sábado, 16 de fevereiro de 2013

GLADÍOLOS E LUCÍOLOS


                                                           um gladíolo e um lucíolo?

Escrevo:
«Não me cansarei de me lamentar por este triste limite: leio, “as noites de verão que inflamam os lucíolos, entre o rio e a Via Láctea” e veem-me à cabeça, vagamente a forma dos lucíolos, mais a sua cor, mas fico rapidamente turvo, sem a certeza se não os confundo com os lanceolados gladíolos, por exemplo, e esta indefinição (que digo: ignorância) desgosta-me porque simplesmente sinaliza que me fui afastando da natureza, um dos males do século, segundo Camus, que regista nos Carnets: «Voltei a ler todos estes cadernos, desde o primeiro. O que me saltou à vista: as paisagens desaparecem pouco a pouco. O cancro moderno corrói-me a mim também».
Depois olho bem para a frase, e desconfio. Vou ver o que significa exactamente lucíole em francês e dou conta que é vaga-lume pirilampo, o que dá outro propriedade à frase: “as noites de verão que inflamam os pirilampos, entre o rio e a Via Láctea”…e pior, que nunca houve qualquer flor chamada lucíolo. C’est fini, c’est Capri.

 
Todos os dias espreito A Bola on line. Espanta-me uma tendência dos últimos tempos que é a de apresentar raparigas supostamente em poses eróticas, com a inscrição em baixo, A DIVA DA PORNOGRAFIA X. Portanto, é esta a noção que hoje os responsáveis de A Bola fazem da sexualidade dos seus leitores: uma força que os impele para os bordéis. Ou isso reflecte apenas o estereótipo do que se associa aos jogadores de futebol: putas e vinho verde?
Há qualquer coisa de doentio no critério editorial desses senhores e que mostra a pobreza mental, a venalidade sem remédio, em que se acantonou o país, onde uma ida ao Elefante Branco já passa pelo melhor que os media são capazes de oferecer à imaginação das pessoas.
Estranho, que a Leonor Pinhão nunca tenha feito uma crónica sobre esta nova tendência do jornal.
Gosto sempre de ver uma mulher nua, ou semi-nua, mas… acho que a nudez pode provir de formas mais saudáveis de relacionamento e não me parece que esta “atitude de proxeneta” dignifique nem o leitor nem o jornal.

 
Leio um dos livros mais bonitos que me passou pelo estreito desde há uns meses a esta parte, o ensaio do sino-francês François Cheng, Cinq méditations sur la beauté (Albin Michel, 2006), para quem a dicotomia, inusitadamente, não é a do Bem e do Mal, mas a da Beleza e do Mal.
E encontro aí uma sugestão deliciosa sobre as rosas. A de que o perfume nasce do ritmo da rosa, emanado como uma melodia que uma onda rítmica desencadeou.

 
Num velho caderno encontro esta citação de Kafka: «Há possibilidades para mim, de certeza; mas por baixo de que pedra é que elas se encontram?». Ainda hoje sinto vibrar aqui as afinidades, e debaixo dela, depus esta outra observação:
19 de Setembro de 1912, Kafka nos Diários escreve assim: «Esta história, O Processo, escrevia-a eu de um jacto durante a noite de 22 para 23, das dez da noite às seis da manhã».
Eis aqui a mesma bazófia olímpica que usou Pessoa para se gabar que escrevera na noite de 8 de Março de 1914, de pé, encostado a uma cómoda alta, todo o ciclo do Guardador de Rebanhos, mais a Chuva Oblíqua e a Ode Triunfal, como refere em carta para Casais Monteiro. Claro que esta mistificação é-lhe merecida, mas mais tarde encontraram-se, desde 1912, se não me falha a memória, vários rascunhos datados do que viria a ser o poema chave de Alberto Caeiro.
Não há dúvida, dois favorecidas pelas Musas. A proeza de Kakfa equivaleria à facecia de Tolstoi jurar a pés juntos que havia escrito A Guerra e Paz, numa semana.
Bom, se Deus criou o mundo em seis dias e o colapso do sétimo ainda não acabou!

 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

PARA QUE SERVEM OS ELEVADORES?

                                    Eis outro António: o Quadros, que homenageio neste livro

E pronto, chegou da tipografia. É um pequeno livro de ensaios, Para que servem os Elevadores, e outras indagações literárias, 200 páginas, publicado pela Alcance, sobre literaturas. Metade incide sobre literatura moçambicana e o resto são textos volantes, uns inéditos, outros não, como o Respiro (que teve uma edição de 80 ex.), o Que Histórias Conta o Ouriço à Baleia? (uma edição de 300 ex., se bem me lembro, no Pico), os meus prefácios à tradução de Juan Luís Panero ou à antologia que organizei do Virgílio de Lemos, ou o meu texto sobre o Grabato Dias, mas no essencial é uma primeira antologia onde se evidenciam os passos em falso que tenho dado na área.
Tenho uma segunda já preparada, Dá-me Cem Gramas de Camões Mal Passado? mas esta fica para o fim de ano. Por agora, deixo o títulos dos capítulos:
- A sós com os meus botões
- Que histórias conta o ouriço à baleia?/ travessias no imaginário
- O passe vertical/ poesia e futebol
- Como se desmama o crocodilo?/ cartas a um jovem poeta
- O homem com gatos nos pulmões/ Grabato Dias
- Quem cala a raposa e o grilo/ Ted Huhes e Alexandre O´Neill
- Carta ao poeta Alberto Lacerda
- José Craveirinha: um polígamo da mostalgia
- Consentimento da Neve/ Panero e eu
- Lírios, flamingos e o sentimento do tempo/ Fernando Couto
- Para que servem os elevadores?/ da “inutilidade” social da poesia
- Três novas chaminés fumegantes/ Mbate Pedro, Tânia Tomé e Florindo Mutender
- Cidade dos Espelhos, um excurso/ João Paulo Borges Coelho
-  A buganvília que ri/ Virgílio de Lemos
- Respiro/ poesia e não-dualidade
- Desejar mas não Fundir

 Como se vê: é um zoológico. Ou uma zoologia dos fluidos.
E para que se perceba como a coisa não pode ser muito séria, aqui vos deixo as três epígrafes escolhidas para encabeçar o livro, demonstrativas de que por ali pouca coisa será potável:

 «A minha vocação é desenhar o que vejo e não o que sei»
William Turner 

«Eu pinto os objectos como os penso e não como os vejo»
Picasso

«Direi, salvo o vosso devido respeito, que ele faz milagres, pois tem o cu redondo e faz os dejectos quadrados»
Nicolas Poussin

 O desenho da capa é do João Lucas, que é brilhante em tudo o que toca.
Ah, sim, os elevadores. Como em Maputo é o segundo andar alto em que vivo (agora um nono) com os elevadores a conta-gotas (quando funcionam) a fúria aca(l)mou em metáfora.