terça-feira, 26 de maio de 2015

UTOPIAS E ENCADERNAÇÕES: O THRILLER DE PETER CUNHA


O ano passado estive vários dias na Beira, sem conseguir trabalhar por causa dos cortes ininterruptos de electricidade. Passei quatro dias em camisola de alças, agarrado ao casco de uma cerveja, sob um calor viscoso e uma humidade que apodreceria as esponjas mais renitentes... e sem electricidade. Para afastar as moscas acabei por ir esboçando uma história policial, a primeira de Peter Cunha, o detective inventado por César, de A Maldição de Ondina, um detective mulato e pós-colonial. Porquê pós-colonial? Porque já não tolera viver à custa da culpa estar sempre a cargo do colonialismo. 
Aqui fica esse primeiro rascunho de um projecto abandonado:

UTOPIAS E ENCADERNAÇÕES


I

Saio da guest house, no Estoril, e o calor desce imediatamente sobre mim com as suas manápulas de crude. Espesso e inescapável. É um manto sem um só poro, debaixo do qual os meus transpirarem para dentro. É natural, reparo uma hora depois, que o empregado do restaurante venha limpar a mesa de dez em dez minutos - até o plástico que a cobre exsuda sem perdão.
Beira City.
Nem em Nacala ou em Pemba nos sentimos pregos moles enterrados em mercúrio. Aqui, das 9h da manhã às 17h30 da tarde devia ser proibido trabalhar, fazer um gesto, olhar de viés a prateleira de um rabo, preencher um requerimento, cortar uma lula. Qualquer esforço é brutal e impele ao desejo de uma barrica nas costas. De cerveja estupidamente gelada. Algo que nos desembarace da tépida humidade que nos extenua. Bebemos como brutos e não dá efeito, seis médias, três litros de cerveja e não dá efeito, o entorpecimento do calor não deixa; em África só nos podemos embebedar à noite, e é psicológico, ou antes, neurológico, a brisa da noite associa-nos ao bem estar do sono, e aí embebedamo-nos porque começámos a sonhar. O resto é merda. Não há cerveja que nos possa embebedar nos trópicos, ou pelo menos aceder à percepção disso – o calor interpõe-se, “eleva-nos” à temperatura das tripas. Quando é tudo visceral nada funciona.
Apanho um táxi para a Baixa, são baratos na Beira. Por vergonha, acho, motivada por a cidade ser  tão comprida que quase se estende por Los Angeles adentro enquanto os ordenados que a massa trabalhadora nela óbtem são tão mínimos que o preço há dois lustres que não sobe. Ninguém pede o que gasta em gasolina mais serviço, seria impraticável, atendem ao cliente e ao fim do dia, conscientes de que trabalharam para a perda, embebedam-se no Sunlight. São os últimos socialistas em serviço. É a única explicação que tenho para que a mesma distância seja paga a um terço do preço de Maputo. Para todos é melhor, peço um recibo mais abonado e partilho ainda um pouco com o motorista. Ficou-me também uma réstia de princípios socialistas, um rodapé... desde que não haja outra maré neo-liberal, talvez resista.
O engenheiro Manhoca, ao contrário do que me tinha dito, não estava no serviço. Que tornaria o engenheiro Manhoca a pessoa ideal para ser o gestor de uma clínica que se chama Partos em Flor ninguém me disse e não ousei perguntar. Gastei duas horas à procura da intratável figura, a matutar onde é o manganão perdera a oportunidade de ser citado como “o Minhoca”, onde é que se dera o desnorte. Minudências que ocupam o forro da espera. Diga-se, em abono da verdade, que em Moçambique, nada tem o nome próprio. Em Nampula encontramos uma Livraria Central que vende motos, computadores, azulejos para casa de banho, e, fónix, máquinas chinesas para fazer a barba. Nenhum livro. E não é única, topei em Gurué com a Livraria Chaimite – nome excelso para uma livraria! – que vendia babygrows, frangos congelados, todo o tipo de aftershave, lençóis e cobertores, artefactos vários para acampamento, equipamento informático, e instrumentos para agricultura, e livros... só invisíveis. Contudo, talvez o must seja uma empresa que vemos publicitada em todos os aeroportos, Apple Car Rent, que anuncia hotéis, condomínios, bares, lojas, restaurantes, mas há muito não aluga carros. Nada é o que parece.
O mesmo gostaria de ter dito do uppercut que recebi ao dobrar da esquina para a Praça Chaimite (nesta terra tudo se repete, e não há como contrariar isso, do mesmo modo que no calor um dia parece apenas o vintém do seguinte e do seguinte and so on). Acordei no bar Thing Pink, deitado entre três cubos e dois puffs que nadavam no meio de seis mesas de plástico. Num chão de cimento vermelho. Pisquei os olhos e levei a mão ao queixo para amaciar a moinha que lá sentia. Estava sozinho, no âmago de quatro paredes pintadas de laranja e verde. Na mesa mais próxima havia um copo de água e um comprimido. Ergui-me a custo, vociferando contra o chão duro e tomei-os sem hesitar. Depois arrependi-me imediatamente com a estupidez do que havia feito, sabia lá que comprimido era aquele, mas estava ainda meio grogue. Foi então que ela chegou.
Bonita como uma gazela em corrida. Tinha uma estrela cadente presa a uma boquilha. Exibia o ar de quem não deve nada a ninguém mas se sente ligeiramente em falta por isso. Foi o que eu aproveitei:
Num chão de cimento? – censurei.
Era o chão que tínhamos.
Bom, e não havia uma esteira?
Pedimos, ninguém nos deu...
O mundo está a ficar cão...
As sílabas sairam-lhe ao ritmo com que o indicador fazia cair a cinza do cigarro:
Não é?
Levantei-me. Tinha a gravata numa rodilha:
Disseram-me que era de seda.
Nem tudo são tempos... – respondeu-me, misteriosamente.
Como vim aqui parar?
Estava desmaiado no chão à frente da Nacional e trouxemo-lo.
E porque não me pegou a gente da Nacional?
Está fechado.
E é o quê?
Uma cervejaria, a maior da zona, com uma boa esplanada...
Está fechada ao meio-dia?
É a Beira...
É a Beira-túmulo?
Antes de ter um filho quis pensar assim, agora não admito isso...
Ah, tem filho! E tem nome?
Pitágoras...
Como?
Quero que seja inteligente, logo no nome. O nome é trinta por cento, aqui...
Mas porquê um nome grego? Trazes-me uma Laurentina preta?
A resposta dela cilindrou-me:
É tão bárbara a sociedade oral que devora o nome dos seus filhos... Quanto à cerveja, estamos fechados...
Falas bem... e não tens sotaque...
Fui adoptada por brancos... até que fugi.
Foge-se sempre dos brancos, não é?
Também eu fugira dos meus brancos, mas não lhe disse. O queixo contraiu-se-me, dorido:
Quem me bateu, perguntei.
Talvez uma betoneira... estavas maltratado. Nunca mais acordavas, tenho de ir buscar o meu filho à creche...
O que é que se passa aqui?
Estamos a redecorar... para reabrir em breve. – Deixou cair a beata que pisou com a biqueira do sapato alto, enquanto lhe saía, sem afectação - Mas foi sempre uma espelunca e voltará a ser... Onde te deixo?
Hotel Savoy.
Vejo que gostas de dormir em antiguidades.

