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Acendi a televisão por acaso e dei com a cerimónia da atribuição do Prémio Autores SPA (Sociedade Portuguesa de Autores)/ RTP, onde se consagravam os artistas e escritores do ano de 2010. De entre os três nomeados para o prémio de melhor livro de poesia do ano lá estava o Helder Moura Pereira e o livro “Se as Coisas não Fossem o que São”. Perdeu, ganhou um jovem António Carlos Cortez, que ainda não li. Pode ser que o livro de Cortez seja de facto magnífico, di-lo-ei depois de ler.
Contudo, não creio, à partida, que a nomeação do Helder tivesse outro propósito senão a de chamar a atenção para o livro (o que já é um papel positivo) pois não vejo em Portugal coragem para enfrentar as controvérsias (sobretudo tendo como tutela a RTP) e premiar um livro onde se escreve «que vá prò caralho este poemazinho», (pág.87), ou «À noite, depois de me deitar,/ carregado com uma droga qualquer,/ de vez em quando surgem/ em catadupas melodias…»(pág.71, sublinhado meu).
A única coisa que lamento sobre a não atribuição do prémio ao livro é que a maçaroca, as lecas, a mola… viriam na altura certa para o Helder. Não falo por ele (só o Helder pode falar por si mesmo), opino em abstracto. Os prémios não devem vir nem tarde demais nem cedo demais. Era o momento de estímulo certeiro. Ele não precisa disso para continuar a produzir, mas daria jeito… (repito, não falo em nome de ninguém, simplesmente imagino).
Este revés Campo de Ourique deu-me por outro lado o pretexto para acabar, remexer, corrigir o texto que vinha a fazer neste blog sobre o livro. E portanto aqui posto, acabado, o fruto do meu diálogo com ele.
Seguir-se-ão conversetas com o Armando Silva Carvalho e o Nuno Dempster.
matta-clark |
"SE AS COISAS NÃO FOSSEM O QUE SÃO"
Assírio & Alvim/ 2010
Eu risco e dobro as páginas dos livros. Sou um horror. E ao ler pela quarta vez o Se as Coisas não Fossem o que São, do Moura Pereira Moura Pereira, dei conta de que tinha dobrado todas as páginas. A cada leitura as suas preferências, como os estratos na terra.
Não vejo aqui um poema dispensável, mesmo os que parecem ser (e já lá iremos). À primeira leitura é um puro alienígena ou lembra um livro «desajeitado, muito maluco», que nos agarra como quem não quer a coisa, à espera que aconteça algo que ao fim percebemos ter sido a própria experiência do livro deflagrada em nós:
«Acendeste a luz
para me veres a cara e viste
um lugar obscuro e todo vazio».
Quem é que acendeu? O leitor.
Talvez seja este um dos aspectos que faz a adesão crescente que a poesia do Moura Pereira tem conhecido: esta escrita convoca-nos, não a lemos como observadores distantes mas no acto de deambular por dentro duma floresta que se nos assemelha. Ficamos imersos. Lê-lo é retomar uma conversa inacabada.
Este livro começa com a fala de um morto e tem, no poema tremendo que a meio do livro fecha o terceiro capítulo - onde o narrador se encontra com a sua figura já morta -um dos seus pontos focais, mas não quero para já ler o livro como uma catábase, ainda que o quinto poema do primeiro ciclo seja um belíssimo poema de amor («Metáfora? Nem penses, os teus abraços/são quentes e é por isso que finjo/ ter frio o tempo todo.») onde é sugerido que só o outro nos pode devolver a temperatura do mundo, a carne dos vivos e, no livro, o sentimento da morte esteja omnipresente:
«A morte e o seu cheiro presentes no beijo
da criança a uma velha com pêlos no queixo,
que ainda por cima depois retribuía – oh
céus – com outro beijo lambuzado na bochecha.
Pois esse cheiro inesquecível está de volta,
acompanhou-nos nos piores momentos
e invadiu a casa como frango assado. (pág. 32)».
