sexta-feira, 31 de agosto de 2012

ESTACA ZERO

                                                          a onda, de Victor Hugo

À procura de um texto encontro um documento que julgava perdido, onde havia compilado uma boa tarde das entradas de um diário irregularíssimo que comecei a escrever em 2005, desde que cheguei a Moçambique. Este documento, que se chama Estaca Zero, reune apontamentos até Janeiro de 2008. Não tenho a certeza se as datas conferem, teria de confirmar nos cadernos. Aqui deixo as últimas páginas desse documento, com 110 páginas.

1 de Julho de 2007
Será hoje publicado no Expresso o texto polémico sobre recepção de poesia que enviei há umas três semanas:

 « SOMBRAS DA MERIDIANA CLAREZA»

Um poeta faz 25 anos de edição e realiza uma antologia pessoal. Profusa, como de resto a sua obra, expõe linhas de força, núcleos temáticos, plasmados com vitalidade, fôlego e um ecletismo de processos descoroçoante. São 25 anos de trabalho, de uma dedicação exclusiva. Não importa aqui situar o poeta em qualquer ranking – trata-se aliás de um poeta que se exprime compulsivamente, por necessidade interior. O que interessa é a probidade, o fazer operário, a incansável entrega a um labor. Chega um crítico (que ainda por cima é poeta) e sob a pressão do espaço e do tempo faz um fresco ligeirinho.
O crítico parece dizer bem, mas manifesta várias desatenções e algum desconforto, ilustrado em pequenas farpas cirúrgicas, aqui e ali, que fazem pensar se o crítico não escreveu apesar de si próprio, arreliado pela persistência do autor, um moscardo flamejante que zumbe e desassossega.

Falo de Amadeu Baptista, que saiu com uma antologia pessoal de 260 páginas, Antecedentes Criminais / Quasi, 2007, e da crítica que lhe fez Eduardo Pitta no Público, no dia 8.
Vamos aos factos. Escreve Pitta: «escrevendo sobre Negrume, de 2006 – livro que esta antologia recupera na íntegra -, um ensaísta exigente como Luís Adriano Carlos  sublinhou a “dilaceração tumultuoso da consciência face à contradição quotidiana de quem habita níveis existenciais não comunicantes”». Não sei o que pensará a exigência de Luís Adriano Carlos face ao deslocamento que o seu excerto sofreu do prefácio de Poesia Digital para uma suposta recensão a Negrume que nunca escreveu, mas os 25 anos do poeta pediam um bocadinho mais de rigor e não este artifício de escriba pressionado pelo tempo, pelo espaço, pelo seu imago.
Adiante, escreve Pitta: «Nenhuma ambiguidade perturba o discurso do poeta, que aconselho com proveito aos arautos do “real absoluto”. Por falar em real convém lembrar que uma das formas de que Amadeu Baptista se serve para o pôr em pauta tem que ver com enunciados de natureza sexual explícita, embora a parcimónia da actual recolha pareça desmentir a asserção. Do meu ponto de vista, livros como a Noite Ismaelita (2000) e A Construção de Nínive (2001) estão insuficientemente representados, por oposição a Arte do Regresso (1999) e Paixão (2003) mas uma antologia pessoal é o lugar por excelência da idiossincrasia, e seria fútil insistir na perspectiva do crítico». E seria fútil exactamente por reveladora das idiossincrasias do crítico, pois que acrescentar se A Construção de Nínive é publicado em Antecedentes Criminais na íntegra? Sentiu o Pitta falta de algum coito? Por outro lado, o texto dá a impressão de que A Noite Ismaelita é outro texto recheado de kamasutra. Ora, nos antípodas, é um livro quase místico de inspiração sufi e onde ao contrário do anterior não há alusão ao golpe e contra-golpe do sexo. 
Ademais, será legítimo fixar para um poeta tão plural uma imagem redutora e distorcida? O poeta adora sexo (e quem não?) e declara-o com à vontade e persuasão retórica. Usando a mesma veemência com que navega na infância, numa escrita contemplativa, na religiosidade, na pintura, na música: experiência estética de que dá amplo testemunho. A sexualidade explícita - já que estamos a falar em medidas - é uma parte ínfima da sua obra, dominada isso sim pelo erotismo, por uma sensualidade a que não se furta nem o seu (irregular) pendor místico. As coisas (o sagrado e o profano) estão nele tão interligadas que inclusive o poema que dá título a A Construção de Nínive (o tal da sexualidade “desenfreada”) é colocado (nesta antologia sem separadores, cortinas ou títulos de livros, como assinala Pitta) a anteceder os poemas de Paixão, um livro de inspiração bíblica, de modo a que possamos sentir a sua ressonância salomónica. Amadeu Baptista dá as chaves. O que não é habitual é um poeta manifestar-se num espectro tão amplo e isso, admite Pitta, chateia à «poesia de sabor único» (Pessoa) que hoje agrega tantos militantes.
Voltando a Pitta, lê-se: «Se tivermos de escolher uma palavra para caracterizar a obra de Amadeu Baptista, essa palavra seria catarse. Isso explicará o desacerto da recepção crítica, por oposição ao sucesso de obras “lisas”, isto é, não problemáticas.  Antecedentes Criminais prova que o ónus é equivalente à aspereza do discurso». Apesar do acerto de contrapor ao sucesso momentâneo da lisura de alguns a injustiça do relativo silêncio (comparativamente) a que a obra de Amadeu Baptista tem estado sujeita, pois dá muito mais trabalho a perspectivar, este parágrafo enferma de equívocos e lugares-comuns.
Primeiro, a catarse. Não se deve menosprezar a inteligência dos autores. Amadeu Baptista compreendeu cedo que a catarse é impossível ou é de um inacabamento que  enquistou na aporia. A sua é, sim, uma poesia pejada de pathos, mas não esqueçamos o papel de uma poderosa estratégia de fingimento que neste poeta propende a uma nunca referida pulsão dramatúrgica. Com outra propriedade escreveu Baptista-Bastos (um não poeta) sobre a antologia, quando a apresentou na Fnac: «O poeta fala de si para se aproximar das emoções do outro (...) Não é porém uma poética do testemunho, mas sim, a definição, muito singular, da nossa posição existencial (...) no seu bojo, contém-se uma subtil convocação da experiência – e da experiência tornada consciência.» O que se amplifica na seguinte advertência de Deleuze «Escrever não é contar as lembranças, as viagens, os amores, os lutos, sonhos e fantasmas. Ninguém escreve com as suas neuroses. (...) A literatura só se afirma se descobre sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal.» Daí que Amadeu consiga ser blasfemo e perseguir o sublime, consiga ser metafórico e descritivo, ser subtil e ser directo, capaz de moldar-se ao soneto e de expandir-se no poema longo: a sua experiência de escrita trasladou o vivido para a orbe de um impessoal, e agora joga com os géneros. Quanto à sua ‘neurose’ é a mesma que demanda Bernardo Soares quando aspira a “ver o polícia como Deus o vê” – lugar onde a catarse é de há muito uma categoria abandonada. Pode ser sido até pretexto mas já não é de todo o seu telos.
Segundo, não há em Amadeu Baptista aspereza de discurso, há é temas que exigem uma linguagem menos pura, menos poética – ainda que pareça paradoxal, às vezes o não-poético é o mais poético.
Por fim, uma afirmação com ar de ditame, sobre a propensão de Amadeu para o poema longo: «Rosto Soberano (...) dá a medida da especial apetência do autor pelo discurso torrencial, com os riscos correlatos da metaforização, da acumulação de materiais e do eco retórico que uma e outra produzem. Prefiro o registo vigiado dos sonetos, mais conformes a uma prosódia segura». Não interessava antes saber se, corridos os riscos correlatos, o autor leva a tarefa a bom porto, em vez da preferência do crítico? Os textos longos funcionam e resultam, são desenvoltos, arejados, mantêm a tensão da escrita, ou não? O que é uma prosódia segura? Mede-se tal pelo menor quociente de riscos? Se Amadeu demonstra ser capaz de pequenas escaramuças (a prosódia segura), que pode impedi-lo de empreender grandes batalhas? O sentido de medida do crítico? Segura no mesmo sentido em que uma mãe galinha diz ao seu filho que não deve sair à rua? Será um crime, adquirida a técnica, preferir os riscos ao capitoné da prosódia? A poesia deve ser analisada a partir do que é e expõe ou a partir de um suposto dever ser e de moldes pré-formatados? Tenho de aceitar Ungaretti contra Pere Gimferrer? Larking contra Ted Hughes? O fito é reduzir, em vez da abertura? Ora, um poeta conciso e breve como Eduardo Pitta devia saber que só tem fôlego quem pode.
Pitta saberá que eu sei que escrever para os jornais leva a precipitações (e nos jornais pensa-se que se explica a física quântica nos mesmos caracteres com que se anuncia um estrangulamento por ciúmes na Rua do Norte), a confiar-se demasiado na opinião (primeiro passo para a idiotia, pecado que foi também o meu tantas vezes), mas como poeta compreenderá que uma obra que levou 25 anos a erguer não devia ser observada com olhos de sono.»