Não sei porque lhe menti, se estou no Estoril. Ainda por cima, o hotel está fechado para obras e ela deve sabê-lo. Ao jantar, se o houvesse, teria de desfazer o engano com elegância. Ela deu-me o número de telefone mas não foi afirmativa quanto ao meu convite:
Ligue, que então veremos... – Atirou, antes de eu fechar a porta do carro.
Pende grelhado. Sempre que venho para Sofala mato saudades. Um saboroso peixe de rio que me traz memórias dos salmonetes que comia na infância, em Setúbal. Pena o calor.
Ao balcão, uma empregada não deixa de olhar para o meu cabelo escorreito, liso, que não preciso de desfrizar, herança do meu avô indiano. Há mulatos mais infelizes. Elas sentem-se maltratadas por Deus com aquela carapinha, que nem as extensões ajeitam. Ou olharia a nódoa negra no queixo, o seu ligeiro inchaço que me dói quando mastigo? Faria menção disso quando me apresentasse ao Manhoca – uma travagem brusca do táxi? Que se foda sua excelência!
Era absolutamente desproporcional a quantidade de batatas cozidas. Primeiro perguntaram se queria com batatas fritas. Peixe grelhado, perguntei eu, mas não passava de uma pergunta de retórica, aqui os hábitos estão no tecto. Pedi cozida, e teve de vir num prato à parte, o peixe grelhado num e a batata e o feijão frade noutro. Se fosse arroz, com o que sobrasse daria para fazer uma barricada.
O paradeiro do Manhoca continuava a ser desconhecido, e não atendeu a duas chamadas da secretária, feia como o joelho dum comundongo. Deixei o meu cartão e pedi que ele retornasse, com urgência.
O senhor é detective privado? – perguntou espantada a pacóvia – Isso há em Moçambique?
Tão certo como eu me chamar Leonardo.
“Sweet”, tem um apelido bonito. – E acrescentou algo que me deixou piurça – E a sua actividade é legal ou ilegal?
450003245, é o meu número de Nuit. Se precisar de algum serviço...
Cá fora, o sol continuava a roer qualquer princípio de esperança. Tinha a camisa colada às costas. Tomei um táxi para o Estoril, um duche e três horas de sono haviam de recompôr-me. E precisava de pensar de onde viera aquele uppercut fantasma.

Ela acedeu a jantar comigo. Levei-a ao Tropicana, que tem uma bela esplanada sobre o mar, um menu variado e os preços duma viagem à luz. Queria impressioná-la. Não se impressionou. Enfiou um cigarro na boquilha, e martelou:
Ou és o filho do dono do Savoy, ou não sabes mentir.
Não tive saída:
Foi infantil, desculpa, estou numa hospedaria no Estoril... foi uma sequência de golpes rápidos, o murro, aquele comprimido, a tua presença... desatei a dizer coisas sem pensar... E como é que tu fumas bouquilha?
Fica-me mal?
Não, fica-te lindamente... fica a matar com o teu perfil etíope...
Como te disse fui adoptada por portugueses. Sairam daqui em 85 e eu fui com eles. Eles não tiveram uma boa adaptação à vida portuguesa e mandaram-me durante um ano para casa de uma mulher deputada e escritora que era amiga deles, a Natália Correia. Ela deu-me pouca atenção, andava demasiado ocupada, mas o secretário dela, o Dórdio Guimarães foi quem cuidou de mim, me corrigia o português e me pôs a ler, porque a senhora tinha muitos milhares de livros em casa... Foi um período feliz da minha vida... Ela fumava boquilha...
E não ficaste por Portugal?
Quando eu estava no terceiro ano de Direito ofereceram-me umas férias a Moçambique, para visitar a família. Nessas férias conheci um italiano e apaixonei-me. Ele levou-me com ele para Milão, mas quando lá cheguei não era o que eu pensava, ele tinha-me recrutado para o putedo.
Como?
Prostituta. Como fiquei grávida, levei dois anos para conseguir fugir àquela rede. E como em todo esse período tinha mentido aos meus pais e dito que vivia no melhor dos mundos, não tive coragem de voltar...
Ela falava metendo cadenciadamente o garfo com o arroz de marisco na boca, mas moia a comida sem a dicção se alterar, articulada, claríssima. Perguntei-lhe:
E eles, com o bebé, não quiseram ir visitar-te?    
Por sorte, uma sorte macaca neste caso, a minha mãe teve um longo combate contra um cancro de mama nessa altura e eu arranjei todos os artifícios para não os visitar, mas falávamos todos os dias ao telefone...
Eles não tinham outros filhos?
Ela não podia. Por isso me adoptaram... Desde os dois anos. E três meses depois de cá chegar, na véspera de cá virem visitar-me, eles morreram num estúpido acidente de viação... eu acabei por receber o suficiente para comprar uma casa e montar um pequeno negócio... e eles nunca viram o neto, coisa de que nunca me perdoarei...- fez um sorriso forçado e vincou as covinhas que lhe davam metade da graça.
Já tinha ouvido falar dessa... dos italianos. Parece que foi uma razia.
Eles são gentis, charmosos, têm aquela língua semi-cantada... misturam-se bem. Mas o esquema não lhes sai do sangue, vem da Camorra... Bom, foi menos mau, adquiri outra língua, o custo foi pesado mas já lá vai. E o meu amigo do Savoy?
Detective Particular... – tirei um cartão do bolso da camisa e passei-lho.
Uau! – leu – Leonardo “Sweet”, investigações honradas.
Essa copiei-a dum português, Detective Correia, investigações honradas...
E que quer dizer investigações honradas?
No meu caso, que não aceito casos de adultério... imagina, neste país em que qualquer bruto tem duas, três mulheres, eu pôr-me a investigar casos de adultério... e não alinho em arranjar provas para um divórcio litigioso... não quero ganhar dinheiro com domínios morais, eu não me meto na vida das pessoas, se ela quer encornar o marido é um direito dela...
Então que tipo de casos te aparecem?
Neste país, onde tudo é semilegal e existem buracos legislativos enormes tudo pode acontecer e necessitar de ser elucidado...
Que caso te traz aqui?
Talvez não fosse prudente abrir o jogo, mas o abre-latas da história dela escancarara-me o coração com. Resolvi confiar:
A filha de um graúdo deste país foi a uma festa de teenagers, foi drogada e acordou no dia seguinte num hotel. Estava sentada numa banheira de água gelada, apinhada de pedras de gelo e fiapos de sangue. E ao querer mexer-se teve uma dor e viu que tinha uma ferida feia nas costas. Tinham-lhe levado um rim. Agora estou no rasto desse rim. – resolvi baralhar o baralho – Bom, mas esse cartão é falso, esse é o cartão que dou aos maus... o verdadeiro é este... – e passei-lhe outro.
Bom... – gracejou ela -  Peter Cunha/ Detective Privado, não é pior.
Nem pior, nem melhor, é o meu nome verdadeiro. E esses contactos são correctos.
E como sei que não tem um terceiro?
Não tem, aquele – apontei o primeiro cartão, jogando a cartada final, visto que ela gostava de ler – é o meu único heterónimo. E o murro, em tua opinião, tem alguma explicação?
Esquece. É um louco que há naquela esquina, um desmobilizado, que bate em todos os brancos que pode.
Eu sou mulato.
Para eles não.
Bom, olhando para ti, concluo que estou em dívida com o meu nocaute.


