sábado, 30 de julho de 2016

O VENTO E A ESCOLTA, 29/08/2016

irving penn


Quando estou num período mais repousado, por questões de equilíbro e ecologia mental, tento traduzir ou fazer versões de pelo menos um poema por dia. Hoje descobri outra razão adicional para o fazer: a busca de uma expressão exacta, como quem esculpe na água.
Mais dois poemas de Milosz. No segundo habita um verso que é particularmente luminoso do ponto de vista da intuição que nos inculca: «Amo a matéria que é só um espelho que gira». Este é um verso que diríamos herbertiano, não fora ser-lhe três décadas anterior – dele ressalta o veio profundo que navega subterraneamente na diccção de alguns grandes poetas, uma espécie de vsão transpesoal interior/anterior ao expresso. E repare-se como este «espelho que gira» é já «o andado desandado» do segundo poema, escrito sessenta anos depois.

MANHÃ

Bela é a terra
belas são as nuvens
belo é o dia
e muito intenso é o amanhecer.


Assim cantava um homem olhando para baixo, a cidade,
de onde fumegava uma bateria de cem chaminés.

E o pão da mesa era um segredo,
de vê-lo palpitava a fronte
o homem levantou alto o braço
e entre risos dançava ao redor, desfraldado.

O sabor do pão recorda a luz do sol
ao comê-lo, do pão irradiam raios.
Depois, indo para o trabalho, o homem sentiu o amor
e mencionou-o às pedras da rua.

Amo a matéria que é só um espelho que gira.
Amo o movimento do sangue, única razão do mundo.
Creio na destrublidade de tudo o que existe.
Para não perder-me, tenho na mão um lívido mapa de veias.


ESTE MUNDO

Acontece que houve um mal entendido.
Tomou-se por literal o que não passava ainda de uma prova.
Os rios voltarão às suas origens,
o vento deixará de dar voltas.
As árvores não brotarão e voltarão às suas raízes.
Os velhos correrão atrás da bola,
Olhar-se-ão no espelho e serão outra vez meninos.
Os mortos despertarão sem compreender.
Até que todo o andado se desandará.
Que alívio! Respirai, vós que tanto haveis sofrido!


COMENTÁRIO A PASCAL

Pascal: «il n’aime plus cete personne qu’il aimait il ya dix ans. Je crois bien: elle n’ est plus la même, ni lui non plus. Il était jaune e elle aussi; elle est tout autre. Il l’aimerait peut-être, telle qu’elle étais alors.»
A asserção é heraclitiana e há algo de pueril neste juízo. Próprio de um homem que nunca teve mulher. É evidente que  tempo nos muda e, simultaneamente, muda também as circunstâncias e o pano de fundo em que amávamos. De facto as relações afectivas têm estações como a natureza e conhecem o inverno. Na nossa imaturidade não acreditamos que o inverno prepara a Primavera, dado associarmos, com nefanda estupidez, o amor à intensidade emocional dos instantes. O amor é uma lenta aprendizagem do tempo à sua feição natural, que é cíclica. Ou antes, é uma forma de incarnar sem atrito as transformações silenciosas que o tempo produz em si mesmo ao vivenciar as suas manifestações.
Crescemos sem darmos conta, como amadurecem os frutos e os cães mudam de temperamento – um dia olhamos a criança e notamos: está enorme! Nós não nos vemos envelhecer, de forma consciente – a não ser que tenhamos a doidice de Frida Khalo que tinha um espelho no dossel, suspeito que para espreitar duas coisas: o seu rosto lânguido quando gozava e, no inverso, os estragos que o sacho e a enxada do tempo faziam no seu corpo. Provavelmente, por fim, para surpreender a chegada da morte, embora seja impossível estarmos em vigília permanente; suspeito que a morte lhe terá chegado pelas traseiras. Na verdade, a vida é sem esperança e o amor – essa entronização do tempo em nós através da atenção e do corpo de outrém – é a aceitação disso sem tragédia, com sabor incluído e um ligeiro patetismo. Não convoco aqui, para já, outro elemento vital ao amor mas suplementar: a dignidade. É um suplemente desejável, mas à parte. Pode haver paixão sem dignidade, pode ser até iníqua. Faz parte do espectro da paixão desvelar nódoas no carácter, porque é sem moral. O amor pelo contrário, é a polpa que aprende a não corromper-se. É a isto que se chama fidelidade. Que não tem nada a ver com os acidentes na paisagem – a passagem de um ou outro aerolito momentâneo – mas antes com a constância de acreditar que o inverno prepara a primavera. Pelo que a proposição pascaliana  (ou heraclitiana) não passa de uma puerilidade coroada pelo sucesso da sua fórmula.


INFORME SOBRE A SITUAÇÃO NA TURQUIA

Formigam os homens endiabrados
À procura da pata de Deus.  

segunda-feira, 25 de julho de 2016

ESCRITOS NA VARANDA: IMPERMANÊNCIA



Uma vez em casa do poeta Joaquim Manuel Magalhães vi-o riscar com sanha uma palavra que a editora havia impresso ao fim da página de rosto do seu belo livro Segredos, Sebes, Aluviões, enquanto vociferava contra a impertinência da “sentença” intrusa.  A palavra era “impermanência”. Bom, o Joaquim era então um pequeno deus e eu um candidato a oficiante, teria ele menos dez anos do que os que conto nesta altura. Já na juvenília da veterania autorizo-me a pensar que, mesmo nos melhores de nós, além da soberba há vezes em que também nos sobra a imprudência.
Lembrei-me desta história depois de ter escrito o poema que se segue, no intervalo de uma dessas pesadas tarefas que impõem uma mudança de casa. Resolvi descansar uma hora e levei para o café uma antologia do Milosz. Foi no confronto com este magnífico polaco que se verteu o poema:

«IMPERMANÊNCIA

As estrelas exumam a luz
do fundo do seu próprio abismo.
Pestanejam e salta o tigre.

É infindável o núcleo das estrelas,
vive na ponta dos seus raios,
na transparência com que o felino

trespassa as suas presas,
alumbrando-lhes a carne e os ossos
- como a palavra, sentada

num grão de pó, lhes parece
agora saturada! A energia
que as estrelas despendem

neste esforço é a mesma que late
no teu coração, amor, e insuficiente

é o nosso fôlego para retê-lo.