Valerá a pena, a 10 000 km de distância, abrir o debate no seio da teia instalada para a recepção e o condicionamento da poesia portuguesa actual?
Provavelmente é um gesto suicidário, sobretudo quando se acabou de lançar um livro que espera por leitores, mas, neste exílio, percebo que não posso consentir que me coarctem os direitos. E estes passam pelas virtualidades de uma prática poética e de uma leitura das suas respectivas densidades algo arredias ao que se tornou dominante em Portugal. Instalou-se uma preguiça mental e uma estreiteza de horizontes que paulatinamente afeiçoam o leitor a formatos pré-definidos de pensar e de acomodar a expressão. O fascismo, diria até. A grande questão está contida nesta formulação de Salah Stétié: «O testemunho na circunstância, digo: na poesia, não é feito senão de palavras e é esta mesma a sua principal fragilidade, aos olhos daqueles, os mais numerosos, para quem a palavra é uma forma melhorada do nada. Para os outros, entre os quais alguns poetas que nós colocamos no topo da nossa estima, a palavra é uma forma, penosamente diminuída, da totalidade pressentida». (L’interdit, 93, José Corti)
Para quem considera a palavra «uma forma melhorada do nada» a poesia aparenta-se à decoração ou, nos casos mais ‘sérios’, a uma ourivesaria com um ofício expresso em medidas mensuráveis. Daí que tão facilmente se caia na tentação de definir parâmetros. Tudo em nome de um retorno ao “realismo”.
Depois não me admito como poeta “a quem se consente”. Só a minha solidão e a sua zona de laminação me guiam: não porque entenda a arte e a poesia como espaço sacrificial mas porque no limite há uma longitude de destino que me desobstrui – dom que é gratuito mas exige um preço a que não quero nem posso furtar-me. Sob risco de tudo se tornar decoro e venalidade.

 
14 de Julho
Claro que ninguém responde ao meu texto endereçado ao Pitta. Nem o próprio.
“J´habite l’exterieur d’un anneau”, Paul Claudel: tão próximo de âne.