II

Puz as certidões de óbito à frente do gigante Manhoca e perguntei:
De si, só queria saber como é que estas certidões de óbitos, de pessoas que ainda estão vivas, têm o carimbo da sua clínica?
Os óculos escuros iam-lhe caindo, do nariz à latitude das bermudas. Até aí ele procurara disfarçar a babalaza com que chegara ao serviço nessa manhã, os olhos macerados e avermelhados, os zigomas cinzentos, o cansaço com que se lhe moviam as beiçolas, mas aí os óculos desceram-lhe até ele ter de os segurar na ponta do nariz. Aproveitei para sossegá-lo:
O agente Manjate da PIC é meu amigo e passou-me cópia destes documentos que foram confiscados quando o camião com as crianças foi apanhado na fronteira de Ressano Garcia, na semana passada, mas isso é um assunto da polícia, eu não tenho nada a ver com esse assunto... eu vim oferecer-lhe três ou quatro dias de fuga em troca de informações sobre o tráfico de orgãos.
O homem embatucou, desceu-lhe a negrura para os tornozelos, onde ficou, azul, a boiar como umas peúgas largas, enquanto ao semblante aflorava um cinza claro, de empalidecimento.         
Espremer aquela bizarma foi mais fácil do que tirar as moscas da espuma da cerveja preta, porque esta é terra onde as moscas voejam dentro do copo. Infelizmente sabia pouco. Mas o passo seguinte, obrigatoriamente, levava-me a Nampula, onde, segundo ele, estariam alguns cabecilhas do negócio.

Inês? Peter. Sempre nos encontramos logo?
Não posso, desculpa. O meu filho chegou com febre da escola e não posso deixá-lo sozinho.
Mas não tens uma ama, uma amiga que possa ficar com ele?
Deixar sozinho o meu filho doente, por causa de um homem que conheci ontem?
Marcava pontos. Tinha razão. Nem dava para balbuciar qualquer argumento:
Ok, falamos então amanhã. As melhoras do miúdo.
Fechei o telefone com a impressão de um leve dissabor. A noite tórrida do dia anterior pusera-me a planar, mas a um elemento sucede-se sempre outro. Tinha de ir descarregar a energia que ficara entre os elementos. Rumei ao Miramar, na marginal, território de engate e partilha, da esplanada, ampla, às diversas salas de jantar.  Cansa um pouco a música de discoteca e os plasmas, sintonizados no pornográfico Wild, mas a comida é bem confeccionada e a um preço decente. E as miúdas chegam aos cachos, dispostas a tudo, por preços merdosamente decentes.
Engraçei com uma das empregadas de mesa, que me parecia uma espécie de Cassandra relaxada. Chamei-a:
Como te chamas?
Sónia.
E quantos anos tens?
Dezanove.
Tinha um rosto jovial mas o rosto desgastado – dar-lhe-ia vinte e oito.
E tens um filho, tens barriguinha de ter tido um filho...
Tenho dois.
Dois? Com quantos anos tiveste o primeiro?
Doze.
Fiquei seco. Só me ocorreu perguntar-lhe:
E quantos anos tem o segundo?
Catorze.
Só podes estar a brincar... se a tua primeira sorte tem sete...
Então tem treze... - tentou ela.
Decidi não esmiuçar mais a concepção que ela tinha do tempo e da sua cronologia pois já em outras ocasiões me vira em assados.
Diz-me lá, que idade tinha o rapaz que te fez o primeiro filho?
Dezassete.
Estás com ele?
Não.
Mas estás com o segundo?
Não.
E que idade tinha esse?
Vinte e cinco.
E agora?
Vivo com o meu irmão.
E estudas?
Não. Só trabalho aqui...
Chegaste a que classe?
Oitava.
Portanto, sabes assinar o teu nome... – escarneci.
E assino o nome dos meus filhos, regozijou-se.
Enterrei ali a minha pretensão de lhe explicar o que era um orgasmo feminino. Fiquei a pensar num país à nora, devoluto, zerado de um mínimo de capacidades e orientações, com os serviços maioritariamente ocupados por gente que não é capaz de discernir o que seja o tempo, as suas medidas e cronologias - mas onde se fode a granel.
Assim que passou uma música não electrónica, pus-me a dançar com o tronco e os braços, enquanto fazia momices para uma mesa com duas miúdas. Acharam graça, rapidamente ocupavam a minha mesa e entabulámos a conversa possível. A mais gira e espontânea tinha vinte e cinco e a outra dezanove. Comemos umas ameijoâs e fui-me emparelhando com a mais velha, de uma certa pica gaiteira a que achava piada. Estávamos para sair e passar aos finalmentes quando ela recebeu uma chamada. O rosto cerrou-se-lhe. Proferiu alguns monossílabos antes de fechar o telemóvel. E disparou:
Tenho de ir para a Manga, o meu filho está muito mal. Mas ficas com a minha amiga, ela é de confiança e é muito doce...
Que fazer? As miúdas mais giras da esplanada já estavam ocupadas. E, why not? Eu só queria descarregar a energia acumulada na noite anterior.

