quinta-feira, 20 de março de 2014

AS FLORES DO NAÚFRAGO

                                                                       hokusai


Acabei um livro de poesia, As Flores do Náufrago, que reúne algum do material que fui escrevendo em 2013/2014, e resolvi fechar a loja. Não quero dizer que dentro de portas não continue a ebulição, não estará é exposta na montra. E por isso se diz na nota final:
«Deixo na gaveta dois livros inéditos, que, curiosamente, são os mais ambiciosos e os que mais estimo – As Feridas de Heitor, de 2008, e Epílogo Sobre a Morte dos Oceanos, de 2010, e estão na gaveta em trabalhos de plaina e lima e a ver se resistem à traça (se não, nada se perdeu) –, e um livro no prelo, Harpo Marx na Cova dos Leões, que sairá pela Abysmo.
Este, As Flores do Naúfrago, é o último livro de poesia que organizarei,  pelo menos no próximo lustro. 
Agora chegou o momento da prosa que, como eu a entendo, tem afluentes poéticos que se farta. A poesia fica muito bem entregue – há gente magnífica e novas hidrografias a romper.
Se deste meu golpe de rins nada resultar, sempre podemos dizer como o Nemésio: “A corça virou-lhe as ancas/ E tudo o mais é destino”.»

Aqui deixo os poemas com que abro o primeiro capítulo e o segundo e o poema que fecha o livro:

de ERRATAS

onde se lê
CREIA QUEM LÊ, DIZIA:

Este verso não garante escolta,
tão pouco é a pousada espanhola
onde os hóspedes trocam por mortadela
a chuva que traziam na bagagem.

Nesta quadra, ervada pela profunda
desconfiança que o zen tem
pela palavra, o bolor
alastra, canino, rectifica.

Este terceto não é de Dante
nem nele um albatroz manco, toc
toc, se alapa na retina de Baudelaire.

Pobre soneto temperado no gume
da pequena espada wakisahi,
prenhe na hemorragia dos bambus.

leia-se:
CORPOS DE VERÃO, CORVOS DE INVERNO

A brecha entre as nuvens,
duas brechas entre nuvens,
o azul que flui pleno
como um cetáceo,

uma nuvem isolada
e a esgarçar-se,
mais grisalha
que uma lágrima:

tantos adereços que o tempo
mobiliza para ser.

Corpos de verão,
corvos de inverno:
só o ar admite a corporeidade.

Entretanto, o pior de tudo
é não habitar
num mundo físico.



de
OS DETRITOS DE POMPEIA

Janela roubada, a minha vida -
eu que em miúdo assoava
o nariz aos navios. Agora,

imagina-te empenhado num duelo
de esgrima. Se no tinir das espadas
te assalta a dúvida, Terei regado
esta manhã as begónias, a resposta
não chegará a tempo de impedir
o ferro de te atravessar as tripas.

O bosque alça-se em negro fundo,
a meio perla-se o prado -
enquanto a minha cabeça
se descasca para dentro.

Importa saber se mantens intacta,
ferina e imediata, a confiança na intuição.
Tantas coisas que te atormentam são
a montanha russa com que os teus fantasmas
se divertem, os que gratos
pela insistência com que familiarizas
no mundo a tua irrealidade, te cedem 
fotogramas com os detritos 
de Pompeia - que nunca viste.

Se bem que inestimáveis aras
do desejo, para mim, para ti, 
estes calendários têm o ar 
dum tempo que já passou.
Nem pestanejo, meto-os no lixo.

Como estes versos que aqui deixo.





SHORT LIST?
                     
para o Cotrim, o Valério, a Inês, a Joana, a Teresa e o Helder Macedo, pelas razões que eles conhecem

Sentir o cansaço nos ossos:
a linha divisória,
o momento de passar à sabotagem
e de me abster de aliviar
Deus do tédio.
Novo rubor e desígnio.

Julgar que a serenidade busca os clamores
da «luz absoluta» é uma tola ideia fixa
que tem de ser banida,
como a de cavalgar o crocodilo.
Preferia cavalgar o Shakespeare,
que mongo cavalga a besta
para demonstrar que tipo de sangue
lhe corre nas veias e um rudimento
de magia lhe veda  os furos?

Quando muito, supor que em cada fissura
da realidade nasce um lírio,
a culminância do limo,
esse sim, pioneiro,
e que o negativo de Deus
é unicamente outro Deus em gestação.

Abdiquei de ser um homem de armas
por odiar os colectivos,
sou mais da dança, da espontaneidade
sem remoto controle, a sós
ou com a breve nata
do amor batida em castelo.

Escorregar no limo
e bater com as costas na pedra
é que promete o lírio.
Um rio com um kilt escocês.
Fino como este copo que me entranha.








quarta-feira, 5 de março de 2014

REFLEXÃO SOBRE DEUS NA ILHA DE MOÇAMBIQUE


 
Deus é todo o imortal que se desenfia

a pontapé nestas missangas compradas,

na ilha que foi nossa e dossel dos mitos,

 
imortal que se suspendeu pelo calcanhar
do tempo, cativo como Aquiles de narração
que o diga. A escala irracional do Hospital

 
da ilha, colunatas e pavilhões neoclássicos
onde hoje só lagartos e musgo remoem

contristados os arrazoados de Job sobre

 
os não-sentidos de lamentar qualquer dor,
é um modelo da loucura de conceber por Arquitecto
um mui grão apreciador de babas de caracol.

