sábado, 31 de maio de 2014

LOTE DE SALVADOS 1: AS FERIDAS DE AQUILES

                                                            heitor e andrómaca, chirico

A Maria João Cantinho foi a pessoa que mais se bateu para que eu publicasse, em 2007, o meu primeiro livro de poesia escrito em Moçambique, Piripiri Suite, um livro cru e rude, onde eu me afastava da metáfora para traduzir a erosão humana, social, e paisagística que vim encontrar nestas sendas africanas. Cento e cinquenta páginas que nunca descolariam verdadeiramente para a luz porque a editora acabou no dia seguinte ao do lançamento do livro, que acabou por só estar distribuído numa livraria do Porto e noutra de Lisboa, tendo conhecido o piedoso silêncio da imprensa. O que, evidentemente ela desconhecia. O que interessa é que nesse período de alguma depressão ela me apoiou e fiquei-lhe grato. Por isso, mais do que muitos, ela merece conhecer o que escrevi em seguida e mantenho inédito.
Em 2008 escrevi As Feridas de Heitor, absolutamente diferente de Piripiri..., como ela comprovará. É para a leitora ideal que ela é que deposito aqui uma pequena amostra:


AS FERIDAS DE HEITOR


1                        Avenida Vladimir Lenine


Na Vladimir Lenine, quando o primeiro outdoor,
sobre um fundo preto, expôs a folia do açafrão,
onde se lia: «Este espaço é seu! Ocupe-o!»,
reboou o motim popular e os mais afoitos, na ira

e na fúlgida mesa de Baco barraram a rua, “isch...”,
cuspinhando para as câmaras de televisão, “isch...
o terreno onde o painel de publicidade
foi colocado já tem dono”.
                    
Magias de Maputo e da sua ex-
cedentária ração de raios de sol.
Nem escárnio nem clamor, só contarei
o que acontece, como a Heitor –

recuperado do susto que o catapultou
três vezes à volta da muralha –
que estaca e enfrenta o intenso Aquiles,
não interpretando mais os sinais da sua morte.




7                           (Heitor corrige Aragon)

Para os meus amigos mortos em flagrante
Maio e só para esses, que de ora em diante

as minhas rimas tenham “o charme”
com que as armas embebedam o desarme.

E que por todos os viventes
que se transplantam no vento

se aguçe em nome dos mortos
a branca lâmina do remorso.

Palavras nupciais palavras mortais
rimas como um espelho na viela,

que batem em castelo a clareza dos boémios
se simétricos afundam na água os remos,

ou a flor que morre na lapela,
sequiosa lua dos borralhos.

Rimas como o lótus embutido no armário
de sândalo: da reminiscência um corsário

e onde rubro e langue
se entoa cálido o sangue. Rimas

que não nos deixem esquecer como nos comem
vorazes as nossas sombras, iguais ao homem.

E quando o nosso coração se fine
despertem-nos, rimas, da nossa sina

reavivando a lâmpada mortiça
que atrás do vidro parece numa missa!

Eu canto e todavia sigo
os mortos em Tróia, meus amigos.




8
                           
Passas-me o fiambre? Hum, volta a reler:
‘Alguma vez conseguiremos descobrir a história
de um povo que não esteja manchada de cisnes?´.
É um trocadilho curioso, prossegue,
mas será ético
em relação à memória dos crimes?
Passas-me o sumo?
É todo teu, Andrómaca. 



15                     (leitura de Ficino)

Perdido o ponto da vela,
o meu país
é por ora um alpendre ensimesmado,
uma colmeia que diverge do mel
e que sob a batida dos impostos
crava as abelhas
nas ombreiras de um padecer monstruoso.
Este meu exílio é perpétuo
                             e, sim,
nascido para a luz,
aguardo que o universo
se converta em amor,
apesar de já não arder
no meu peito a pálpebra de Deus,
e
de ouvir atrás de mim, usurpador ofegante,
o urso que urde a desordem
do mel. 



18

Demasiados anos a adiar a leitura de Saint-
-John Perse de fio a pavio e agora,
                                                         blasfémia,
preferia a amplitude de um conhaque em Pavia,
à sombra de um castanheiro centenário e na mira
do dolmen, a fronte limpa de presságios.
Nem vale a pena maldizer o tempo ceifado
                           nesta ilusão
de que a astúcia recuperaria a inocência.

Divago, que o mar defronte é baço, e picados
foram os meus velhos ossos de borboleta!