Tomámos um duche juntos, e fui-na acariciando enquanto ela soltava guichinhos.
Pássamos à cama. Meti-lhe a mão na rata, à procura do clitóris. Estava pelada e parecia que no exercício de depilação teria decapitado o clitóris. Tinha a lisura de um selo. Os olhos dela estavam encharcados de malícia mas fechava as pernas sobre as minhas mãos, e grunhia, ai, ai, ai...não me mexas no rabo... Como, perguntei, enquanto lhe metia um dedo mais fundo na cona.  Não me mexas no rabo, pedia ela.
Pareceu-me excessivo pagar um estipêndio sobre tão profundo analfabetismo sexual. Um mínimo de reciprocidade sexual não pode surgir de tanta ignorância, ainda que eu pudesse aproveitar para sodomizá-la garantindo que praticávamos um coito vaginal há uma réstia de dignidade que temos de manter, mesmo nas relações venais. Dei-lhe dinheiro para o táxi, mais duzentos e cinquenta meticais pelo tempo perdido e mandei-a embora.  
E a seguir masturbei-me, pensando na noite anterior.



III

Foi infame, porque houve cúmplice de dentro, e fiquei com o corpo bastante inflamado depois de me terem carregado, amordaçado, para o caminho de buganvílias que leva da guest house à estrada e de a meio me terem atirado contra os três cactos que aí arrepiam mais de dois metros de altura. Duas vezes. E dobraram-me, amarrando-me ao pé da planta, num nó apertado que me espetava no peito para cima de seis picos. Acabei por desmaiar.
A esponja suave que me humedecia o tronco, entre as ligaduras, acordou-me quando o seu travo fresco me chegou ao pescoço. Tenho há muito a superstição de que morrerei em torno duma ferida que envolva o pescoço, ou talvez dum estrangulamento, de algo que mo abra ou parta, e sou extremamente sensível nessa parte do corpo. A cada macaco as suas manias.
Dessa vez o perigo tinha a macieza do mel. Era Inês, que fez beicinho, antes de protestar, teatral:
Fui promovida a ama-seca dum bebé chorão...
Com uma Eva destas, é natural que se repita a queda...
Não é preciso teres sempre a resposta pronta, este não é um romance do Chandler...Dói-te?
Arde.
Tiveste sorte. (O nome em latim): os picos são venenosos, mas não nesta época.
Como sabes?
Wikipédia.
Que horror, o saber já não nos vem das árvores, dos rios, do chão...
Modera-te, o país precisa de quadros, chega de campónios...
Foi uma delícia aquela hora de visita, embora aquela merda me incomodasse bastante. Vinte e quatro furos em todo o corpo, três com mais de um centímetro de comprimento. Fora um aviso. De quem? Isto só significava que o meu cliente tinha um infiltrado no escritório e que um dos recepcionistas fora comprado. Eu também seria, se ganhasse o que eles ganham, mas, foda-se, teria escolhido o hóspede mais asqueroso.
Tive direito a mais dois dias de visitas paradisíacas. Soube entretanto que o Manhoca se pusera ao fresco. E resolvi não avisar de imediato o meu cliente de que tinha uma jibóia no seu círculo mais próximo.
O grande benefício do meu maltrato foi ter passado a última noite da Beira na casa dela – posta a criança, prudentemente, a dormir na casa de uma amiga. Gosto de crianças, mas não é preciso abusar.
As minhas chagas de Cristo não me impediram uma execução quase exemplar. Acho, que nem sempre é o que elas acham.  
Bom, mas apanhei o avião certo de que uma coisa nos unia: o sentimento de que ambos havíamos chegado demasiado tarde para nos acomodarmos com a auto-condescendência africana, contaminados pelo fodido fermento crítico europeu. Sempre era uma âncora, numa terra onde me sentia entre. Éramos os dois perigosamente pós-coloniais, no sentido em que nenhum de nós queria fingir que ainda vivia à mama de colocar as culpas no outro, no eterno colonialismo.


quinta-feira, 14 de maio de 2015

O COMPROMISSO/ UM CONTO COM JOSÉ CRAVEIRINHA

josé craveirinha e noémia de sousa

Vasculhando documentos antigos descobri este conto, em que o poeta Craveirinha é um "figurante especial". Como me diverti ao relê-lo aqui fica:


À memória do meu pai, tão diferente deste e tão igual
                                                                     

Perguntas-me por coisas que não gostaria de ter assistido, nestes meus oitenta anos de vida? Assim de repente… Coisas imperdoáveis, enxutas, de que me absteria de ver? Olha, o rosto repuxado da Sophia Loren, a gargantilha que não lhe disfarça as operações plásticas, mais que os nós nas pranchas do soalho. Nem eu nem ela merecíamos isso. Mas não há modo de escaparmos às ratoeiras do tempo. Havia um padre na minha meninice que dizia: roedor que foge a fiado nunca erguerá o focinho rasteiro. Sacana do padre tinha razão. Nisso, e em ter encavado a mulher do notário, tão gira que dava dó vê-la ruminar sozinha os folguedos de sábado. O marido abalava para a caça todas as madrugadas de sábado e via-se que ela era contra, era contra as matanças, ainda nem se falava em vegetarianos mas ela já comungava, aquilo tinha nascido convictamente para o amor. E esse padre que era novo e muito inspirado no Vaticano III foi sensível à causa dela… não rias, que o caso foi sério e deu prisão e tudo. Olha, um avião a jacto - sempre me impressionaram. Sabes por quê? Partem o céu em dois.
Mas continuemos lá este teu inquérito, que raio de ideia a tua! A primeira palavra, a primeira palavra, assim que me lembre… Primeiro deixa que te lembre que há coincidências danadas, ou que é difícil saber onde está a causa e o efeito, como quiseres. A primeira palavra que fui consultar ao dicionário, era miúdo, devia ter uns oito anos… o meu pai não tinha eira nem beira mas fazia questão em que falássemos bem, que parecêssemos uns senhoritos a falar. E então apresentava-nos aos amigos e gabava: reparem como ele palra! Nunca dizia ‘falava’, tratava-nos como se fôssemos periquitos. E como escrevia letras para fados tinha comprado um dicionário que manuseava de frente para trás num grande aparato; voejando pela casa de copo de vinho numa mão e dicionário na outra, à cata de rimas. Foi a única coisa em que foi capaz de trabalhar, o resto era um estroina e estoirava tudo na pândega e na lotaria. Uma vez partiram-lhe quatro dentes por causa de uma dívida de jogo. E lançaram-no à porta feito num oito, enquanto me recomendavam, fui eu que abri a porta, hás-de procurar para o teu pai o significado da palavra «sarilhos»... Mas dizia-te que a primeira palavra que consultei no dicionário foi o verbo lobrigar, foi o escolho que me pegou de estaca no primeiro parágrafo de um livro do Camilo que o meu pai achara no lixo e me dera, e ele não me quis dizer o significado da palavra, miúdo, tens um dicionário, privilégio de que noventa e nove por cento dos pobres não se pode gabar e por isso usa-o. E lá fui ver. Mas o esquisito é isto: a primeira coisa que me lembro de ter visto na vida, a primeira imagem que me vem à mente foi ter, repara nisto, lobrigado uma lombriga a contorcer-se no sifão da sanita. Que idade teria eu? Ainda usaria fralda, que nessa altura eram de pano encardido pelas fezes de uma horda inteira. Só lá em casa eramos cinco irmãos, eu fui o mais novo; estás a ver o que aquele tecido aguentou até chegar a mim. Mas podia lembrar-me da minha mãe, da tua avó que era a doçura em pessoa, sei lá. Uma lombriga muito branca, numa água tão encardida como a fralda. E sabes qual foi o meu primeiro pesadelo? E ainda há quem diga que as palavras não passam de moedas gastas! Olha, no pesadelo, eu ia à farmácia. Explicava o caso, a enfermeira dava-me os sais para a purga e no fim eu agradecia: “lobrigado!”. Acordava horrorizado, com a partícula da lombriga a infectar a palavra obrigado, claro que na altura não o saberia definir deste modo.
Que maçador, filho! Pensava que no outro dia já tinhas acabado o teu inquérito. Andas a fazer esse inquérito a quantas pessoas? Bom, atira lá. Expressões populares, deixa lá ver, frases que se tornam refrões… Espera, uma das expressões populares que mais me intrigaram desde miúdo é a mania dos mais velhos a dizerem: «tenho um dedo que adivinha!». A minha avó tinha um dedo que adivinhava, a minha mãe tinha um dedo que adivinha, a minha tia freira tinha um dedo que adivinha, o meu avô paterno com o seu dedo que adivinha perdeu a fortuna do pai na roleta, em Espinho, todos eles com um destino de tripa forra… Só eu e o meu pai parecíamos ter perdido o dom, nalgum entalanço. A tua avó, por exemplo, recebeu como missão na vida arear a lua. Pelo menos era o que parecia, com a cabeça sempre perdida algures, alheia a tudo; às vezes com um zelo que roçava a indiferença, como se estivesse numa perpétua e incómoda órbita menstrual. Uma vez esqueceu-se de um de nós numa loja de móveis da Almirante Reis. Perdeu uma irmã no tremor de terra de 67, caiu-lhe uma chaminé em cima, perdeu um filho na guerra, mas nos poucos momentos de contacto, e com ela nunca houve momentos de vacas gordas, aturdia-nos com a sua inexplicável certeza de que não servia de nada esconder-lhe nada visto ter «um dedo que adivinhava». Penso que morreu iludida, julgando que lhe faltavam uns anos de pragas e que a sua adivinhação era uma espécie de teta que doparia, de antemão, qualquer lobo. Às vezes julgo que o que falta às pessoas é comprometerem-se de facto com as palavras, o compromisso, por isso dizem qualquer coisa agora e o contrário no momento seguinte; sem pensarem muito nisso, como agora se diz. Como se uma macieira pudesse dar cerejas – é esta na verdade a ideia que as pessoas agora têm das palavras, e não creio que haja grande futuro quando as palavras se começam a mentir a si próprias.   