 
15 de Julho
Extraído da Autobiografia, de Zao Wou-Ki, grande pintor chino-francês, presença determinante da Escola de Paris, dos anos 50 e 60, e amigo de Michaux: «(sobre a sua infância)
...os generais decapitavam e colocavam as cabeças à entrada da cidade – cabeças que pintavam metade em verde,a outra em vermelho. Como todas as crianças qua saíam da escola, empurradas pela multidão ao primeiro tumulto, eu assisti a uma execução. Não se podia recuar, era-se obrigado a olhar. Adormeci durante muito tempo, aterrorizado pela visão dessa cabeça rolando sobre o solo, cujo sangue espirrava de todos os lados.
Esta época foi terível. Havia suicídios entre os mais pobres, que não conseguiam sobreviver e vendiam os seus filhos no caminho da escola. Não eram incomuns os enforcados...»
Depois disto nunca se fará uma pintura realista. Seria absolutamente desumano.

 
16 de Julho
Quiasma: a acrescentar ao meu catálogo de palavras que usarei invariavelmente a contrapêlo. Tão próximo quiasma de quiabo.

 
17 de Julho
A falta de electricidade é que cumpliciou afinal a vontade dos medíocres à inveja de alguns, no caso da condenção de Sócrates. A deliberação ocorreu em duas sessões. Na primeira, segundo Xenofante – citado por Luciano Canfora no notável Um Ofício Perigoso/ A Vida Quotidiana dos Flósofos Gregos – “parecera prevalecer o bom senso; mas o grupo que batalhava pela condenação soube evitar uma decisão imediata, dizendo que naquela noite não se podia votar porque não havia luz suficiente para que se distinguissem as mãos erguidas dos votantes. Entretanto trabalharam da melhor maneira que puderam para influenciar a sessão seguinte com alguns lances de teatro”.
Concluindo, Sócrates que na distorção da dialéctica – Sócrates, em todos os diálogos, é quem determina as regras da discussão, vantagem que não se deve menorizar – invariavelmente comandava a luminotecnia foi “comido” pelas sombras chinesas. 

 
18 de Julho.
Pessoa morreu aos 47 anos, roído como as borrachas que a minha filha entrega desleixadamente ao consolo do cachorro, e eu sinto que renasço aos 48, como se pela primeira vez na vida reunisse as cartas necessárias a um poke de ases. Quanto tempo me deixará a vida progredir neste estado de exaltação nupcial? Algumas doenças perseguem-me e os alicates do inexorável nunca se fecham. Mas talvez seja possível diferir, o intervalo necessário à decantação deste meu novo estado numa visão. Não muito, apenas o tempo necessário – se me é permitido pedir.
 

20 de Julho de 2007
Bilene, um espaço paradisíaco para ler, escrever, acabar um livro. Belo jardim à Simenon, que se espraia pelos fundos da casa em que me coube passar uma semana de repouso, depois da violência de ter tido de escrever uma série de ficção para televisão de sete episódios em 15 dias (enfim, só metade, o que convulsionei do argumento já existente, mas a mudança foi  absolutamente geológica o que exigiu uma reescrita total).
Leio de Paz: «O presente é perpétuo/ Os montes são de osso e são de neve/ estão aqui desde o princípio/ O vento acaba de nascer/ sem idade/ como a luz e como o pó (...)». Mas será assim? Nascerá o vento a cada instante, sem antecedência nem sombra platónica? Nietzsche gostaria.
Variante de Paz:
na tua cama/ éramos três:/ eu tu e o vento.  

 
25 de Agosto de 2007
Simpático convite para botar faladura num congresso internacional sobre a Zambrano. Será que isso permitirá um salto a Lisboa? Pensando meia-hora sobre o título da comunicação e o tema da mesma, a minha intuição chega a estas prerrogativas: título, Zambrano: as imaginações do oráculo; tema: «Na coincidência entre ser e linguagem entre acção e devir, receptáculo e reminiscência, nesse para-além da linguagem que suplanta as representações, e que tem nos «sonhos monoeidéticos» o seu operador, Zambrano desenha uma trajectória que a aproxima da imaginação criadora de Ibn´Arabi – à luz da exegse de Henry Corbin – e da “não-dualidade” do  Advanta. Esboçar estes paralelos com algum rigor e deixar entrevistas as suas consequências é o movimento que nos motiva.»
Pode ser este o artigo que me faltava para fechar o livro de ensaios?

 
29 de Agosto
Conferência de Fotocópias: lê-se num letreiro num notário de Maputo.

 
19 de Setembro
Afinal, reza a última moda entre os paleontólogos, os dinossauros não buliam com os refreados nervos dos mamíferos (os placentários, segundo o artigo). Ninguém empatava ninguém naqueles tempos coruscantes, de pavio tão curto. Há hoje indícios, asseguram, de que o que aprenderamos sobre a incompatibilidade entre dinos e mamíferos é falso. Os chineses apresentam inclusive fósseis de um mamífero do Cretáceo que se alimentava de dinossauros, o Repenomanus. Convenhamos que é nome que o desvelo de uma vovó dinossaúrica pode apontar como Papão aos netos. E sei finalmente de onde extraiu Shakespeare o espírito peçonhento de Iago, o qual, segundo as novas correntes paleontológicas podia perfeitamente cuidar da higiene dentária dos T.Rex, seus irmãos na floração do sangue.
No mesmo jornal, leio:
«Dois minisubmarinos russos fizeram domingo último uma jornada inédita, ao mergulhar até uma profundidade de 1,3 quilómetros sob o gelo do Oceano Galacial Ártico, como preparativo para uma expedição rumo ao leito do mar, nunca antes visitado pelo Homem.
‘Esta foi a primeira vez que um submersível foi usado por baixo da camada de gelo do Ártico e (o aparelho) provou ser capaz de fazer isso’, disse Anatoly Segalevich, piloto de um dos minisubmarinos que levam apenas um tripulamte cada um.»
O silêncio que enfrentará um pequeno submarino sob as calotes de gelo é inimaginável, capaz de remover as coordenadas de uma mente, o seu precário equilíbrio. Nesses limites, os monstros da interioridade abissal galgam facilmente os picos da consciência mais moderada, da mesma forma que a ausência de gravidade leva a que os astronautas percam massa óssea.
Trabalhos danados a que os poetas hoje se furtam, pobres antenas de uma civilização encaramelizada que, dizia Michaux, inventou jogos e desportos onde não se arrisca nada.