Deveria tê-lo lido em minuciosa reverência
na idade em que o homem encontra
                           a mulher e ficam incontáveis
os seus olhos e todo o espaço
existe no mesmo instante e rodopia
favorável a fazer da compreensão criatura.
Distraidamente,
                          soletrá-lo no descante
de ser novo, sem aquele ninho de cegonhas
a vedar a luz na clarabóia -
é-me agora tão inútil a sua promessa ática
como a sua bruma.
                               Divergimos
no pouco que interessa perseverar.

Também a criança que fui desistiu
de robustecer o homem que pila
até ao invisível um coração de canela.
Mas no tempo em que proferia
                     “O que eu quiser, será!”,
não imaginava que o diplomata de Guadalupe
me rolaria das mãos como uma maçã tocada
                e que o seu ressalto na relva
não delimitaria para mim
a região ímpia.



19           (o pesadelo de Heitor)

Cortado pela base da copa
e escavado por dentro, o imbondeiro
muda em cisterna, em viveiro
de ágatas, num devotamento de guelras.

Aí se esconde Andrómaca.
De olhos fechados, quando Neoptolemo,
o filho do assassino do seu amado,
lhe mexe nas entranhas com o seu caduceu

real. O presumido varão julga-a aninhada,
paralisada pelo prazer, alga musical
num fluido irrenunciável,
enquanto, na cessação da angústia,

Andrómaca conta os peixes e pela milio-
néssima vez os finos cabelos de Heitor
Escavado por dentro, secreto, decaído
em musgo e palpitação de escamas,

o imbondeiro muda em Helena.



27

Intermitente, a vida ganha estofo.
A carraça hiberna dezoito anos, áscua
de pura ausência, na casca da mafurreira.
Um dia, uma devastadora onda de calor
atrai à sombra o lacunar mamífero.
Cismando em novelos de sangue,
a carraça deixa-se cair. Hábil
arqueiro zen no escuro, aloja-se
na junção da orelha esvoaçante
com o pescoço do labrador. O céu
rende-se à danação e trocado o azul
pelo rubro recolhe-se em nova abóbada.

Intermitente, a vida consagra-se.
Há quem eleja uma pátria e uma mulher
(a pátria é dispensável, prefira-se
o pub onde, à vez, os gagos iluminam
a noite), mas pode tomar balanço
quando um incauto confessa
‘eu nunca menti!’, ou se um turista
descobre que a pedra a que Moisés
encostava a cabeça para dormir,
no deserto de Canãa, lateja ainda       
como o sapo sitiado pelo
demente lucilar das estrelas.

Intermitente, a vida recomenda-se.
Sacode os sargaços e coloca uma mão
à tona. Intérmina e à tona, apesar
do mal ser ubíquo. A vida é a morte
por dom e não se pense que não somos
do bem. O bem, a gente veste ao domingo.




29              saudades de William Blake

Em tempo de infâmia, com licença
digital e emitida por satélite,
convém supor a quem nos dirigirmos,
quem pesará a alma no dia do trespasse.
Quem profere as palavras e alivia
de grumos a matéria subtil – moinhas,
pruridos, segredos que as unhas estriam,
moradas duma razão insulsa?
Em tempo de infâmia, crivados os poetas
do sono de Newton, débeis rimas
infiltradas de neuroses: spleens
cozinhados aos balcões das tabernas,
enquanto, coalhos e sórdidos, como frades,
se entredevoram em litanias urbanas,
tomando o solar da pele por contemplação
do mundo e as insónias por visão,
quem pesará a alma no dia do trespasse?

Em tempo de infâmia, baldado o ouro
verde, lascado como cedro podre
o homem em quem a mente se confunde
com o crânio, sem  atentar que o corpo
é unicamente a luva que um dia ouve
tocar a banda e vai à varanda deitar adivinhas,
pôr a língua de fora e perdulário expor
o intrínseco ao vento, quem perfura o écran
das imagens dominantes e sai do amorfo
para evocar Toth, o único
que no lodaçal dos pratos resgata o anel?

Tanto lhe quis dizer antes de interpor-se
o mistério da sua carne, e fesceninos,
esfacelados os olhos em tanta água,
desatarmos a foder como coelhos bravos.




