sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

PARA QUE SERVEM OS ELEVADORES? poesia e utilidade social

olha o Pollock a interrogar a sua utilidade
Perguntou-me um jovem: a quem serve a inutilidade da poesia? É ao que tentarei responder.
Frívolos tempos exigem respostas adequadas, de maneira que seja possível recuperar e afinar uma grelha dos valores que construa o miradouro onde se possam efectuar os encontros.
Um encontro, lembra-nos o filósofo e pedagogo Lopez Quintas, não é uma mera proximidade, e antes demanda a partilha de valores elevados:
«Quando você e eu nos dirigimos em direcção a algo valioso, unimo-nos entre nós. Para unir-se, o mais importante é fazer o bem em comum, compartilhar algo. Dizia Saint-Exupéry: «amar-se não é olhar um para o outro; é olhar juntos na mesma direcção». Quando uma pessoa e outra realizam em comum algo valioso, isto as une de sobremaneira». 
Eu tenho a inocência de acreditar nisto, que só há encontro quando o que o motiva é transpessoal e excede o pespontar dos relatos autobiográficos e o maçador pendor descritivo. O mesmo acontece com uma equipa de futebol: funciona tanto melhor quanto mais superar a soma dos seus talentos individuais. Shakespeare transcende-me, discutir Shakespeare e os seus meandros pode dar anos de discussão e descobertas a uma parelha amorosa, discutir os livros de Dan Brown não dá lenha para mais de uma tarde.
A escola pode promover ainda (e deve) no jovem a distinção entre o sistema dos objectos e a condição do âmbito, conceito teorizada por Lopes Quintas, e crucial para a compreensão do relacionamento interpessoal e a virtualidade dos encontros propiciadores de criatividade.
Não há jovem que, no seu processo de crescimento, não brote de um vínculo. É aquilo a que Deleuze chamava começar a meio. Todos nós começamos por desabrochar para a rede - nós e a nossa rede de relações (familiares e outras) - mas, à medida que a vida adulta nos restringe os ritmos e funcionaliza o quotidiano, empurra-nos para o sistema dos objectos – ou seja: passamos a encarar as realidades (e os outros) que nos aparecem como coisas, passíveis de analisadas por nós, de fora, abstidos. As relações tornam-se “realidades objectivas”, com expectativas e metas exteriores ao seu fluir. Do sexo aos bens de consumo, o sistema impele o jovem para a mesma base de desafecto e reificação.
Antes de se socializar, ou melhor, de ser inserido nos não-ditos dominantes que lhe encurtarão a janela da percepção, o jovem não estava fora da realidade, a realidade era uma banheira onde ele mergulhava vendo como a sua entrada na banheira fazia a água subir: estava comprometido, enovelado na relação com a água e com os outros. Ele e a realidade acertavam o passo, em simbiose, não estavam separados.
«Cavalos entardecem
na beira do mato –
onde entardeço»
Escreve o poeta brasileiro Manoel de Barros, lembrando que o observador também entardece com os cavalos que observa; condição que a física quântica confirma e que nós, na nossa vida quotidiana, tudo fazemos para esquecer e rejeitar, dado ambicionarmos relações de domínio.
Normal, que o novel adulto, já estabelecido na ideia firme de ter sucesso e de controlar a sua vida, imponha uma clivagem entre o sujeito e os seus objectos – tornarmo-nos adultos é esta farsa de comprar uma piscina que passamos a observar de fora porque suspeitamos que quando mergulhamos nela já não damos pela subida da água. 
O âmbito é o que torna reversível esta situação. «Pense-se num piano… exemplifica Lopez Quintás - Como móvel não passa de um objecto. Mas como instrumento, que tipo de realidade apresenta? É uma fonte de possibilidades. Ali ninguém manda em ninguém – não há um sujeito e um objecto – mas o piano dá a possibilidade para criar uma obra e o intérprete dá ao piano a possibilidade de que essa obra seja – é um enriquecimento mútuo. É uma experiência com uma dupla direcção, e o piano deixa de ser um objecto para ser um âmbito».
O Picasso teve a mesma experiência quando viu por acaso um selim de bicicleta ao lado de um guiador tresmalhado e percebeu, naquele encontro inesperado, que a junção dos dois desenhava a cabeça de um touro. Com isso fez uma nova escultura, mas a transformação foi mútua pois esse encontro modificou o seu olhar.