Deus? Pões-me cada questão. Eu fiz parte de uma geração laica. Missas e padres nunca me passaram pelo estreito. Se calhar porque o meu pai era um republicano ferrenho, educado com o Pátria Minha, do Guerra Junqueiro. Portanto, nunca senti a necessidade de me interrogar acerca de Deus, esses assados. Lembro-me só, em miúdo, de uma vez ter vindo a Lisboa e ficar espantado pela quantidade de carros que circulavam em torno da Praça do Comércio, alguns já estacionados, enfim, ainda não era a vergonha (a que o Sena se viria a referir) de se ter transformado aquela praça numa filial da General Motors, mas já havia uns carros estacionados na placa central, e eu ia com a minha mãe, ia mostrar-me o Cais das Colunas. Ela carregava um saco de laranjas acabadas de comprar numa mercearia da rua do Arsenal, e o saco rompeu-se… As laranjas rolaram para debaixo dos carros. E então lembro-me distintamente de me ter vindo à cabeça: as laranjas procuram debaixo dos carros as iniciais de Deus… Assim exactamente, ‘as iniciais de Deus’. Devia ter uns doze anos. Uma coisa estranha, não sei donde aquilo irrompeu. Mas, assim como veio, foi-se: nunca mais fui assaltado por inquietações desse tipo. Intrigante, a associação que eu fiz, se calhar devia ter ido para poeta…
Não filho, nunca escrevi nada. Ou minto-te. Publiquei dois poemas no Notícias da Amadora, um jornal da oposição que não resistiu ao 25 de Abril e onde às vezes fazia uns biscates como tipógrafo. Queres que te mostre? Sei lá, filho, mandei isso fora. Mas lembro-me, memória tenho eu. O primeiro era só isto: «carta do marceneiro à árvore:/ chove que se farta!», foi um fartote, fartaram-se de rir e de me dar palmadinhas nas costas. E então, animado, publiquei um segundo: «Roída a unha/ De Deus/ Até ao sabugo// Delicia-se agora/ Com os epigramas/ De Catulo://Com a glande/ Rubra a locupletar-se/ Nos líquidos/ Fantasmas/ Da virtude.» O jornal foi à censura e foi um forrobodó, até levei reprimenda do director, porque, defendia ele, já nos chega as chatices com a censura pelas coisas devidas, as farpas com que visamos a política destes cabrões, não precisamos de poemas eróticos. Acabou ali a mesma carreira poética. Um dia ainda comecei uma história. Escrevi: «o planeta que tinha três rosas como satélites». Mas nunca soube como continuar. É a minha arca furada. Franzidos largos na manga do verso. Porque não escrevi mais e não publiquei? Sei lá, a vida troca-nos as voltas, eu era operário. Tipógrafo, é certo, que já foi uma classe ilustrada. Fartei-me de compor livros na caixa de chumbo, a caixa negra, olha, livros do Abelaira por exemplo e do Carlos de Oliveira, e ao compor letra a letra aqueles livros, juntando as frases de chumbo, eu ia-me apoderando da propriedade, do valor de cada palavra. Havia inevitavelmente muito de físico no modo como fazíamos os livros e o suor e as letras se geminavam. Eu acho que isso nos tornava diferentes. Agora não, recebe-se o texto em disquete e vai directamente para o gráfico, perdeu-se muito nisso, e até o peso que cada palavra deve ter. Talvez por isso, não voltei a tentar… Não adivinhas? Sempre que leio um mau livro penso nos palitos que ficaram por fazer… É bom rir, mas é triste rirmos tanto com o mau.
Tu queres mesmo continuar com isto? Já me deste cabo do uísque, acho que este inquérito é só um pretexto. Bom, tenho ali um rabinho de Jameson, vou buscar e vai espreitando este caderno velho. Cá estou, este resto de Jameson está na garrafeira há anos, é quase um fóssil. Já veio de Moçambique, vê lá, eras tu miúdo. Foi no princípio dos anos sessenta. Era tipógrafo no Notícias de Lourenço Marques – eu e a tua mãe vivemos lá cinco anos – e às vezes saía com um jovem mulato, um tipo habilidoso que rapidamente se revelaria um poeta de craveira, o Zé Craveirinha. Um ladino, gingão,  reinadio, e com olhos de foca matreira. Todo ele era verbo. Uma vez brincava com ele e disse-lhe, ó Zé, tu és um pardo de palavra lustrosa, e ele que nunca se ficava sem resposta: e que é um homem senão um pargo que deseja ir a Paris - a sumptuosa? Naquela altura, naquela altura… bom, naquela altura da vida o que era importante eram as miúdas, o sexo governava as nossas conversas em voz alta, que quando sussurrávamos falávamos de política, de África que se sublevava. O Craveirinha já era casado, como eu, mas era um doidivanas com as mulheres, galante, de humor sempre engatilhado, e elas alinhavam. Naquela altura havia um grupo de teatro que quis fazer o Romeu e Julieta, eu acabei por lhes fazer o programa do espectáculo, o Zé meteu-se a fundo naquilo e tornou-se “ponto”, hoje já nem se usa; mas ele lá estava todos os dias na caixa do ponto a bichanar o texto para os autores e eu interrogava-me, porque é que este marmanjo se põe ali enfiado, eu sabia a aversão que ele tinha às rotinas, e passou dois meses naquela caixa, muito obediente e cumpridor; sabia a peça de cor, e às vezes metia falas da peça a eito no café, se queria ser airoso com uma cachopa qualquer; o sacana tinha mesmo graça. Mas a dedicação dele, que me intrigava, quebrou-se assim que a peça estreou e o grupo começou a ensaiar o Édipo Rei. E interroguei-o, ó Zé, tanto empenho na peça anterior e agora é o corte - que se passou? Sabes, diz-me ele, em teatradas como esta, de opereta, sou menos pelo Sófocles que pelos seios da Julieta… E ria. Perguntei-lhe pelo paradeiro da Julieta, e ele, fez a desfeita de não entrar nesta peça porque o marido que é polícia desatou a ter ciúmes de um pobre ponto que afinal só elevava a palavra até ela, até onde se respira e as velas se tornam pandas… bela gávea é o que te digo! - e ficou-se por aqui. Nisso era elegante, ficava pela sugestão. Esse caderno era dele, tem rascunhos de alguns poemas dele, foi ele que me deu.