32    (descoberta de Israeli, no Google)

Só o teu olhar e o meu, poisados nele,
amortecem a selvajaria do objecto. A chave,
com os seus caninos, as comissuras raiadas
de sangue, o comando da tv, essa fauce
da guerra - só o nosso olhar cingido
à sua textura lhes impõe uma momentânea
abstenção. Perdoa. Não fui estratega.
Olhei sempre como água dissoluta,
entre poldras. Não me aliei aos objectos,
ao polido corrimão da infância, ao primeiro
canivete, ao ritmo descompassado
do isqueiro de metal voltejando sobre si       
na mesa de mármore. Mas não os repeli.

Será a junção que os rebaixa e insurge,
secretamente? Desconfiava. Que a lua
é a reverberação do primeiro ser
mudado em coisa. A lua é a aurora
que veio depois do primeiro morto,
perdido do primeiro olhar. Só
o teu olhar e o meu, poisados nele,
amortecem a selvajaria do objecto.



33                (carta à minha filha Carolina)


Quero publicitar este cansaço,
os cúmulos que encimam o molhe.

Quarenta e oito anos enredados
por tanto reclame antecipado,

guerras em que caí, por lapso,
outras em que acordei, inanimado,

atido à gaguez e a uma tremenda falta
de condão para distinguir vent e vin.

Como um esquife, morto de cansaço,
o verso que me habilita à proporção.

Tanto resmoneio e afinal: pinturas
rupestres e cem por cento de humidade.

Na tv, passam flamingos. Quarenta e oito
e não me refaço do susto da mão no favo,

da dor que inseminou: não há, para o nascido,
momento, nem pausa, nem minuto

ou lágrima, que restituam a fonte - 
ainda que chegados ao primeiro balido

com quase um ano de zelo, eis-nos,
hélas, exilados do firmamento.



40                                    globaliza-se

Tinha dezassete anos quando morreu Heidegger,
para quem a linguagem é o que permite
à coisa mostrar-se a si mesma, retorqui,
delicadamente, a um seguidor de Allan Kardec
que me convidava para uma sessão espírita.
Tornou-se-me impossível crer na técnica
do toc-toc, prossegui, fixando a ondulação do vento
no canavial que margina o Zambeze. É pena, insistiu,
vamos todos à esplanada da piscina comer
uma pizza e depois zarpamos para a sessão.
Gostei do “zarpar”, ainda tem algo de azagaia,
mas que saudades do tan-tan africano!



42

Eis Deus aflito, a tentar sondar
pela chuva as coisas que Rastelli
conseguiu esconder no ar.
Cai em corda, oblíqua,

Embora nenhum navio singre
na cal das árvores.
Pelo adiantado da água
não chegarei a horas à aula.

Numa rapariga com a roupa colada
à pele despontam duas mangas brancas.
De bico espetado.
É um seio que tivesse sonhado o pintor.

Na Zambézia, saudosa de servidão,
que ainda hoje lamenta a independência,
porque esta debandou os latifundiários.
É de pasmar, mas esta chuva escava no calcário,

marasma sombras e cabides.
Um táxi-borboleta pedala contra a cortina
líquida. O expedito condutor
da bicicleta guia com uma mão, a outra

segura a meia-laranja que abriga o cliente.
É serviço para brancos,
garante-me o vizinho da esplanada.
A honra de Cartago: tão longe, meu amor.
 


49

Sou um poeta místico
que conheceu Dada.

Gostava de morrer atropelado
numa zebra, na confluência
de uma pernas catitas com o olhar,
enquanto na árvore de Buda
se despenha um figo de maus bofes.

Mosca magrinha nunca vi.
Talvez a inversa seja verdadeira.
Dois prestigiados chapeleiros.

Não tive mestres, nem
no meu apogeu, ou antes:
as glicínias que perfuram
o olho de Deus sem pedir licença.

Eis, contudo, o que me trama:
palpita-me que a cauda
cresce ao lagarto depois de cortada
porque foram as suas células
incapazes de deixar de amar.

Envelheço em ti
como lucilam as estrelas
no seu declínio?

Certo é,
não se anda de dúvidas
na corda bamba.