 
26 de Dezembro
Voltei a fazer merda e a não telefonar às minhas filhas no Natal. Elas ficam sempre tão magoadas com isto. E eu não consigo deixar de ser miseravelmente egoísta e a não querer superar (por elas) o pânico de me encontrar convulso ao telefone quando lhes ouvisse a voz e soubesse que há pouco a dizer porque a distância, iniludível, vai roendo os códigos da intimidade.  
Que cobardia, somos sempre indignos para alguém.
 

27 de Dezembro
Diziam os chineses, escreve Kenneth White, que para “agarrar” a verdadeira poesia é preciso encontrar-se face a face com um homem vivendo a três mil quilómetros de nós.
Eu meti-me a dez mil. E se reencontrei a poesia, temo, por vezes perder a memória, atolar-me no desprendimento que convoquei.

 
29 de Dezembro
Na esplanada da Colmeia, a tasca onde sempre abanco depois de umas horas de aulas, ouço uma discussão de jovens sobre filosofia – coisa raríssima nestes lugares – e um deles avança com um argumento devastador para firmar a (palavras dele) ‘superioridade dos filósofos’: «nunca vi num jornal o anúncio de um filósofo a auto-publicitar-se».
O que gostaria de ter à mão o Banquete, de Platão, para lhe ler esta passagem: «Aristodemo escutou-me que encontrara Sócrates quando este saíra do banho, calçando umas sandálias, o que não era seu costume, e perguntou-lhe onde ia, assim tão bem arranjado».
O que gostaria de ter à mão o Steiner para lhe ler a sua sugestão de que tudo o que importa na vida não se traduz em valores cambiáveis.
Ainda bem que não tinha o arsenal comigo senão teria tido a tentação de me meter na conversa e de dar gasolina à combustão daquele pobre rapaz. Devemos ser muito prudentes de modo a não induzir ninguém a abraçar a nossa escolha: a de um perdulário que desbarata a sua inteligência na pobreza.

 

COISAS SIMPLES


Dada a aula, faço horas no café para que sejam doze, hora em que é ligado o elevador do meu prédio. A dado momento pergunto as horas à empregada, que tem uma enorme cebola no pulso. Surpreendentemente ela enfia a mão no decote e saca um fio, onde se pendura um relógio pequenino – no qual vê as horas.
Escuso de lhe perguntar por que raio usa uma cebola de quilo ao pulso: é um adereço que lhe confere status. O relógio está com certeza avariado ou por dentro já nem tem as cintilantes tripas dentadas do costume, mas ela julga fazer um figurão com ele – sobretudo no chapa; aí, entre apertos, ela imagina que lho invejam e que alguém, em vão, congemina mil planos para o roubar.
É sempre então que ela leva a cebola ao ouvido e imagina: tic, tac, tica, tac… Coisas simples.
 

O Nuno Dempser teve a gentileza de escrever um magnífico texto sobre o meu Ficas a Dever-me uma Noite de Arromba. Pode ler-se aqui. Coisas simples. 

Entreguei as provas de Para Que Servem Elevadores, e outras indagações literárias na editora. O livro agora vai para a tipografia.
Vai tarde. Gostaria muito que o Augusto de Carvalho o tivesse lido, mas ele cometeu a desfaçatez de nos deixar antes, há uma semana.
Já conhecia o Augusto de Lisboa, do diário Europeu, em que colaborei e onde ele era o director. Há dois traços que gostaria de destacar no Augusto: a sua disponibilidade humana e a sua postura equidistante em relação a moralices.
Lembro-me como foi criticado no Europeu por ter ido buscar uma série de jornalistas considerados irrecuperáveis, como o Luís Carlos Patraquim ou o Eduardo Guerra Carneiro, e a coragem com que rodeado de “gente perdida” fez um magnífico jornal.
Nestes meus anos de Moçambique, na Politécnica, onde trabalhámos juntos cinco anos vi-o sempre tomar posições incómodas e ser de uma grande frontalidade, no apuro da racionalidade dos processos. Honra seja feita a Lourenço do Rosário que sempre ouviu e respeitou essa autonomia do Augusto.
Era para muitos uma figura controversa, devido ao jornal Domingo. Incompreensões muito próprias a um país que vive ainda a preto e branco. As dialécticas do Augusto eram de outra natureza, mais complexas. E o seu compromisso era com o país que ele havia abraçado. Por isso conseguia a um tempo estar integrado e ser crítico, numa atitude de uma invariável franqueza. Eu assisti a inúmeras manifestações desta natureza. Muitas vezes com uma ironia (o Augusto gostava de rir) pouco captável para muitos. Quem tivesse assistido como eu deixaria de ter dúvidas.
E no essencial, o que mais me interessa, era um homem de afectos, que traduzia em actos. Não fomos íntimos, mas estimávamo-nos e em algumas situações em que estive enrascado o Augusto valeu-me, desinteressadamente; apoio que não encontrei em muitos que se diziam meus amigos. Coisas simples.
O Augusto era de uma grande qualidade humana. Estar-lhe-ei sempre grato.
A ironia é que nas últimas semanas, eu e o jornalista Rui Trindade, congeminámos fazer com o Augusto um livro de entrevistas. Porque o Augusto era um poço e um excelente contador de histórias, com uma memória magnífica e uma vida repleta de encontros e de bastidores. Basta pensar que em Portugal, como director do Expresso, fez cair o primeiro- ministro Francisco Pinto Balsemão, que era seu patrão; ou nos seus encontros com Samora, de que me fez deliciosos relatos. O Rui faria a entrevista, eu assista-o e tentaria produzir o livro. Estávamos já em atraso.
A última vez que nos vimos, há mês e meio, ele deu-me boleia e falamos do encanto de termos filhas pequenas. Agora mesmo irrompeu a Luna pelo quarto e anunciou deliciada: pai, fiz o meu primeiro avião que voa – e atirou sobre a cama o seu avião de papel. Pude confirmá-la: boa filha, já és engenheira! Ele contou-me como a filha agora queria ser ela a interpelar os polícias de trânsito quando lhe faziam parar o carro e então, logo que o Augusto abria a janela, ela comentava: “Sr. Polícia, o problema com a polícia é que os srs. agentes são muito magrinhos, e assim não podem perseguir os verdadeiros maus…” Vê-se que a menina herdou o particular humor do pai.
Quando sair o livro só me resta ler o livro em voz alta, para ver se o Augusto ouve. Entretanto Augusto, um abraço.