Olha, acabámos por vir para a metrópole porque a tua mãe não gostava daquilo e eu tive uma chatice no jornal. Sabes o que nos lixa na vida: a mania cristã de ser amistosos com os odiosos. E eles afinal são tão obstinados que se estão nas tintas para a reciprocidade, a única coisa que os move é galgarem por cima de ti, ou lixarem-te se atravessas o caminho deles. Nunca soube lidar convenientemente com esta situação e sei que profissionalmente fui várias vezes preterido por gente menos competente mas diante da qual eu cedia devido a este meu princípio estúpido de procurar em primeiro lugar a harmonia, o equilíbrio, um clima amistoso, um certo compromisso. É uma chatice quando temos a manivela da agressividade avariada e confiamos como anhos na palavra dada, acabamos por condescender com os tipos de mau fundo, os que à primeira te fazem a folha. É assim, mas como ouvi ao Craveirinha, «não se muda facilmente o coração para o ramo da construção». Ora, no jornal havia um afilhado do director, um jovem ainda, com menos uns dez que eu, a quem apanhei a falsear uma notícia. Em vez de o denunciar logo, quis endireitar o que estava torto, fazer-lhe ver que procedia mal, mas que podia corrigir a conduta… enfim, o teu pai era um padre. E afinal era mais que criancice, o tipo tinha sido pago por alguém para isso, e ficou lixado de eu lhe ter comido aquele dinheirito. Tece de imediato uma rede de intrigas que em poucos meses me pôs fora do jornal. O que me valeu é que tive nessa altura um convite do teu tio para regressar a Portugal e ir trabalhar para o Diário Popular. Ele nessa altura tinha sido promovido a chefe das máquinas e precisava de recrutar três ou quatro tipógrafos. E voltámos.
Aí fomos viver com o teu tio Manuel… e com a megera que ele tinha em casa. O amor, e tu ainda não sabes nada disto pois tens tomado o afecto pelas artes do perdulário, o amor precisa de uma respiração clemente, algo como a pequena brasa que incandesce o tojo. Pobres os que o confundem com a ruidosa arte do gargarejo. Mas o teu tio era assim: gostava das aparências, de armar-se e de mulheres que se armavam... E vai arranja aquela galinha da índia. Ou antes, da Mongólia. Nos seus olhos mongóis lia-se: o mundo é constituído por mim e pela jazida de feldspato que eu piso. Para aquela megera o mundo tinha sido criado para lhe aparar a mise do cabelo, os caprichos, os gritos… e se ela gritava, meu Deus. A tua tia esmifrou-o completamente. Eu avisei-o. Vi a rês que ela era no dia em que vinha do emprego e a encontrei sentada numa esplanada no largo da igreja, a bebericar um porto e a matutar, Então Emília, não vem para casa. Não vou já, tenho de resolver uma coisa… Mas que tem, tão pensativa… Não sei que hei-de oferecer à minha mãe no dia dos anos, diz-me ela; Mas ela é assim tão esquisita? Não, mas já tem tudo o que eu preciso…
O teu tio era mecânico dentário, naquela altura era uma coisa nova e ele podia ter ganho muito dinheiro, foi a Espanha, passou lá três anos a aprender aquilo, chegou e montou uma oficina, mas conheceu-a um mês depois, e ela esmifrou-o desde a primeira hora. Depois fugiu com o Frazão da farmácia. O tio não ficou muito bom. Tinha escondido tantas vezes a sua sombra debaixo do tapete que lhe perdeu o rasto. Porque a gente não pode dizer uma coisa às cinco da tarde, jurar pela alma de quem for que assim é que vai ser, e às dez da noite seguir tudo o que a mulher quer. O negócio até lhe corria bem, mas ele ficou à nora e de carretos trocados. Saiu de casa, deixou uma casa para nós e alugou uma vivendinha para ele. Foi-nos mostrar a casa e tinha um colchão na varandinha da frente. Era para ele dormir. Pergunta a tua mãe, ó Victor porque não dormes lá dentro. E ele: aluguei a casa para alojar o medo. Dito por ele, não estou para aqui a fazer literatura. Uma casa para alojar o medo. Ele dormia cá fora, sob o alpendre, para ter o prazer de sentir o seu medo confinado. Na garagem guardava todos os pertences de que o medo não se tinha apoderado, naquela longa coabitação que era a deles. Do material de jardinagem, por exemplo, só reservara à garagem o cortador de relva, nem sabia porquê, mas a maquineta nunca lhe suscitara o mais leve broto de inquietação, a menor fantasia horrífica. Mas a tesoura de poda, os ancinhos, adubos estavam dentro de casa. Até o amplificador da aparelhagem, que ele foi a primeiro a ter na família, sabe-se lá porquê, tinha enfiado dentro de casa… e a casota do cão mais o seu hóspede, cuja imagem não se livrou da dentada de ratazana, afincada quando ele pusera a mão lá dentro para mudar o forro de jornal do chão. E começou a ficar lélé, a dizer, ia pela rua a dizer em voz alta: «quando a vi, percebi logo, tinha de amar aquelas narinas, de fazer história no modo como respiram, ser os pulmões onde a caixa do seu coração repousa…». Tínhamos isto na família, vinha do meu pai, nem quando enlouquecíamos dizíamos coisas desconexas, fomos educados para manejar o verbo. Foi o que lhe valeu, tornava-se risonho e como toda a gente o considerava meio doido isso livrou-o de ser preso pela Pide, que com ele não havia enredos e largava as postas de pescada consoante as pensava.
Foi nessa altura que aconteceu. Dois anos depois de uma promessa sempre adiada. Acordámos e sentimos um sururu no café, debaixo de nós. As vozes subiam pelas paredes, cautas, mas era um burburinho imparável. Fui à janela e a própria cidade borbulhava; a nossa rua, normalmente tão recatada, parecia envolta, como o bacalhau com natas, numa prata de silêncios e sílabas húmidas, vivas. O contrário do que era hábito. Abri a rádio e, diziam os cabrões, o país estava de luto; só havia música fúnebre, solene, e palavras pesarosas… Isso, o Salazar tinha morrido. 
Lembrei-me imediatamente de uma promessa que tinha feito ao Craveirinha, tínhamos feito um pacto. E contei à tua mãe. Ela ficou num estado de nervos e procurou demover-me. Foi acordar a tua avó e depois de cochicharem a sós vieram as duas num choradinho, mas eu estava irredutível. Os teus filhos, guinchava a tua mãe, que vai ser dos teus filhos, mas há coisas que os homens têm de fazer para libertarem a bílis e se manterem à tona da dignidade e aí o que tem que ser ter mais força que tudo. Vesti-me e saí para o trabalho, com um sorriso nos lábios. E crê, meu filho, que é uma das coisas de que me orgulho, podiam até escrever na lápide, fulano fez x no dia y, e isso resumia a minha vida, porque se há algo que dê sentido a uma existência são os pequenos nada onde um homem cabe inteiro e pelos quais sentimos que o pomar da nossa vida está maduro.  
No dia seguinte, recebi um telegrama do Zé: ele não tinha faltado ao compromisso, e como eu, no dia anterior tinha posto a gravata vermelha.
  