51

A prontidão com que colhe o fruto
das nossas fadigas e se retempera, penetrando
Helena com uma gratuidade felina,
loquaz, voluptuosa - aquele que se evade

no momento em que lhe falecem os homens!
Sim, bem sei, que em abrindo esse deus
juvenil, maligno e cego, de sardas
e pêlo ígneo, as suas asas de rapina

se sucede instantâneo o estalido
da alma que se entrincheirou entre
as unhas do desejo. Nascido de um ovo
chocado pela Noite, amamentado

por uma pantera, tirano impenitente
de deuses e homens, se distraído
sacode as asas de rapina logo uma alma
corre a aninhar-se, inflamável,

junto às fagulhas do tempo.
Enigmas. No seu ombro, cinge-se
uma aljava com flechas de cipreste,
a árvore que finca as suas raízes

na malbaratada melancolia dos homens,
e as setas molha-as em chumbo derretido,
lançando-as ao acaso. Pobre
de quem ouve um silvo furar-lhe a carne,

atreita ficará a sua sombra
à dilapidação do amor.
É o que me dizem os olhos de corça
com que Helena embala no leito as coxas

de vime do seu amado e os seus gemidos
de trepadeira em falésias de ar.
Mas interrogo-me se a Paris não cabia estar
entre os soldados, na muralha, a embeber

no lume o algodão que lastra
a ponta das flechas, e a acudir ao susto
com que situou os seus
por amor de uma câmara de ecos.
  



52

Como querer viver sem estar ferido,
meu amor? O falcão e a rola
desprendem-se da mesma nuvem,
de um mesmo sono sem cuidados.

Como estar vivo e não me engastar
no medo relativo? Heitor
é o estado que acrescentei ao nome,
a telha que faltava ao céu azul,

as tuas três sílabas de argila
com que a água escora o vento
e o hálito aclara a alusão:
presença a si mesmo desvendada.


Átrio III

Por muito que se alcem as buganvílias,
não tapam o sol.  
                         Não lutei contra Menelau,
que nem em contacto com Eros foi tenaz,
nem por Príamo,
                         meu pai, que cria o trovão

                      desirmanado do relâmpago.
         E como levar-se a peito o amor dos frívolos,
o de Helena e Páris, ou o de Orfeu,
                                  que usando os truques
das sereias penetrou no Hades com a sua cítara
sem a ter trocado pela alma de Eurídice
                 ou ter depositado a sua como penhor?
Lutei por Andrómaca, para morrer no seu lugar.

Outrora consultei os búzios (o embutido
                            de alma no leão
            que ouve rugir o mar),
o voo das abelhas, as fezes da Pitonisa,
                           li as palmas do peregrino
que dormitava
sob o loureiro no Templo, surpreendi a furtiva
       dança das sombras despenhadas pela alba,
                   consultei a pedra ventríloqua,
vi de olhos raiados em sangue as águias do Ocidente
                   e do Oriente traficarem sementes,
enquanto a chuva cicatrizava as fontes.
Mas só a inadiável ferida dos confins
que me despovoou o medo me entreabriu
                             o segredo:
amar suprime o hiato que é a morte.




quinta-feira, 29 de maio de 2014

SOLTE-SE O ROCK PRÉ-SOCRÁTICO: O RETORNO DE PAULO JOSÉ MIRANDA



Amanhã, na Abysmo – Rua da Horta Seca, 40, r/c, ao Camões, pelas 19h -  vai ocorrer o lançamento do livro de poesia do Paulo José Miranda, Exercícios de Humano, com apresentação do esteta e filósofo António Castro Caeiro.
Infelizmente não estarei para reeditar os nossos almoços intermináveis no Palmeiras, da Baixa, onde sob a ventilação das ventoinhas no tecto e a cavalo em copos de três discutíamos poesia e soluções para o mundo como se partíssemos em gomos uma laranja. E ainda não adivinhávamos que esses parcos sinais «tropicalistas» nos ejectariam, aos dois, para lados opostos dos trópicos.
A poesia do Paulo é uma poesia que faz falta, e por isso é vital não faltar amanhã. Faz falta por três motivos essenciais:
- é uma poesia elemental, pré-socrática, em que o poeta sem pudor dialoga com as forças e as energias do mundo, embora não do ponto de vista do sujeito mas da reminiscência;
- há nela uma pulsão elegíaca mas que não disfarça ou teme enfrentar nem as aporias nem o Mal, devolvendo a complexidade aos «exercícios de humano» (é este assumir das antinomias que a torna tão urgente e intemporal);
- terceiro, o Paulo José Miranda é um dos poucos poetas de hoje que não se contenta em fruir, e para quem a literatura é a encarnação de um pensamento, de uma sensibilidade, e uma interpretação do mundo, e não um mero «jogo de linguagem».
Gostava de desenvolver tudo isto mas a minha mão fracturada não me deixa agir com o fôlego que ele merecia.
Fica o poema que lhe dedico e que ontem consegui escrever no escasso intervalo da minha inactividade forçada e o grande abraço que lhe dirijo, mais à Aurea, ao Cotrim, o editor que o resgasta ao fim de oito anos de “exílio” e ao Caeiro, por, com a força da fidelidade, não refrear o entusiasmo.