 

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

ARRUMOS E DESARRUMOS



Escrevo um poema (uma oração) para a exposição de pintura de um amigo peruano que só pinta cobras e ao enviar-lhe o texto por mail identifiquei assim a coisa: CABRITA/COBRITAS, dando-me depois conta da homofonia e do diabólico parentesco que ali gizei. Confesso que fiquei cinco minutos pensativo. Para mim, que acredito no destino das palavras, esta coincidência não me parece uma Graça.
 
Mas como tudo tem um lado de sombra e outro luminoso, reencontrei duas amigas de infância, duas irmãs, por via do FB. As manas Graça, duas garças que quebram a monotonia de qualquer céu. Há quarenta anos que não nos víamos. Uma coisa impensável há dez anos atrás.
Estão intactas (são como dois vasos fenícios encontrados nos gelos dos Alpes), ao contrário de mim que sofri várias arrombos numa fisionomia que me entretive a devastar.
Escreve-me uma delas: «Também te felicito pela tua carreira. Mesmo antes de me teres enviado esta mensagem consultei o teu perfil e pesquisei referências sobre ti. Encontrei alguns livros e algumas coisas que escreveste. Escreves muito bem, embora por vezes algo para além da minha mente mais familiarizada com as matemáticas e a informática.
Não me espanta o teu percurso, não eras um rapaz vulgar (nem a tua irmã) pelo que recordo. Destacavas-te pela inteligência e singularidade crítica.»
A que me faz assim o encómio é docente investigadora em engenharia, no Técnico. A outra não sei, ainda mas também me parece muito bem. Ela desconhece a particular inutilidade dessas minhas famigeradas inteligência e singularidade crítica e como elas só me têm trazido dissabores, em todos os domínios da minha vida, a começar pela total desadequação para “as artes de anzol” do amor, ilustrada pela inabilidade que me fez engolir inteira a paixoneta que tive pela irmã e que me caiu como uma colher de prata no estômago, uma colher virgem de açucares e vitaminas.
Mas o que me interessa agora referir é que éramos todos pobres, que os nossos pais faziam imensos sacrifícios para nos proporcionarem o mínimo de condições que nos permitisse não adivinhar a que ponto éramos pobres, e acabámos todos leitores e com uma boa formação, a desenvolver actividades e pertinências nas áreas por nós escolhidas, o que nos tornou, à maneira de cada um, cidadãos activos. O nosso bairro de infância era tão problemático que na adolescência e na entrada para a idade adulta dezasseis dos miúdos da zona morreram, vítimas de overdoses e de Sida. Destapei um pouco disto no meu livro de contos, As Cinzas de Maria Callas.  

Ontem estive numa reunião na Escola de Teatro, uma reunião de professores para ouvirmos as reclamações dos alunos. Eles também são pobres, tão pobres como nós éramos, mas algo nos distingue e que tem a ver com o tempo em que se vive: estes jovens têm um enorme problema de escala. Nós éramos mais cientes da vastidão da nossa ignorância e do que tínhamos de trabalhar para superar as dificuldades, o que nos dava humildade e incutia a curiosidade. Estes vivem na era da comunicação e confundem informação com saber, estando confortavelmente sentados sobre as suas suficiências, sem o menor sinal de autorreflexão.

Na semana passada tive uma discussão na aula em torno de Shakespeare. Um dos alunos teimava comigo que Shakespeare devia ser pouco conhecido no mundo, ao contrário do que eu dizia, porque não era conhecido em Nampula, a cidade em que ele habitava até vir para Maputo estudar na universidade – e a autoridade do professor não lhe bastava para aceitar a informação.
Outro (outra) dizia-me que o que estava por trás do sucesso de Shakespeare era apenas uma questão de cunhas e de marketing e que qualquer um lá chegaria, em havendo sorte. Logo, para quê estudá-lo?
E o trágico é que nenhum deles – num curso de teatro - está disposto a admitir que a paixão e a leitura têm de andar a par para a progressão do crescimento, naquilo que nos motiva; estão ali única e exclusivamente para fazer um curso com o menor esforço possível – a vida é outra coisa. Imagino-os daqui a 30 anos a encontrarem-se casualmente no Facebook: estarão todos na mesma cepa torta e nenhum deles terá em casa um volume com as obras completas de Shakespeare, apesar dos vários Land Rovers na garagem e de uma carreira como apresentadores de “reality shows”. O mundo é que estará mais repleto de “feios, porcos e maus”.  

Aquilo que para mim e as minhas amigas foi um acicate, um estímulo, para interiorizarmos o conhecimento do mundo de modo a livrar-nos das carências que implicitamente sentíamos à nossa volta, para eles não existe porque têm a informação à mão no Black Berry e tudo lhes vem do exterior. É uma lamentável armadilha.

