadores, antes de abalar. Aos quatro meses da gravidez, moída pela pancada do pai, a mãe escreveu-lhe e o grego respondeu-lhe num linha: “Chama-lhe Ulisses”. Com as lágrimas a mãe debotou o «ésse» final e ficou Ulisse.
O americano põe-lhe a mão na nuca, confortando-o, e abana a cabeça, repetidamente, antes de soltar: “somos dois fantasma da praia, you and me!”. Mas, «like a hinge», diz num sorriso, a tristeça dele dobra o cabo, qualquer coisa como um presidente novo, Ulisse sente-se um bocadito toldado, enquanto o camone insistia, “yes, we can!”. Entre goladas e risos garante: vai voltar à terra.
Ulisse gosta do calor do americano, sente-se com coragem de lhe confidenciar o que sempre calou com os pescadores. «Um dia, a minha mãe estava na cama com o meu pai e ele disse-lhe: "Vou-te dar a lição de Sócrates... a lição de Sócrates... Sócrates, distinguia além dos mortos e dos vivos, uma terceira categoria de entes, os marinheiros...” (seria «entes», interrogava Ulisse, aquela palavra desconhecida queimava-lhe a boca). O que quer isto dizer, pedia Ulisse. O americano reprime uma gargalhada, bate duas vezes com a palma na mesa e um pigarro recompõe-no. Dá uma golada e, num relance profundo, remata: “I’m sorry, my dear, isso só quer dizer que o pai ser sacana… nothing more. Mas don’t worry, vai mudar tudo, yes we can.”. O americano está de partida. No dia seguinte, diz.
Embalados pelos copos, arrasta-o até «my barraco», põe-lhe uma cassete com o canto da baleia, que o maravilha. Não o cansa aquela toada repetitiva, o americano é que ao fim de quinze minutos resolve dar o concerto por terminado. Depois, o camone senta-o diante de dois aparelhos de rádio: «… with this, we can talk with the people, entende?». Explica-lhe os rudimentos (era simples, pensou Ulisse) e fá-lo gaguejar ao microfone com um sul-africano, enquanto se parte de riso. Estava a noite na sua cova mais funda, antes dum rasgão lilás anunciar a alba e as gaivotas ruidosamente voltarem a quebrar ossitos de anjo, quando os dois carregaram os rádios para casa de Ulisse. À saída, à porta, o americano, num gesto largo que abarcava todo o horizonte, despediu-se «forever and ever da anatomi da tristeça».
Ulisse perguntou-lhe porque mantinha ele o cigarro na orelha. O americano sorriu: «The gun is a tiracolo, mas eu deixar de dispará…»
Ulisses tomou gosto àquelas vozes que brotavam em línguas de sílex ou de veludo e que desconhecia. Felizmente, tinha-lhe o cantineiro dado pelo casamento um velho gerador que lhe garantia algumas horas de electricidade ao dia e gastava-as de boca quase colada ao microfone, rodando o botão do rádio maior, à cata das frequências que lhe salpicariam, como sardas, o rosto de outras vozes. O aparelho mais pequeno, que era a pilhas, conserva-o debaixo da mesa, para o caso do outro avariar.
Um dia, à noitinha, sentado no banco onde Irinah se punha a mirar o céu estrelado, comparou aquelas vozes vindas do nada às luzes no miolo do céu. Pergunta-se se as estrelas teriam voz, e a sua imaginação fez reboar algumas delas numa colisão de cromados. Apanhou um susto e esteve três dias sem tocar no aparelho. Mas descobriu que já não dispensava aquelas vibrações desconhecidas, emoções moduladas em ritmos e sílabas que apesar de desconhecidos lhe aqueciam o coração.
Foi quando apanhou aquele angolano no rádio, que a excitação o tomou. Era de Lunda. Compreendiam-se. Estiveram mais de uma hora a “coser meia”, como chamava a sua avó, costureira no salão duma branca, às conversas sem bússola. Nessa tarde deambulou pela praia profundamente aliviado: o ar, como um feixe invisível, crivava-se de vozes, novas e velhas, roucas, melosas, temperadas, algumas amigas, vindas de para lá do tempo e do espaço. Andou febril vários dias e então chocou a ideia.
Conhecesse Ulisse o poeta Dante Milano e discordaria dele. É a luz do mundo como a de um farol na névoa? Que parvoíce! A luz do mundo chama-se Irinah e desde o seu desaparecimento no mar estava a carne do mundo muda. Menos na sua cabeça, que insistia em ecoar o mar, o fru-fru das goelas dos peixes que saracoteiam no fundo do canoa, as patacoadas do português, quando lhe chegam ciúmes da sua segunda mulher, o tamborilar da chuva no zinco das traseiras da casa, só por castigo, por não ter sido lesto o suficiente para lhe apanhar a mão antes da vaga lhe rebentar nas costas.