   
ELEGIA PARA O PAULO JOSÉ MIRANDA,
DO SEU AMIGO EM FRACTURA

A alegria de conseguir escrever
                                     em letras minúsculas
que não pesem na mão
como pequenos ladrilhos
que a luz atravessa
                               obliquamente
mas deixando entrever o licorne
- numa incidência que se presta
                               ao diálogo,
mais do que à representação –,

a surpresa de poder
                            escrever sem dor,
           só mudando de escala,
e com a leveza inicial do tigre
que tropeça em todas as sílabas
        que encontra,
cego ainda ao ensimesmado,
solitário,
              engalfinhamento carnívoro,
faz-me voltar ao verso.

Nós sabemos que não há inocência
                mas é sobre a sua pressão
indefraudável
que acabamos por acatar «a esperança
de que bons e não maus espíritos
            nos tenham como instrumento».
            Não mais do que isto
é a depuração do estilo,
o lento armistício
            de que somos o sinal.

Suportar o mal, entronizá-lo
                          como estrume,
para extraviá-lo num máximo de pétalas
de heliotrópios por metro quadrado
                          de retinas,
eis a epifania que fazemos por merecer,
                - passar entre a luz e o vidro
sem deixar resíduos
                                 tóxicos.

O resto é o simultâneo
que nos brota da fronte como raízes
onde toda a veia se desanda
                              e o estio respira à chuva.
E que o desejo nos enterre
nessa terra inalcançável
que o glaciar
                     do falo escalda.


(os versos entre « » são de Czeslaw Milosz) 



segunda-feira, 5 de maio de 2014

LEVAR O POEMA PELA TRELA?

quadro de t`apies

O texto de Luís Carlos Patraquim, na apresentação de Bagagem Nao Reclamada, no I. Camões, Maputo, 29 Abril 2014:

 

                                                                   Já que o corpo te rouba os últimos suspiros

                                                Recusa levar o poema pela trela.

                                                A Cabrita, Bagagem não Reclamada

 

Esta citação de António Cabrita vem em a Fotogenia de Sísifo, que integra o livro que nos traz aqui, Bagagem não Reclamada. Aliás, cada uma das partes que o compõem, e são várias, ele há Elegias, A Minha Noite com Caliban, Quatro Bardamerdas e uma Homenagem, O Poema em Quarentena, Releitura de Íon – digamos que as sequências maiores – davam, se o poeta quisesse, livros outros.

António Cabritar resolveu, ao contrário de Pessoa que teve sempre a maior das dificuldades em arrumar a mala, juntar a trouxa, dar-lhe o nó. No prefácio que escreve para esta Bagagem não Reclamada, o autor desculpa-se com o soneto, essa forma clássica, codificada, esotérica para alguns. É caso para dizer que, neste particular, é melhor o soneto do que a emenda. Já que estamos entre amigos e começou a ventania da estação seca, com muita poeira a infiltrar-se nas palavras (elas têm brônquios, linfa, sangue e, por causo disso, tossem, cancerizam-se, as coitadas, ou desregram-se em menstruações e hemorragias) é curioso este despautério prefacial. Comparável, só Jorge de Sena, que se escusava a delegar a terceiros o que achava dever escrever sobre os seus livros.

Diz-nos o António – mas o poeta é um fingidor – que andava a organizar uma antologia e que se deu conta do soneto. Era “um veio subterrâneo” na sua “obra poética”. As palavras são dele e a tal antologia iria chamar-se Enumeração de Todos os Passos em Falso. De Petrarca a Sá de Miranda, de Shakespeare a Camões e Bocage e Antero de Quental aos franceses do alexandrino verso, o soneto é o cabo dos trabalhos. Diz o poeta que levou trinta anos a socar o saco dos sonetos, a chegar a eles. Acrescento que, nesse longo entretanto, as itinerâncias do autor e do sujeito poético foram intensas.

Do “Reino Cadaveroso”, como designou Ribeiro Sanches ao seu Portugal de setecentos e Sena virá a glosar na centúria que passou, à Pérola do Índico , onde o cidadão António Cabrita chegou para continuar a subir espaldares – Pearl, em inglês, é nome  de girls sem orquídeas sangrentas -a bagagem deste viajante, ao contrário de Saramago, que a reclamou sempre, dá-nos, afinal, a tal enumeração de todos os passos em falso que o autor optara por não publicar.