No plano das relações interpessoais, um âmbito é tudo o que cria um nó de relações que nos transforma, pois passamos a sermos particípes criativos daquela realidade e não sujeitos passivos de um discurso ou de um procedimento mudado em lei.
O problema que coloca o âmbito é que não autoriza a cristalização de relações hierárquicas entre os pólos da relação, entre outras coisas porque o seu nexo depende de um terceiro da relação, como se evidencia neste outro poema de Manoel de Barros:
«Já me dei ao desfrute
de ser ao mesmo tempo
pedra e sapo»
Para que esta situação de indivisibilidade se produza é necessário: um observador (que fundido na observação congrega os outros elementos), uma pedra e um sapo; retiremos um dos elementos e o acontecimento deixa de ter lugar:
«Por um segundo
teve a lua
bigodes de gato»,
lê-se num haiku do Americano Jack Kerouac. Um segundo depois, ou um centímetro ao lado. e esta visão mesclada, que vale mais que um e outro dos elementos que a constituem, não aconteceria.
Toda a relação é um processo inacabado, um desfazer e refazer de mapas; o pólo que agora vinca a sua “personalidade” e enche determinado momento do diálogo, no momento seguinte dilui-se, fantasmeia-se, muda, esvazia-se. Outro extraordinário haiku de Kerouac elucida vantajosamente este aspecto:
«Elefantes mastigam
a erva – amoroso
tête à tête»
O poderoso elefante, a sua força e tremenda soberba, que eram se a erva fizesse greve e à sua passagem se enfiasse na terra que ele pisa? Tremenda lição de humildade: quando come a erva – coisinha pouca, ínfima, rasteira – quem está cheio é a erva, o elefante está vazio: mudaram de importância.   
Evidentemente que a poesia e a arte são os territórios privilegiados para este jogo da reversibilidades que o âmbito abre, pois como dizia o poeta brasileira Mário Quintana a poesia não é uma fuga da realidade mas uma fuga para a realidade.  
Será esta fuga para a realidade absolutamente necessária? Claramente, pois como observou o filósofo Clemént Rosset, no seu  estudo A inobservância do real: «Se há uma faculdade humana que merece atenção e se assemelha ao prodígio é realmente essa aptidão, particular ao homem, de resistir a toda a informação exterior e quando esta não concorda com a ordem da expectativa e do desejo, de ignorá-la, se for preciso a seu bel-prazer; admitindo a possibilidade de se opor a ela, se a realidade insiste, numa recusa de percepção que interrompe toda a controvérsia e encerra o debate, naturalmente às custas do real. Esta faculdade de resistência à informação tem algo de fascinante e de mágico, nos limites do inacreditável e do sobrenatural: é impossível conceber como se utiliza o aparelho perceptivo para não ver, o ouvido para não ouvir. No entanto, essa faculdade, ou melhor, essa antifaculdade existe; ela é mesmo das mais banais e qualquer um pode fazer a sua observação quotidiana.»
Unicamente por esta fuga “para” a realidade voltam os olhos a ver, os ouvidos a ouvir, e o nariz a cheirar, and so on; desatando-se o múltiplo, o que em processo, à nossa frente, nos pede que inacabemos.
É a quem serve a inutilidade da poesia: aos inimigos da usura – os perdulários. Pois esses não duvidam que a arte e a poesia pertencem à orbe do dom, a uma economia imaterial que é tanto mais generosa quanto menos dela se exige. Saber que há coisas que nos transmitem felicidade na esfera do humano e que não se compram – não são objecto de troca, o talento, nem a graça de o potenciar – é o que torna o mundo habitável.
E claro que para compreender este texto é preciso um leitor atento, persistente, e que se comprometa. Eis porque a poesia pode ser feita por todos... mas não é para todos aceitar que não temos domínio, e que o terceiro da relação, essa figura incaptável, de tudo nos desapropia: da vontade de poder e também do medo.
E ao autor de uma pergunta tão espontânea mas tão significativa da trivialização dos tempos, gostaria de replicar com uma pergunta: para que servem os elevadores, numa cidade que mantém a maior parte deles avariados? E agradeço que responda, segundo o método americano, pondo um x à frente da pergunta:
1 – servem para o guarda Faustino conhecer biblicamente a filha do notário do 4º
2 – servem como oráculo, para se auscultar, no seio do escuro, os números da próxima lotaria
3 -  servem para capacitar a vaidade humana de que tem de subir a pé 9 andares

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