Como neste último verso, os signos do quotidiano, as frases bordão, os lugares-comum, as marcas da oralidade são recorrentemente combustível para os poemas, mas o Moura Pereira nunca esquece a lição de Hitchcok: deve-se partir dos clichés para os transfigurar e não chegar a eles. De igual modo, também nunca se esquece de que os “intervalos” da vida passamo-los com as matérias menos nobres. Foi o que separou Bataille de Breton; às sublimidades do último, Bataille contrapunha os rigores dos “baixos fundos”, as contingentes unhas (porque será que ganham em velocidade com a idade?), os pés, os cheiros, os descasos, a urina, toda a matéria ímpia. Do alto da sua pureza, lastimava Breton a Voznessenski que o Cocteau desse cabo da sua poesia, e exemplificava, horrorizado: «La guitare, bidet qui chante», enquanto o poeta russo, constrangido, retorquia, que, pelo contrário, essa imagem lhe agradava muito e que adoraria encontrar similares. Aí está uma coisa com que o Moura Pereira concordaria, ele que há muitos anos deixou de cultivar os brilhos na poesia e se “limita” a «rasurar a experiência/ e pôr em palavras a razão da sua banalidade».
Para Moura Pereira não há uma prévia comunidade de destino, há o a fazê-la. O que o fez distanciar-se das grandes narrativas agregadoras ou da tentação oracular do poema alquímico:
«(…) Já não há sangue/ que nos una.
Ou oiro que derreta
qualquer símbolo na porta do céu. Eu
tu. Já quase não estamos, pó que somos (pág.32)»
Esta separação, a cesura que afasta «eu» e «tu» é essencial. Para percebermos porquê terei de contar uma história.
Algumas vezes me escolheu o Moura Pereira para apresentar os livros dele e nunca percebi porquê. Suponho que era a vaidade que me levava a aceitar, para além de ter gostado do livro e da amizade. Mas uma coisa é gostar e outra arrancar daí alguma coisa que faça sentido. Mentir é fácil, mais difícil é acertar. Tenho uma memória difusa mas menos ruim do prefácio que lhe fiz para uma antologia em francês – Feuille de Vent Amour, Orfeu/ Livraria Portuguesa, Bruxelas 1995 -; já me vergo de vergonha à lembrança de um lançamento no Porto – do Nem por Sombras, da Afrontamento – com uma sala apinhada de gente que sabia o que o poema deve ser – Gastão Cruz, Echevarria, Fernando Guimarães – enquanto eu andava às aranhas para explicar que aquele livro representava um paradigma diferente, na pluralidade a que a poesia tende. E senti-me mirado até ao osso, na triste figura de alguém que tenta soprar as velas numa gelatina. Um texto absolutamente inócuo, ao lado, e inapropriado – lembro-me vagamente que discorria sobre os mecanismos do sonho e como estes contaminavam aqueles poemas. O Moura Pereira nunca me disse uma palavra sobre o meu “desacerto global” e continuou a rir-se nos almoços que se seguiram. Mas senti-me, naquela situação, bastante desconectado, sem perceber ainda que nessa ocasião experimentava afinal um dos temas essenciais ao poeta.
Lamenta-se o Hamlet: «o tempo está fora dos eixos: ó sorte malvada, ter nascido para o endireitar!». Vejamos como o Moura Pereira deslocaria esta asserção tão nobre, imaginemos: «O tempo está fora dos eixos,/ ó sorte macaca, ter de ir ao endireita!». Brinco, falo todavia de algo muito sério, de um redimensionamento ético inerente a quem sabe que não pode endireitar o mundo, não só porque tal tarefa ciclópica estafou em equívocos o século XX como também porque afinal o mundo está dentro de nós e não lá fora – não é uma prótese que se corrija ou substitua facilmente. E esta nova atitude face ao político projecta-se também no relacionamento interpessoal.