terça-feira, 12 de maio de 2015

JOSÉ ANGEL VALENTE: CONSINTO


De José Angel Valente, um dos poetas que prefiro, novas traduções


CONSINTO

Devo morrer. E no entanto, nada
morre, porque nada
tem fé suficiente
para poder morrer.

Não morre o dia,
passa;
nem a rosa, que
se apaga;
resvala o sol,
não morre.

Só eu que toquei
o sol, a rosa, o dia,
e neles cri,
me consinto a morrer.



A CABEÇA DE YORICK

Ei-la, a cabeça de Yorick
pelada e redonda: examinemos
a mona do bufarinheiro,
o alegre conca
onde bailava um olho,
a sua fronte da qual se escamou
o pensamento, para sempre evadido.

Tomemos-lhe a cabeça
como um cofre oco
onde já nem o ar finge
um resíduo de alma.

Este era Yorick,
de pés e riso lábeis
e palavras certeiras.

Sopesemos na cabeça
o seu silêncio,
por uma vez despido.

A glabra cabeça
de Yorick: examinemos
a redonda mona de Yorick
o bufarinheiro e deixemo-la
cair de novo no pó
como se nos decapitássemos.




O ÓDIO

Entreolhamo-nos medindo
o alcance feroz da pupila.
Segue-se um abraço mortal
e rodamos unidos.

Já quase confundíamos
nesse estreito nó
que corpo golpeávamos,
que coração sondavam
as nossas odiosas garras de aço.

Primeiro havia luzes
como num ringue, espessos
gritos, humana sede de sangue.
Alguém contava
os golpes até dez, até dez
os derrubes, até dez
mil o amarelo arquejar do rancor.

Depois houve um apagão.
lutávamos no meio
de um escuro deserto
de areia ou de cinzas
que o ódio calcinava.

E ao redor a noite a noite
anoitecida, até romper-se
o breu em alaridos
de recatada sombra.

O espanto rodava
como um rochedo imenso
e os corpos unidos
era um só, corpo
toldado de amor que o ódio
sorvia até às fezes.



ROTAÇÃO DA CRIATURA

A semente contém todo o ar;
o grão é apenas um pássaro enterrado;
a nuvem e a raiz sonham o mesmo;
a seiva abre a palma da espiga
onde o sol e a chuva se recriam
e amassam com o seu amor o pão quente;
o céu do avesso olha para cima
e aponta para a sua abóbada terrestre;
a terra chove céu abaixo pássaros
e o céu fecundado em primavera
multiplica prazenteiramente a sua luz;
o sonho é um sonâmbulo vigia
e o despertar o seu sonho verdadeiro.

No olho de Deus verde e profundo
a primeira semente ainda busca o fundo,
e tudo gira ali do limo ao homem
para que o mundo comece todavia.



COMO A TERRA SECA ABRE

Como a terra seca abre
a sua dura entranha à água
como o golpe de um cavalo força o horizonte
e faz saltar o coração dos limites
da vida indefesa: assim vieste tu.
Reconheço-te.
Assim chegaste. É o tempo
da dor. É o tempo, pois, de alçar-se.
Tempo de não morrer.
                                         Pois vieste
quando até à sua raiz os meus ossos
a pena quebrantava.
Assim chegaste, assim vieste tu,
fidelidade sem fim que me ata à vida.
 



AS LEGIÕES ROMANAS

Ainda se batem as legiões romanas
vai para cima de dois mil anos
nos pântanos e nos arrozais.

Um Buda torto de olhá-las passa
errabundos salvos-condutos ao loto e à tartaruga

O inimigo foi aniquilado
quatro mil vezes em tantos dois mil anos
e as legiões ainda se batem
contra os mesmos mortos.

Como?

Ninguém recorda como começou tudo
ou a quem atribuir a culpa
nem porque a vitória não gratifica
as heróicas águias que caem, caem, como tordos.

Um pato chapinha num pequeno charco,
o bambu é inflexível,
secreto o limo nos canaviais.

Chegam novas águias enviadas
pelo remoto Capitólio, de Pompeia
as gomas para mascar (costume deste povo
de requintados colossos), o sexo em latas
e um grande e encarniçado dólar 
de nova fabricação ou impressão
para todo o império, império
sacro, pelos séculos
dos séculos. 
                      Saúde.



SEGUNDA HOMENAGEM A ISADORE DUCASSE

Um poeta deve ser mais útil
que algum outro cidadão da tribo.

Um poeta deve conhecer
diversas leis implacáveis.

A lei da confrontação com o visível,
o traçado das linhas divisórias,

e o a da colocação dos diques
e a sumária lei do círculo.

Ignora, em troca, o regicídio
como figura de delito
e outras falsas palavras da história.

A poesia há-de ter por fim a verdade prática.

A sua missão é difícil.




CRÓNICA, 1968

AS PALAVRAS apodrecem.

O que dá uma palavra dá um dom.
O que dá um dom deixa vazio o ar.
O que esvazia o ar coloniza a terra.

Mas debaixo da terra as palavras apodrecem.
Enche-se a palavra dos tristes soluços do animal enfartado,
dum soluço do mais longevo hipopótamo,
e por muito que brilhe o seu arco-íris não traz a paz,
apenas o estalido duma salivação sebácea
e o deglutido filamento da morte.

As palavras apodrecem, são devolvidas
como pétreo excremento,
sobre a noite dos humilhados.




CRÓNICA II, 1968

Todos os que têm pontos de referência no espírito, quero dizer de certo lado da cabeça, em zonas bem delimitadas do cérebro, todos os que dominam a sua linguagem, todos aqueles para quem as palavras têm sentido, quantos crêem que existem alturas na alma e correntes no pensamento, os que são o espírito da época e assim designaram essas correntes de pensamento, penso nos seus trabalhos precisos e nesses guinchos de autómato que a todos os ventos empresta o seu espírito,
- são uns porcos.



ANÁLISE DO VENTRE

Aquele ventre era para ser observado com lupa,
pois sob a lente cada pequena prega,
cada rugosidade se fazia
multiplicado lábio.

O amor, demasiado brutal,
jamais repararia,
a petulante viril paixão,
que consome o ar num só trago inútil,
jamais repararia.

Mas nós, minha amiga, analisemos
com a frialdade habitual a que só o poema
se presta
a difícil paixão do menos visível.



VISITA A GUANABACOA
 
Convém percutir.

Convém que o tambor nos possua.

Porque no tambor está, disseram-nos,
o ruído sem fim do fundamento.

Com a pele do peixe fizeram um tambor,
mas o peixe era um deus.

No cântaro da virgem entrou um peixe,
mas o peixe era um deus.

O cântaro era o ventre
da filha de um rei.

O rei sacrificou ao peixe
(mas o peixe era um deus)
e ouviram na sua pele
e na pele do tambor
o som.

A virgem baixou à margem das águas
e entrou na sua entranha o peixe.

Desde o tambor escuros se levantam
o deus, o peixe,
o ritmo, o som,
o insufocável som do fundamento.