 
Descobri o método para avançar sem dúvidas nem receios na escrita do meu romance sobre a infância de Pessoa. Mais uma vez, lendo poesia – essa caixa de bugigangas reluzentes e inúteis.


Vou-me entregar a uma manhã de sáurio, indolente, com poucas tarefas: pôr as miúdas na piscina e entregar na editora as provas do meu livro «Para que servem os elevadores – e outras indagações literárias», um livro de pequenos ensaios sobre literatura. O título chegou-me de uma evidência que só conhece quem habita nos trópicos: mais de metade dos elevadores dos prédios ou não funciona de todo – sendo um objecto de decoração, às vezes um contentor de lixo - ou está condicionado a horário. É o caso do meu, que só funciona das 12 às 14h30, e das 17 às 23h. O resto é a penates, nove andares no meu caso. Aos 53 é um bico-de-obra para tanta inteligência e singularidade crítica. Estarei ainda a tempo de me concentrar no fito de enriquecer?

domingo, 26 de agosto de 2012

CARTA EM VERSO DE PÉ-QUEBRADO PARA NEIL ARMSTRONG



O que perturba na tua morte, Neil Armstrong, tão indecifrável

para mim como as estrias nas cascas das tartarugas,

onde alguns leem o futuro (milénios de sageza não me trazem

consolo ao elitismo dos números primos)

é que me havia esquecido de todo daquela tarde.


Tinha dez anos quando pisaste a lua, já 
havia trocado Enid Blyton por Mark Twain
e estava ofendido por nenhuma rapariga ter ousado reparar  
na excelência do meu espírito, quando saíste da nave
e olhando o grão azul da tua origem

deste conta de como eu era insignificante,

e o teu passado idem - condensado nos olhos

que te cresciam de pasmo com o peso da memória

que agora te parecia vã, debaixo daquele fato de astronauta.

 
Mas a perplexidade que te devorava (o engodo
da vaidade lambe-nos os cascos de bode

até nos supormos deuses) traduzia-se ainda

nos passos de um titã (à sua medida, já electrónico)

a sentar-se impante no banco de coral

que conectava a mente de milhões de crianças ansiosas,

enfermiças e tímidas, mas exultantes como só os rouxinóis

japoneses depois de um tsunami,

e desfazia a matéria dos cristais

transformando-os em olhos de pavão.

 
Fomos milhões de aves naquela noite
em que uma tv a preto e branco nos pôs a alma

a cantar a capella (não havia ainda código de barras).

Não sei se mais alguma vez se repetiu

uma congruência assim, como a da chinesa

que nessa mesma tarde, encontrou Miller

em Big Sur e ouviu os sinos de Veneza,

não se sei alguma vez se repetiu, se era mesmo

possível repetir-se uma metamorfose de Ovídio,

em directo (na RTP de Salazar, nunca mais).

Mas sinto-me tramado desde então.

 
Ter-te-á sido fácil a vida ou derrapou
no próprio acto de teres medido do espaço a pequenez

do Everest? Desconheço, se o mais se te tornou insosso,

ou se depois de pisadas aquelas crateras mais secas

que alguns sonetos de Quevedo e banhadas

por uma escuridão que faria descuidar Borges e Homero,
desataste a parar o carro, inopinadamente,
à beira da auto-estrada para veres como as margaridas
rebentavam, o mais pequeno rumor de miosótis,
numa paixão pelo insignificante que cedo enervou os teus,
impacientes por outro tipo de bênçãos.

Escrevo isto alheado da tua história,
dos seus inconcretos domínios, se te derramaste
em alcoolemia ou em croupier num casino,
se a Nasa te converteu em maître de conferências
ou se netos já tens à beira do divórcio
– desconheço, meu mestre, tudo sobre a serpente
que um dia me encantou em pavão.

E guardo unicamente como certo
que a tua última gota embateu no chão
da mais rala realidade e que, para além de te desejar
o melhor de três mundos (apesar
de não me teres soprado qualquer dica no exame
para engenharia), sou um dos teus últimos salpicos.