A poesia de Moura Pereira é (na recente poesia portuguesa) a que expõe com maior insistência as desordens, falácias e atritos da comunicação humana e da sua vertente amorosa. Porém, considero-a «reservadamente sarcástica» (Blok), isto é, apesar de às vezes embarcar numa auto-ironia que não teme a corda bamba considero erróneo conectá-la de imediato com a disforia, pois, o que nela se constitui como afirmativa força propulsora nutre-se, afinal, dos impasses, das aporias, dos desajustes ou das pequenas e grandes alegrias fugazes do relacionamento interpessoal. Além disso Moura Pereira foi apurando o humor, a força paródica.
Mas de facto, como temas dominantes, Moura Pereira fala do eu, do tu, das dissonâncias e falências da comunicação, das “traições” com que a vida aparta amantes e amigos, dos pormenores insignificantes que vão rasgando os afectos, e – esta é a sua força moral – da negociação permanente a que isso nos obriga, mesmo que estejamos absolutamente impreparados para ela e seja tarde: «Já quase não estamos, pó que somos».
Durante anos não percebi nada do que Moura Pereira andava a fazer – havia coisas de que gostava muito e outras que me deixavam desconfiado mas não sabia deslindar os pontos nos is. Uma vez íamos de carro, ele dava-me uma boleia, e, com o meu feitio metediço, inquiria-o sobre a necessidade de publicar tanto.
Eu estava ainda encharcado do que a poesia deve ser e chateava-me que ele me contrariasse tão a miúdo – devia ser isso.
Íamos das Picoas para o Marquês de Pombal e ele explicava-me que para si a poesia era um fluxo e uma presença e que portanto ele não podia alhear-se momentaneamente, nem suspender a viagem para ficar a desenhar um itinerário ideal; e que no percurso tudo o que eventualmente se repetisse seria objecto duma deslocação natural.
E estava neste divagar e não sei se de forma inconsciente ou deliberada demos duas voltas à rotunda do Marquês, antes de desembocarmos na nossa rota. Nunca lhe perguntei se na segunda voltinha ele havia voltado aos carrosséis mas fiquei a matutar naquilo e dei conta que ele ao dobrar o círculo estava a dizer-me o mesmo que serviu a Ingmar Bergman para explicar a repetição da mesma história, numa cena fulcral de A Máscara: a história que se conta nunca é a mesma que é escutada. Moura Pereira trabalha no que fica entre, nas refracções, na procura de emparelhar (como na conversa) os pontos de vista, e paciente, de livro para livro, as suas variações vão sobrepondo a deslocação à repetição, mostrando-nos como mudando de lugar a paisagem também muda. As cem vistas do Monte Fuji, de Hokusai.
Porém, não se julgue que estamos a ouvir música minimal repetitiva, trata-se antes de um affaire de microtonalidades que oferecem tanto mais ao receptor quanto mais expansiva for a sua atenção.
E há uma dimensão que temos de considerar diante desta poesia e que a vem tornando, para mim, um dos lugares cimeiros da poesia portuguesa dos últimos vinte anos: a sua extrema liberdade em relação ao que seja o literário, nas tintas para “a arte” de escrever bem, para os efeitos, o seu arrojo é outro: transmitir com eficácia as ilusões, burlas e inabilidades da comunicação, num preito que projecta a solidão num lugar inabitável se não compensado pelo ethos da partilha.
ii
Mesmo quando o poeta escreve no ponto de cozedura (num poema que, aliás, merecia ser citado na íntegra), i.é num registo tão comovido e final: «As flores. Lembro-me delas
como me lembro da cadela morta, do pai
morto, da mãe viva, do teu cuidado
em cuidares dela. E o teu dedo
cortado da seiva do cacto, calejado
de tesouras, descobre pequenos vermes
na raiz. Aqui secarão meus ossos. (pág. 24)»,
plasma de forma serena o seu contacto com o pensamento agónico, sendo sublime a materialidade a que se entrega, pelo desprendimento, pela infrangível descida ao cerne.
Este é um lirismo a contrapêlo que, sobrevoando o relato de incidências infelizes do amor, apesar do desgaste ou amarrotamento emocional, assim fecha outro poema,
«É tempo de terminar com os adeuses
escrevo enroscado na minha monotonia»,
porque, antecipa-se nos dois versos imediatamente anteriores:
«Descubro a água na terra, aponto a vara
e nasce em cada ramo uma firme haste».