O céu estava agoirento e o mar de vaga larga e de rendas façanhudas, como naquele dia, mas no coração de Ulisse e esperança era maior que o medo. Foi junto à bóia de pilar que afundou o rádio, munido de pilhas novas.
Todos os dias roda o botão do rádio, numa minúcia, num apuro vagaroso que mata o milímetro de tédio. Ouve centenas de vozes vindas de nenhures, daquele espectro, mas nenhuma lhe parece submarina, chegada de onde as algas depositam e o plâncton se torna escuro. Começa a remar todos os dias até perto da bóia e perscruta o mar, mete a cabeça debaixo de água e espreita, à esquerda e à direita e ao fundo, naquele cofre, A água ali tem uns dez metros de fundo. Leva consigo uma telefonia vermelha, de bolso, e põe música, para que Irinah ouça. Ela gostava, passava os dias a cantarolar.
Uma otite fê-lo abandonar por alguns dias essas explorações, mas aproveita para captar uma frequência que, parecia-lhe, emite um som que lhe lembra o canto da baleia ouvido de longe. E então começa a ler ao microfone o Cântico dos Cânticos e os Salmos para a sua Irinah. Dias a fio.
Uma tarde distraidamente repara numa sombra de um amarelo fino de nanquim que avança para a quilha. Num sobressalto, tira a mão da água mesmo a tempo, era um tubarão albino. Desde miúdo que não se lembrava de tubarão naquelas águas. Recorda-se de Marinho Tembe, um pescador pândego da sua infância, que tratava por tu os tubarões desde que esmurrara o focinho do primeiro no Monte dos Noivos, a cinco quilómetros do Bilene. O Marinho, mais velho e preso de movimentos, que agora se limitava a levar os turistas à Inhaca. Lembra-se da história que sempre o impressionou, contada por desafio na cantina do português a um advogado de Maputo: Diz lá aqui ao doutor, desafiou o tuga, porque nunca casaste? E o Marinho mostrou a mão esquerda, cicatrizada, sem o dedo anelar. Sorriu com os incisivos que lhe faltavam e contou: o tubarão levou-me o anel de noivado e nunca mais o encontrei. Tem sido a minha vida.
Um nó de angústia assalta Ulisse. Ele sabe o que faz o tubarão a um corpo, perdeu em miúdo um cão que o acompanhava às pescarias e não fugiu a tempo das águas; a maré devolveu-lhe a cabeça e duas patas. Mas as dúvidas só lhe duram o tempo de remar até à praia. Quando chega a casa, ouve o canto da baleia, pega na sua Bíblia e lê ao microfone pela terceira vez na semana o Cântico dos Cânticos e as suas repetidas juras de amor.
Dormitava quando se começou a ouvir um apelo vindo da rádio, em grande plano, para cá do fundo das baleias? Abriu os dois olhos e o apelo repetiu-se. Uma voz feminina com um cavo soluço de algas entre as sílabas, ou como se entre as sílabas rebentassem bolhas de água. Não se percebia bem. Falava qualquer coisa sobre o cabelo. Pedia um travessão. Era a voz de Irinah? Podia ser, permeada de algas. Emocionado, jurou-lhe que em meia-hora se encontraria com ela ao pé da bóia.
Foi à concha grande que lhe haviam trazido de Pemba e onde Irinah guardava brincos (os poucos que tinha), colares de missangas, contas e dois travessões, um de osso e outro de plástico. Pareceu-lhe mais próprio o de osso. Correu para a praia.
Empurrou a canoa com gana e teve uma sensação de euforia quando, depois de empinada a proa na espuma, acomodou os remos e os puxou de forma decidida, sentindo que a canoa reagia ao seu impulso. Passada a rebentação, tirou do bolso a telefonia, sintonizou-a e pô-la no máximo. Fazia anos que o Elvis Presley morrera e o programa era-lhe dedicado. Os seus músculos retesados pelo sal deixavam-se conduzir pela batida. E enquanto remava era inundado por um sentimento de gratidão e vinha-lhe à cabeça o estribilho do americano: yes, we can… oh, yes, we can… YES, WE CAN.
Olhou para trás e viu que na bóia havia uma figura sentada. Os cabelos compridos não deixavam dúvidas, era mulher, tinha a silhueta da sua. Estava a chegar quando o Elvis começou a cantar Love me Tender.
Ficou perplexo. Sorria-lhe uma mulher, levemente parecida com a sua, mas com cauda de peixe. Foi impressão sua, ou ela seguia com as barbatanas o ritmo da música?
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