A SETA PARA O DIA: COMO TORNAR O CÉU VIOLETA

BARBARA YVELIN: O CÉU VIOLETA
 
É domingo. O azul do céu desta manhã não tropeça em qualquer fiapo branco, tremendo céu tropical onde nenhum sofá aguardaria os anjos de rilke.
Tenho de preparar para amanhã uma aula sobre a ironia e a paródia mas perco-me em vagares, o meu pé encosta-se ao da Teresa, que dorme ainda, volto a espreitar da cama o dia e o excesso de luz cansa-me, desfibra-me, acomoda-me ao leito; decido continuar a ler. Extravio-me à procura da noite, na esperança de achar na dobra de um livro o atalho em que se perdeu.
Leio divertido que o jovem Fernando Pessoa ao escrever o ensaio sobre o poeta vitoriano Macaulay terá concordado com a admiração de um certo crítico que assegurava que a poesia deste era de tal valia que «não era possível lê-lo deitado», comentando então Pessoa «que vários críticos não só acham possível ler Macaulay deitados, como também é muito fácil adormecer lendo-o».
Perfeito, penso, vou apresentar amanhã este naco na aula.
Depois vem-me a dúvida, o facto da Teresa continuar a sono alto apesar da luz do dia já se depositar sobre os corpos como uma côdea pesada não se deverá à circunstância de ter lido as primeiras quinze páginas do meu romance sobre a infância do Pessoa em Durban, que finalmente encetei, após anos de dúvidas? Estará cilindrada pelo ritmo pastoso da prosa, pelos inábeis labirintos que desatei a desenhar, eu que nos chatos páramos já me amanho? Estará assim tão mau?
Hum, levanto-me. A Jade na cozinha barra manteiga num pão. Olho para um pires com um redondo bolinho de chocolate enfeitado por um peixe caramelizado na cobertura e meto-me com ela:
- posso comer este peixinho?
Responde-me a catraia num desdém divertido:
- pobre papi, não sabe que aquilo não é um peixe… - e sai para a sala, deixando-me especado.
- então se não é um peixe é o quê? - vou eu interpelá-la à sala, no momento em que ela acende a televisão para ver o Ziguezague.
- é a forma de um peixe… - responde-me o fedelho, en passant.
Volto à cozinha, derrotado, e dou uma dentada no bolo, só para morder a cauda do peixe. É insuportavelmente mau, sabe a sabão.
Faço uma torrada e ponho-me a pensar se também eu aos cinco anos distinguia entre as coisas e as suas formas. É provável que sim, o que não saberia era enunciá-lo assim, como quem não quer a coisa, com tal rigor aristotélico.
Fico inquieto com esta propensão aristotélica da minha filha, acho mais possível sair um poeta dos erros de Platão que do raciocínio de luminotécnico de Aristóteles.
Vou à porta do quarto espionar: a Teresa continua a resgatar-se da leitura do meu livro numa qualquer paisagem submarina.
O melhor é ir ouvir música, só a música cura. Abro o armário, tiro um CD dos Opus Ensemble, meto-o no aparelho e sento-me no cadeirão. Passa a Luna, ordeira e carinhosa como sempre, dá a volta ao cadeirão e – vá lá saber-se porquê, teria também ela lido o começo do meu romance e estaria a vingar-se? – toca-me com um dedo o alto da cabeça e comenta: Pai, estás mais careca aqui!
A música arranca. Aos primeiros acordes sei que a viola de arco me vai dar o ânimo, a seta para o dia.    
 
   

 

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

JOSÉ CABRAL: ESPELHOS QUEBRADOS

tríptico de bacon, enquanto não arranjo a foto
 
Texto que li na abertura da exposição do fotógrafo José Cabral:

Contava o escritor Argentino Jorge Luís Borges, “um dos meus mais insistentes rogos a deus e ao meu anjo da guarda é o de não sonhar com espelhos”. Tenho para mim que ele tinha toda a razão, veja-se o que aconteceu ao Narciso quando se viu pela primeira vez num reflexo nas águas: atoleimou, e apaixonou-se por aquela criatura que ele pensava outrem. E este é um pormenor relevante na equação, Narciso não se sabia diante de uma imagem especular e jurava que estava face a outro. Por isso é natural que se tenha apaixonado, com a sede que dá sempre aos que entregam o coração. O Narciso tem sido lido de forma negativa quando é pelo contrário um mártir do afecto e foi sempre o contrário do narcisismo. Olhar-se nas águas para ele foi uma imprudência.
Não pensem que isto é só cá uma coisa de gregos, lá dos antigos.
Também um conto coreano do século XVIII, fala desta imprudência. Narra a história de um pobre comerciante de potes de barro, o Pak, cuja esposa só tinha um sonho na cabeça, ter um espelho de bronze. E relata o texto quando ela finalmente recebe o objecto desejado: «Pak parecia ter entrado sozinho no quarto mas ela via uma flausina que se punha dengosa perto dele. Quem seria aquela puta? Era a primeira vez que madame Pak se via a si mesmo e não compreendia que aquela mulher ao pé do seu marido era ela.»
Portanto é universal a imprudência em que o José Cabral se meteu quando se fotografou em reflexo, uma tentação que pelos vistos lhe deu forte e feio ao longo dos anos, daí que estejam todas estas fotos devidamente datadas.
Há um segredo que vos quero revelar e que está por trás do delírio fáustico deste projecto.
Este José Cabral, que tantas vezes julga ser o Rezingão da Branca de Neve, é também um apaixonado pela leitura e uma vez leu com susto uma entrevista do Jean-Luc Godard onde este dizia: “o filme é a morte no trabalho”. Como o Zé é um macaco que relaciona tudo com tudo, pôs-se a roer a unha, e a vociferar, “caraças na fotografia é a mesma coisa, e o espelho é o olho do Diabo a rir-se nas minhas fuças – o espelho deixa que eu me veja e em troca disso enche com as rugas do tempo a minha imagem…”. Porque esse é o mistério do tempo e do homem: nós só envelhecemos por fora, por dentro continuamos gaiteiros.
Ora o José, injustiças é com ele, é um ver se te avias para lhes torcer o pipo. E então congeminou um plano para se furtar a este cerco do Diabo. A fotografia de 1987, em que o Cabral e a Pureza se duplicam na imagem, tendo ao canto esquerdo do enquadramento as santas nádegas pintadas por Botero, é que me deu a chave. Nesta foto, que sabiamente introduz no enquadramento um plano-sequência, o que se torna claro é que o fotógrafo é um homem sem rosto. Não só se duplica como é sem rosto, marca de anonimato que o torna invisível. Ora o tempo só actua sobre os singulares, isto é, os que se tornam visíveis porque têm rosto.
Na maior parte destas fotografias o José Cabral é o anti-narciso, é antes o homem sem rosto que espreita pela câmara para ver como é que o Tempo se governa sem ele. Smart.
Está aqui o sentido para o nome da exposição, Espelhos Quebrados.
O pior é que como diz um ditado judeu, quando o homem pensa Deus ri. E o Diabo já se sabe aprendeu tudo com este. E vai e estende uma armadilha ao Zé: dá-lhe o afecto.
E pronto, temos fotos em que ele diante dos amigos baixa a guarda - o palerma baixa a guarda. Sobretudo quando está ao pé do Kok e do Rangel, o José afrouxa a vigilância e baixa a câmara, nalgumas fotos até prescinde delas. Só por causa do afecto, lixou-se: o Diabo mandou logo o tempo sugar-lhe tudo.
E é por isso que o José Cabral aos sessenta anos fez esta exposição com uma temática tão inesperada e nova na paisagem fotográfica moçambicana, porque apesar de ser um veterano renova a liberdade expressiva da fotografia em Moçambique e ao invés de nos dar uma outra exposição em que o seu particular olhar de autor ordene o real dá-nos antes uma lição: a da fotografia humildemente vivida como festa da partilha, na rede de olhares que sustenta o mundo.
E antes que ele me diga, este gajo está-me a dar missa, é com a inteligência desta partilha que vos deixo.  