Ou seja: o sujeito lírico constata que a sua capacidade de amar se sobrepõe inapelavelmente ao rotinado sentimento do luto, mesmo quando o amor não promete qualquer salvação:
«(…) Socorri-me do amor, pedi
que me defendesse, mas o amor
fez orelhas moucas, o mais
que consegui foi que me deitasse
sortes, sortes que disseram
para eu contrariar a dúvida
com outra dúvida maior.».
Falámos atrás de sujeito lírico, que não deve confundir-se com a pessoa do poeta, contudo as constâncias criam um sedimento, estrias, algo que permeia a sua personalidade poética, e no caso do Moura Pereira há um ror de janelas viradas para o golpe do amor, e é sem custo que divisamos nesta “possessão” e nas suas incandescências um dos grandes temas do poeta de Os Tranquilos Sobressaltos.
Outro aspecto interessante associa-se à dúctil performance da identidade poética, ao jogo de transferências (na sua acepção psicanalítica) e desdobramentos processados nesta poesia, onde nada acontece segundo uma linearidade. Quem lê este poeta desde sempre, mas não lhe faz uma visagem diacrónica, pode não detectar para além de uma aparente monotonia uma variedade multiplamente dobrável (o que aliás também acontece com outro poeta de talhe tão dissemelhante de Moura Pereira: António Ramos Rosa). Esta poesia põe as máscaras, despersonaliza-se, docemente ou duma forma abrupta (projectando-se para lá do subjectivo), coloca quantas vezes as palavras a conversarem entre si - o que não apenas electrocuta as certezas sobre quem narra e quem é narrado como funde as referências ao mundo real no jogo da escrita, num verdadeiro feixe de ambivalências, pois, nesta poesia, como diria o Agamben, onde acaba a linguagem, começa, não o indizível, mas a matéria da palavra.
Vejamos o que se enfeixa neste conseguido fecho dum poema:
«Apesar de trivial o momento é um misto
de tristeza e beleza, eu regresso a casa
para ir buscar uma cadeira. Sentar-me-ei
debaixo de uma árvore. Antes, porém,
fico a ver-me fechar as janelas
uma a uma, o que em mim é visto
pensa que ainda não é uma despedida.
O que em mim vê não sabe o que há-de
pensar. É uma criatura sem queda para
a troca de impressões, a palavra coragem
ainda continua a meter-lhe medo e encontra
beleza no gesto de um homem visto
de costas a fechar janelas e portas.»
A estrofe organiza um travelling de recuo por uma psique fragmentada ou desencadeia uma mise-en-âbime?
Quantas “personagens/figuras/duplicados” se enfeixam/desdobram nesse movimento? O descritor, aquele que vê no descritor, aquele que é visto, a quarta que a subtil passagem do verbo para a terceira pessoa (precisamente quando o descritor confessa que não sabe o que há-de pensar) introduz, e esta rede de olhares convergem num olhar que os reunifica: o leitor. Mas não estará este, por sua vez a ser observado? E o que é que trespassa todos estes olhares e os liga? Mais do que um sujeito-concatenador, uma energia: uma forma dinâmica de memória.
iii
Não existe poesia que seja simples. Quanto muito há poesia que ignora os seus processos e a sua tradição e normalmente num caso destes não passa de um espectro nu, nem chega a ser um simulacro.
Bom, a não ser que provenha de um poeta culto e «mestre em ignorâncias» e que já esteja para lá do género, numa dimensão da escritura. É esta, no dizer de Henri Meschonnic que momentaneamente adoptamos: «o que acontece quando alguma coisa é feita na linguagem por um sujeito e que jamais havia sido feito assim até aquele momento – então a escritura participa do desconhecido. Ou seja do ritmo…» É o que se passa com António Ramos Rosa, os brasileiros Manoel de Barros e Vicente Cecim e, ainda que num registo absolutamente diferente e aparentemente antagónico, com Hélder Moura Pereira.
