Que, quê, quê, quê... ou a variação de Ingres |
Vagueio, intervalado pelo mundo, acácias vermelhas, libelinhas, um “tô a pedi” tatuado nas costas, o ronrom das viaturas, plácidas como a tarde.
E ao meu lado abranda um jipe, novo, luzidio, e encosta à minha frente, enquanto se baixa o vidro.
- Doutor… - ouço chamar.
É uma jovem bonita, airosa mas que apesar de ter algo de familiar me escapa à lembrança. Sorri e rebola os olhos, como se estivesse a apontar todos os recantos do seu magnífico carro, em rasgada volúpia.
- Sou eu… - atira, corajosa.
Gaguejo:
- Foste minha aluna?
- Sim.
Diz-me o nome. Faz-se-me luz, mas sempre a conhecera de cabelo rapado e não com umas extensões à Beyoncé, e sem qualquer aparelho nos dentes.
- Já sei. Foste minha aluna de…
Adianta-se:
- Do corpo e quê, quê, quê, quê, e tal e tal.
O tal e tal é da sua autoria, quê, quê, quê, quê… é um bordão de linguagem das gentes da Beira.
- Estás muito diferente… - observo, e provoco – E vê-se que estás bem na vida.
- Não é? – concorda ela, e justifica numa gargalhada – Sou doutora!
- Ora… - acuso eu, eu também sou doutor mas não ando num carrão destes…
- Não quer!
- Oh lá lá, quem disse?
- O prof? O prof só gosta de ler…
- E tu… - gracejo – continuas a aprofundar o quê quê quê quê, ou deixaste-te de leituras?
Com tal expressão - quê, quê, quê, quê – ela não designara patos, mas a subjectividade, a segunda metade da disciplina: História do Corpo e da Subjectividade.
Nega espontânea:
- Xii, professor, não tenho tempo para me coçar e tenho um niño…
- Falamos espanhol?
- É do trabalho, trabalho numa empresa espanhola…
- Ah bom, em bueña hora… e é uma pita?
- Queria! É um menino…
- Parabéns. E qual é a área da empresa?
- Consultoria e quê, quê, quê, quê…
- Estou esclarecido.
- Não é?
Estávamos no ponto morto, era melhor ela accionar a ignição:
- Então vai lá à tua vida…- rebolo os olhos para o interior do carro, para que ela perceba que aprovo o fausto – gostei de te ver…
Ela mete a mudança e acena, feliz.
- Sucessos… - tenho tempo de desejar-lhe, antes que a janela dê à sola.
Um txopela segue-a, em tosses.
Vem-me num flash a sua ficha estudantil. Uma aluna sempre à beira da taquicardia, preguiçosa, desleixada – incapaz de ser emprenhada por um conceito.
Terei que aceitar que as extensões no cabelo, como a Sansão, lhe emprestaram um vigor ao espírito que não se adivinhava. Ou terá sido cunha? Da família? Do partido?
Imagino-a daqui a uns anos, a abrir o manual de física e química do filho, e a derrotar paciente, carinhosa, tudo o que retarda o entendimento do filho:
- Quê, quê, quê, quê, quê…
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