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O TIRO AO ARCO E OUTRAS BAGATELAS

                                                                     edward weston


Leitura no café de um belo livro, L’Esprit Guide, entretiens avec Karlfried Durckheim, mas uma leitura inquieta, porque um homem me olhava como se estivesse a mirar um cego. Aquela mão, aquele cigarro, aqueles olhos respiravam-me, e eu sentia-me incomodado como o muro que se alça sem reservas e com confiança e que no fim descobre estar a paisagem murada:
O discípulo, no tiro ao arco, atira durante três anos completos sobre um alvo de metro e meio de diâmetro, à distância de três metros. É surpreendente. Rapidamente me dei conta de que o tiro ao arco como exercício espiritual não tem nada a ver com o objectivo de acertar no centro de um alvo com uma flecha. Trata-se de outra coisa. Aprendi que, na tradição japonesa, uma técnica dominada não serve para uma performance mas o devir do homem.
Relata Durckeim, e poucas vezes li palavras mais certeiras sobre a poesia. Portanto, o tiro ao alvo no arco tem como fito esquecer a mira e a poesia é um fazer despertar a tensão na palavra erradia. É indiferente a luz que se projecte sobre o alvo, se o torna mais ou menos visível, tal como o realismo não passa duma incidência grafológica, semelhante às pegadas das gaivotas na maré-baixa.


O racional é a força de poder distinguir. (…) O mental num homem encontra os seus limites nos próprios limites desse estar-aí. Um tem um cérebro de pássaro, outro é um sage. Como quereis meter-vos sobre um mesmo plano? Não há um problema da vida que não seja diferente para um e para outro.
O grande embuste dos media é a ideia de que somos todos iguais e que temos todos os mesmos gostos - audiométricos. Seria um belo fruto da maturidade começar a aceitar a ideia de que devemos ter todos as mesmas oportunidades mas que aquilo que cada um faz com isso e a que nível maturou o seu auto-engendramento é diferente, muito diferente.     


Podemos ser melhores pintor, sapateiro ou marceneiro se sentirmos uma responsabilidade para com Deus e não simplesmente para com o nosso cliente. (…) Trata-se sempre do facto de que cada exercício em cada ofício contém a possibilidade de enraizamento numa responsabilidade mais profunda. Não se trata unicamente duma responsabilidade em relação a M., o cliente, mas em face de uma instância “anónima” e mais profunda. Se o relojeiro faz um relógio, não se trata apenas de contentar o cliente mas de fazer uma pequena obra de arte. (…) Esta responsabilidade pode não ser simplesmente face a alguém ou de qualquer coisa deste mundo, mas estar enraizado numa transcendência.
Não reconheço Deus no meu itinerário actual mas sinto-me identificado com uma espécie de yoga da poesia que me eleva a concentração mental até ao ponto de, sometimes, anular toda a distinção que me separa do objecto da (minha) contemplação.
Dizia o velho William Blake: «O que não é capaz de imaginar para si rasgos maiores e mais fortes, ou de ver com uma luz mais potente e intensa que a do seu perecedouro olho mortal, não pode de maneira nenhuma imaginar».


Um dia, em Paris, alguém fez uma conferência na qual falava do homem e do humano. No fim, levanta-se um psicólogo, um freudiano, e pede-lhe:
- Senhor, que quer dizer com “o humano”, não pode dar uma definição de humano?
- Não posso, desculpe… - respondeu o conferencista – mesmo que o pudesse não o faria.
- Como? Insisto, que pode querer dizer o humano?
- Não sei, senhor. E se o soubesse não seria humano.»
Também desconfio não saber, e menos ainda desde que me inteirei de que nos sonhos o polícia que é o nosso pequeno-eu dormita e que o maior carrasco do mundo tem os sonhos de uma criança inocente. Suponho que só pode ser uma aprendizagem que não acaba.
Aqui sinto-me próximo de Wittgenstein, que escreveu: «Temos tendência a confundir a fala de um chinês com um gorgolejo inarticulado. Alguém que compreenda o chinês reconhecerá, no que ouve a língua. Muitas vezes não consigo, analogamente, distinguir num homem a humanidade».


Esta concentração sobre a respiração não é ainda a meditação. A meditação começa no momento mesmo em que esse movimento se torna automático. Não somos mais nós que respiramos, é o ritmo quem nos respira. Então, tudo se cala.
Hum, hum. E o mil-folhas devora-me, paulatinamente. Chego à cobertura de chocolate já lambuzado pelo silêncio. Peço-lhe um café ou um gim? Porque me chega à mente a imagem de um bolbo de tulipa? Precisamente daquela tulipa?


É preciso fazer a distinção entre a profundidade de um sentimento e a sua intensidade. Muitas vezes não os distinguimos.
Ui, touché. Fui uma vítima atarantada por ter levado uma vida a não conseguir separar a aranha da teia. Penso que estou um pouco mais ordenado, mas levei cinco filhos e quatro casamentos a aprender que entre a profundidade e a intensidade nos pode salvar o vento.