O que tenciono dizer com isto? Se lhe conhecesse a saliência das omoplatas dava-lhe já, na devida proporção, uns escaldaços de admiração e de amizade. Mas deixo isso para as bodegas onde nos perdemos à tona da espuma convulsionada.

`A maneira de Apollinaire, sem ostentação, António Cabrita traz a cabeça trepanada. A viagem é  longa, Ítaca longe, chegar lá não é uma solução e os Cantos da Inocência e as visões de William Blake, prefigurando um romantismo que chegará mais tarde, já não salvam. Nada salva. A pós-modernidade é a rosa estilhaçada. A épica acabou. O Anjo da História, de Walter Benjamin, é um Janus bifronte. Como disse alguém, Cabrita sabe que a poesia ensina a cair. Como não sou pretensioso nem quero cair em clichés, limito-me, por freudiano lapso, a só repetir a pergunta de Hölderlin, sobre a poesia e para que serve ela em tempos de indigência. O sublime louco hínico de Tünbingen, o poeta da mais alta torre, podia formulá-la. Mas não são os tempos todos de indigência?

Como António Cabtita sabe disso! E como nos ludibria. Tudo porque ele conhece a classificação de Platão sobre os homens: a de que há os vivos, os mortos e os que andam no mar. O autor de Arte Negra anda no mar. E convoca todas as vozes, a dos vivos e dos mortos e recombina as palavras para que o corpo inclinado e sanguíneo e belo e frágil encontre a sua casa do Ser. Sísifo e Prometeu, Ulisses e terrestre caçador de leões, colecionador de borboletas . Por esse voo táctil que insinua a Transcendência e as armadilhas de Deus ou dos deuses, lá anda ele, não voyeur nem turista, em intermediações onde mergulha até aos abysmos, mapeando os caminhos estonteando-se com deduções, abduções, elocuções, metaforizações, às vezes escatologias, espiralações, teorizações e ejaculações. Querem saber o que é a poesia? Não queiram. Lorca sentia, criança apavorada, relâmpago negro, como lapidarmente escreveu Pablo Neruda, a aproximação do duende. O nosso Sebastião Alba falava de doença Nerval arrastava a lagosta. Porque o poema é a perturbação da evidência, como a metáfora, socorrendo-me de Paul Ricouer, é a perturbação do nome. Mais do que enunciar o poema anuncia, intui, é o eco do que a sistematização filosófica vai outrar em modalizações da Língua e da Linguagem.

Julgo não me enganar se disser que António Cabrita é um poeta trágico. Não me refiro ao sentido grego. Não se iludam com a ironia, a fabulosa capacidade do riso, da aparente autocomiseração ou disjunção surrealizante, a recombinação das formas poéticas, os experimentalismos às vezes descarados, a deliberada e pouco convencionalmente enunciação a raiar o escárnio ou a raiva e o riso. Porque, como Cézanne, e trata-se de uma frase do pintor de que gosto, ela, a vida, apavora. Num dos diálogos do filme de Bergman, Lágrimas e Suspiros, alguém confidencia de que somos todos aleijados emocionais. O cometimento poético é esta radicalidade, rebelando-se como pode, contra as estruturas paradigmáticas, morfo-sintácticas, cumulativas e sequenciais da linguagem humana.

Em viagem, sempre, a iniciática, dialogando com o mundo, invocando, evocando todas as vozes, a poesia de António Cabrita tem, nos seus pontos luminosos, como dizia Ezra Pound, essa capacidade de nos fazer mudar a respiração. A expressão é de Paul Celan. Ela conhece o silêncio e o seu eco. Não citei, deliberadamente, nenhum dos poemas desta bagagem não reclamada. Lerei, se me permitirem, dois ou três pois que tudo é dele, mesmo que o seu desprendimento pudesse sugerir uma espécie de austeridade de elocução.

Sobre o resto, que é muito e diz respeito ao homem do mundo António Cabrita, não posso deixar de o saudar pelo valioso e intensíssimo trabalho que vem desenvolvendo há tanto tempo em Moçambique. Da escola ao ensaísmo, dos jornais ao cinema, Cabrita inscreve-se no nervoso tecido cultural moçambicano. Não há o Outro, mas o Outro em nós. Só quem opera reducionismos identitários se atomiza nos seus labirintos de solidão.