Pouco tempo depois de chegar a Moçambique comecei a inquietar-me sobre as possibilidades de ser lido numa terra com 50% de analfabetos e uma percentagem besta de iletrados, onde um livro habitualmente tem um mercado de 200 leitores (para uma população de 20 milhões), mas sobretudo onde os modelos de poesia dominantes, trinta anos depois da independência, persistem em ser os da poesia de combate.
A saída de um livro póstumo de poemas eróticos de José Craveirinha, o ícone poético em Moçambique, recebido com abafado alarme e discrição, apontou-me uma saída. Inventei uma personagem, o Ozo, que escreve poemas eróticos ou de forte motivação social, num estilo mais directo e acessível que o meu, e entretive-me durante uns meses.
Mas mantive a coisa inédita até hoje. Escrevi cerca de 50 poemas e parei, regressando às minhas atmosferas.
No entanto, ao ver as fotos inéditas que o José Cabral me passou para eu colocar no blogue achei que era a oportunidade de ressuscitar tão irrequieta personagem, e inclusive fiz um poema novo para a última foto. Doravante, o poeta Ozo só existirá como réplica às fotos do Cabral, ou de outros fotógrafos moçambicanos.
RECORDAÇÃO DE UMA MIÚDA
DA MAFALALA NUNCA MAIS ENTREVISTA
Foi a minha casa roubar o pisca-pólos
e deixou-me a sós com a fadiga
dos mais meândricos abismos,
aquele opulento Diabo distrital.
Pintava os lábios de prata p’ra
esconder o ouro nas partes gagas
e a pele, negra como a de minha mãe
à luz, arrebitava-se nuns seios pontudos
onde a sede naufraga de ciúme.
Talvez a História do mundo fosse
em geral mais distinta se eu
não me sentisse um heliotrópio
consumido pelo fulgor das suas mentiras
digitais. Oh let my people go*, cantava
o meu Diabo, de cujas orelhas pendiam
duas luas esculpidas nas presas
dos últimos rinocerontes brancos.
Foi a minha casa roubar o pisca-pólos
e eu, de tusa atrás da orelha, deixei.
Já comprei um kit da Black & Decker
para a próxima visita do mais
dengoso Diabo distrital
que Deus, esse Grande Amendoim,
pôs na boca do mundo. Oh, let
my people fuck, trauteio eu, não é?
* a Mafalala é um mítico bairro popular de madeira e zinco, donde saiu uma nata de intelectuais negros e mulatos que se posicionaram contra o colonialismo;
Let my people go, é o refrão do mais célebre poema de Noémia de Sousa, poeta tutelar da luta contra o colonialismo.
NUMA BARRACA DO MUSEU*
Jurava ela, sacudindo a fúria da estiagem
e sopesando-lhe um peito na palma da mão:
«esta rilação vai funcionar muito bem,
você vai ter uma boa cicatriz na sua alma».
Meia hora-depois, a sua pachorra
espanejava ainda as reticências dele:
«Não escolho nada… contigo só escorro!».
Duas Laurentinas voaram, antes dela
se confessar andorinha exilada: «Não
volto pra ele, aquele é só pra bater,
é estrago, mas ti digo, miolo de crocodilo
cura asmático, cura até flor
de isquileto.» E aí rendeu os lábios
aos bico da andorinha, o intranquilo.
* O Museu é um mercado popular encravado numa zona nobre da cidade, onde as bebidas são metade do preço que no resto da cidade, razão pela qual é muito frequentado por jornalistas e artistas; nas zonas rurais de Moçambique, os miolos de crocodilo, devido às suas toxinas mortíferas, são usados como veneno
ESPLANADA DA COLMEIA
O amor de Estela, «siô,
…faz favô!», a espampanante brasileira
que o bruto escoamento do desejo,
- ah bravo agravo! -,
fez desembarcar em Maputo,
é um litígio sem espumante.
Não lhe coube a litigação
dourada de Van Gogh
com os girassóis, algo a rói
e refreia – ei-la atada,
coitada, a uma mó que lhe atrasa
o coração. De futuro,
o amor de Estela só aceitará
inscrição em musgo –
um custo mínimo de sedimento.
O que a perdeu foi o reggae, n’acha
o déstino tão injusto? Eu adoraria
anotar em tão macias omoplatas:
«o seu delta não tem ínsuas…»;
que os seus dedos finos –
harpejam de novo o ar, «siô
…faz favô!» -, confiscassem
o meu lápis e, entre
gemidos rabiscassem:
«a sua língua toca tambor
no meu trevo». Pena
o calor e a minha ins-ins-
tabilidade temperamental.
DERROTAS SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEIS
Cariño, não era suposto a tua ida
a Durban trazer risos, afagos
e unicórnios doutro mundo
ao deslustrado linho – mas a urgência
aninhou no meu pranto um rôr de rios.
E agora a sincronização num cardume
não é superior à dos meus dedos
no estuário do seu corpo, lume
tão fraterno que me distrai.
E na peroração do pénis
que firme me cavalga o tema,
cismo: às vezes vivos enterram
os seus vivos. Quereria eu vingar
com o meu sexo o teu ocaso?
A UMA MOÇA BRASILEIRA
QUE CONHECI NO COCONUTS
Minto tantas vezes que t’acredito
quando mentes e m’emprestas
a drive do teu amor. Não deixes
que mintam por ti. O mito inteiro
reboa no rebolar da cachoeira
s’ousares dar ouvidos ao bom palpite.
Se não tencionas mentir faz o delete.
VEROSIMELHANÇA ARISTOTÉLICA
Inútil procurar
no cânone
africano
uma rosa
zebrada.
um rabo
desacostumado
de velejar.
Tens os pés de Tutankamon,
falou ele… o fotógrafo.
Não entendi nada – quem é esse?
Um que, como tu, tinha as estrelas
represas nas unhas. Represas,
quê, quê, quê... perguntei? Represas
como as raposas a sul,
mas onde há represa há desejo…
disse-me ele, puxando-me pra trás
do embondeiro. E agora,
perguntei no fim. Isso,
continua a interrogar… -, e riu,
enrolou um cigarro…e falou:
gostas de lírios-do-rio?
nunca gostei muito de peitos sem cabeça, mas das falas de ozo, sim
ResponderEliminar(e do desquite herculaneo do outro dia, tb)
Então, Ozo, eu sou uma moça brasileira que você não conheceu no Coconuts e sou uma moça que mente de tantaz vezes que acredita, que sou dada a acreditar até a hora em que tudo se registra no balcão da casa dos mortos, com ou sem cabeça, que morto é morto e pouco importa a cabeleira desde que eu encontre prosa e poesia. Porque, quando encontro, me abanco, pego um mate e vou proseando.
ResponderEliminarBeijo.
Bípede falante
tem dona juanica toda a razão. o problema nem está tanto na decapitação mas na fotografia ser fracota, apesar de ser de um excelente fotógrafo - a propósito, conheces os nus sem cabeça do mapplethorpe? mas verás outras coisas bonitas do Cabral. aqui servia o imaginário do ozo, não o meu, por isso a deixei passar. olha que temos de tomar um cafezinho antes de fugires para a índia
ResponderEliminarestremosa bípede, assim à beira do balcão da morte não marco encontros. assim à sombra de um dragoeiro era melhor, e com jerupiga, um licorzinho cabo-verdiano - não sei se a amiga conhece? mas abanque e escorra, em prosa e verso, que no fluir está o ganho. beijinho cabrita
ResponderEliminarÉ aqui, nas traseiras do teu blog, que te alivias, rapaz.
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