 
Deus em cujo selvagem apetite
se engendrou o esquecimento

de ser incriado – magnífica

 
a moça que me acena, mas sem ‘msuri

que lhe colaria ao rosto as máscaras

duma beleza que não esmorece –

 
é poderoso ainda – sucede serem

contagiantes os narradores – não obstante

lhe falecer o gosto de ser inominável.

 
(Parentesis para nos impressionar a lisura

da ilha, passada a ferro, como se

fossem palmeiras os túmidos pêlos

 
púbicos de um corpo na horizontal.

Percebe-se que tenha conhecido aqui

Bocage os descaminhos da sua sombra.)

 
A nenhum Deus que persista em sê-lo

– irá para que Islândia a carta que esta ruiva
´
exibe, na sua quase nudez, na praia da Fortaleza? –

 
galvaniza a idolatria de se adorar um nome

ou não fora superior na salamandra

a necessidade de mergulhar no fogo

 
à de escolher um avatar. O drama

é, inelutável, a invariável solidão –

a de não ter fiéis e permanecer mudo

 
o chamamento que foi pressentido,

ou a de ter finalmente um quarto medieval,

cama românica, e nenhuma dama disposta

 
a devotar-nos a sua vassalagem;

drama é o labirinto a que não se descortina

fundo, labirinto de uma atracção velhaca

 
porque não dá esperança, como esta ilha

que o Lowry escolheria para plateau

de uma sequela de Debaixo do Vulcão,

 
embora mantenha incólume o mistério

duma vitalidade que não foi refractada

pelo peso da História, sendo a sua decadência

 
tão saborosa como o siri-siri,
algas que não desmereciam ser

o último manjar dum condenado. Deus



é o labirinto anterior à sua designação,

que só sabe conjugar-se no presente, como a trama

da Penélope macua que tem lulas na vagina

 
que se fazem e desfazem, engenhosa

lábia e só igual à dos efebos que se oferecem

como guias, em visitas às despovoadas ilhotas

 
adjacentes e aos prazeres do sexo invisível

a olhares pios, gregos e troianos, que não dançam

como Zorba. E quer Deus, neste enredo

 
de mikuti, que o canto seja coral, energia

amplificada, radiante, que lhe permite sorver

a melancolia de haver sido

 
aquele que suprime o Tempo

- ridícula a estátua verde de Camões,

num aperaltamento de musas tangidas

 
pla gonorreia, e que será certamente posterior

aos versos em que Sena pôs o vate

a defecar sobre as moralidades vindouras

 
e sobre o Índico que tudo lava,
da garoupa vermelha à unha suja

com que esta mulher nos serve o pão.


 
Nesta ilha sente-se que Deus é um fantasma

que nos vendeu ao pataco de uma

estória, pela alusão de uma melodia

 
em cujo refrão se vendem os baús de Venús.

Os fortes ventos das entranhas da terra

(bom-dia Kafka), não esqueceram a ilha,

 
pelo menos neste dia de um bafo

espesso e quente que não oferece evasão,

isentando qualquer gotejar da culpa.

 
Ah sim, aqui aceita-se o terror da existência,
cambiada em carne a esmo, e lenta como a desova

das tartarugas. E no interim insista-se

 
na fidelidade com que Deus nos faz chegar

como objects trouées e nos muda em trouvés,

objectos de desejo e partilha, corações

 
dum ápice bifurcados, a quem o medo, o próprio,

ilude mas singulariza: algoritmos, aprovaria

um matemático. E nesse transe de auxiliar

 
Deus a voltar a agir como o intratável pirata

há que premir, a meio da sua presença,

o interruptor do tangível, de forma

 
a que um curto-circuito o desperte,

ou nos desperte – gemidos de cobre

sob uma fina filigrana em ouro.

 
Beatiful, a Semente, a recepcionista

do hotel: que poeta, antes de mim,

a nomeou assim, mesmo antes de saber

 
se tem lulas? Fora, é nítido – ainda
que esteja a ser generoso – que Deus lateja

nas figueiras de benguela, centenas,

 
com as suas barbas de Leviatã a confiar-nos

que não passamos de hóspedes em terra.

Ah, ser-com é tudo o que se pede

 
nesta ilha: que, realinhado o tear da História,

na ruptura da sintaxe, revelemos uma inédita

conjectura intrigante ou apenas o desejo

 
de sermos mais do aquilo que somos

capazes de vender. Como Deus, suponho,

que anseia sempre por cerejas

 
onde não as fez brotar, e com isso reaproxima
as regiões distantes. Sim, Tu, meu mestre,

meu senhor e guia, vê como renasce no teu âmago

 
a necessidade de despedir-nos. E a Semente

à espera, e eu mula, isto é, nada –

ou seja, nauta do nada que é tudo.


NOTA
Lulas: assim chamam as mulheres macuas aos pequenos e grandes lábios vaginais que, ritualmente, puxam e deformam, dando uma forma diferente à sua genitália