Moura Pereira, consentâneo com a sua geração, chega à publicação do primeiro livro no momento em que há uma inflexão na orbe das influências tutelares em Portugal e o paradigma deixa de ser francês para passar a ser anglo-saxónico, uma deslocação que já vinha de trás (com Rui Cinatti e Jorge de Sena, por exemplo). A poesia deixa de ter a metáfora como acendalha ideal, preferindo o lume mais brando da metonímia, e retorna o discursivo e o narrativo. Isto para sermos muito simples, que isto é um blog e não uma tese académica.
No entanto, desde o princípio, e em nuances que posteriormente se acentuaram, que a poesia de Moura Pereira conheceu a tensão entre a palavra-como-problema ou a palavra como veículo de um referente. O Moura Pereira sempre acreditou no real, contudo, este nunca foi a matéria exterior que nos rodeia, apartada de nós, para abarcar também o modo como a nossa ambivalência de sujeitos submetidos às vagas alterosas da comunicação o traduz. E então, gradualmente, o jogo performativo do verbo foi-se infiltrando na poesia de Moura Pereira, paralelamente ao modo como nela foi emergindo a oralidade e (di-lo Paulo Henriques Britto sobre Elizabeth Bishop) «os aspectos complementares da existência física: o trágico e o ridículo».
É um desafio com grandes riscos e resultados desnivelados, mas quando acerta e extraordinário. Leiamos este poema:
« The art of losing isn’t hard to master.
Elizabeth Bishop
Deparou-se então a velha
e típica folha em branco. Eu era
como aquelas pessoas que acham
que as doenças más só acontecem
aos outros. Aproveitei a folha
em branco para sugerir em que
se tinha tornado a minha vida.
Mais vulgar não pode haver,
e ao mesmo tempo que sussurrava
para mim próprio a toda a hora
constatação tão evidente, também
via na folha um encanto
irresistível, assim como um fim
a atingir, uma espécie de corpo
que viesse do nada que é isto
tudo, um adormecimento
de olhos abertos, o espanto
pacífico de não compreender
realmente nada. Guarda
as tuas coisas mais valiosas, ainda
tas roubo para ir vendê-las, mal,
claro, porque não sei negociar
coisas valiosas. Além do mais,
a folha branca está escrita, alguém
lá colocou frases dispersas,
a água e limão. Quando lhe bate
a luz do dia, estamos quase
em Junho, toda a gente sabe
do que estou a falar, revela-se
tudo, tudo, menos a assinatura.» (pág. 64)
O poema eclode numa espécie de paráfrase à epígrafe de Bishop que, por sua vez, funciona como o seu primeiro comentário.
De facto, a gratuidade da poesia só é aceitável como perda, como doença má: uma folha branca que se drena. E drena o quê? A vulgaridade da vida, no impulso de lhe restituir um sentido arrancado à derrocada dos cenários. Na vã miragem de descortinar «uma espécie de corpo/ que viesse do nada que é isto tudo». Este último verso, uma reminiscência dum célebre verso de Pessoa, na Mensagem, alude a esse dispositivo compulsório que emaranha o sonho no seu modo operatório, o mito no nada que o segrega.
Daí que o poema, brincalhão, nos reporte, malgré tout, no final, ao mito da inspiração –– pois, contra todo o cepticismo ou discursos desconstrutores, a prática do poema engrena no poeta um fluxo que o engolfa numa espécie de inteligência-não-circunscrita que desde os românticos recebeu essa designação equívoca. Donde chega aquela lufada? É apenas concomitante? Ou quem a assinou, a água e limão? E o que fica se, mesmo com o enigma da assinatura por resolver, verificamos que não passa de água e limão?
Algo fica («de tudo fica um resto», dizia o Drummond), como se lê noutro poema:
«Romper com tudo, mas deixar
uns fios soltos, com esses fios fazer
uma teia, armar uma rede, pôr-se
aos saltos numa rede, como um miúdo.» (pág. 82)
Atrás falei em fluxo e não por acaso. Será no poema seguinte – um dos nucleares deste livro – que se fará a crónica do “descalabro” que faltava ao anterior e se falará da corrente de que o poeta é apenas um elo. Leia-se o poema:
«Dobrado sobre o computador, com a cabeça
entre as mãos, como dobrado antes
sobre máquina de escrever, com a cabeça
entre as mãos. Pôr isto numa moldura,
pintar isto, apanhar de toda uma vida
uma fixação neutra, um corpo, não
se lhe vêem os olhos, nem é preciso, animal
que fala nos seus dons de pressentimento
mortal, doido. Agitado, borrando-se
de medo, como se alguém o fosse degolar,
a cabeça à volta, cheia de um êxtase
modesto e popular, pobre velhinho,
magrinho, triste pau entesado. São coisas
transportadas em ilusão (espuma há,
a sair da boca?), canções batidas com ferros,
boa companhia o colchão dorido, manchado
de nicotina e esperma, outro mundo verias
nas estrelas, nos vermes, nas veias
a rebentar em sono solto. Se alguém
compreendesse e assobiasse para o lado,
deixando aquele homem à deriva, aquela
cara, ali enterrada nas teclas de um computador,
adquiria de repente uma beleza extraordinária.»(pág.65)
Logo desde o primeiro verso, erige-se o poema (auto-)reflexivo como uma homenagem (a Herberto Helder, autor de A Cabeça Entre as Mãos), e simultaneamente como um retrato dos efeitos da ilusão que lacera o corpo do poeta sob consentimento. Porque a poesia é um consentimento mútuo mas que só o poeta paga.
À promessa do Pneuma órfico, Moura Pereira, humano, demasiado humano e vincado pela ironia de também de chamar Helder justapõe uma simetria negativa, e, paralelamente à encantação, ao enredamento mágico de Herberto, lembra a aporia, o cansaço, a gangrena.
Não o faz no gesto de se situar contra, desenganem-se, a sua voz está afirmadíssima e o poeta não precisa de se entregar à desminagem, mas no movimento de se posicionar dialecticamente com a equidistância que nasce da maturidade, simplesmente porque Moura Pereira terá intuído que o seu já não é o tempo duma formulação mais romântica e heróica, mas antes o duma arte relacional, que aproxima e não exclui.
Corolariamente, Moura Pereira desentroniza em si o mito alheio para seguir a sua narrativa, o seu ritmo, pois em todos há um momento para afirmar “Eu não sigo o exemplo dos mais antigos: busco o mesmo que buscavam”. O que pressupõe a autonomia de uma resposta (ou de uma pergunta) com uma janela diferente.
Contudo, com a vivacidade de quem integra os opostos e não os teme, este diálogo de um homem a sós com a alhada em que se meteu - o tremendo inconveniente de ter nascido poeta e o render dos seus mitos – cede num poema seguinte ao sortilégio do que “denuncia”:
Começou a caminhar na direcção
do nada, o nada ficava sempre a direito
e por isso não havia que enganar.
(…)
Agora pára, de repente pára, nós
nunca saberemos se viu no fundo
da linha de luz a morte ou se
sentiu um hipotético recomeço. (pág.69)
No fundo, Moura Pereira Moura Pereira sente-se como aquele famoso peixe que, tendo ouvido falar da água, tinha decidido num grande impulso místico consagrar a sua vida a procurá-la.
A diferença é que é um peixe consciente da ilusão e ciente de, que apesar de tudo (sendo as coisas o que são), não há outro caminho: a insondável senda que a poesia abre na floresta do tangível.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarSegundo o HMP não havia qualquer prémio pecuniário, mas sim um 'reconhecimento público'. Claro - digo eu - que os 'animadores' de serviço na gala foram contratados a peso de ouro. Aproveitaram o trabalho solitário dos escritores para realizar uma grande produção, na qual os escritores seriam meras peças decorativas. É assim que Portugal trata os seus escritores. Sei que o HMP não participaria numa farsa destas.
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