domingo, 15 de junho de 2014

TRÊS NOTAS SOBRE A CATÁBASE

                                                                          Soutine

Recuperei uma palestra, que julgava perdida, e que dei no Instituto Camões, em Maputo, em 2009. Aqui fica:

1
A Catábase designava, na Antiguidade, a viagem iniciática ao Inferno. A que foi empreendida por Ulisses, no intuito de consultar Tirésias, ou por Eneas ou Orfeu; a que desbaratou o siso de Perseu.
Há um inevitável factor de desmesura neste itinerário, cujo alvo inconfessado, para além do desafio de sobreviver à experiência, visa reactualizar a ressurreição que juntou as partes despedaçadas de Orfeu/Osíris numa nova unidade ou síntese, sob o regime de um olhar renovado.
Pessoa, Herberto, Lispector têm precisamente a ligá-los a desmesura, a hybris grega, uma propensão a espreitar por cima do parapeito que delimita os horizontes do representável e uma inclinação para passarem do subjectivo para o transpessoal. Mas já lá chegaremos.
Escreveu Pessoa: «Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência consiste só em classificar, ignoram em geral que o classificável é infinito. Mas no que consiste o meu pasmo é em que ignorem a existência de classificáveis desconhecidos, coisas da alma e da consciência que se encontram nos interstícios do conhecimento» (citado em Valente:2002:41).
Muitos versos de Pessoa dão testemunho destes “classificáveis desconhecidos”, versos que não deveríamos ler como metáforas mas como afrontamentos, projecções ou catarses, pois repetidamente a sua obra testemunha que o poeta viveu a experiência de uma desestruturação da consciência, da qual se encontram indícios, sobretudo, em poemas de Fernando Pessoa ortónimo. Pergunta-se explicitamente em A Múmia, «De quem é o olhar /Que espreita por meus olhos?», ou leia-se esta descrição, num dos sonetos de Passos da Cruz:
«(...) A noção de mover-me
Esqueceu-se do meu nome.
Na alma meu corpo pesa-me.
Sinto-me um reposteiro
Pendurado na sala
Onde alguém jaz morto.
Qualquer coisa cai
E tiniu no infinito
Esta estrofe dá a ver, com a violência de uma fractura exposta, uma clara dissociação da consciência, numa montagem muito rápida. À disjunção do nome associa-se a ameaça da “queda” por excesso de gravidade do corpo, ao que se segue o cadáver e a metempsicose, com o sujeito poético a “encarnar” num reposteiro; finalmente, os últimos dois versos atestam algo de tremendo, uma impotência diante de forças maiores, insubordináveis, que nem a morte afastam, pois tinir no infinito é como não tinir.
Um susto irreparável, portanto, que aplaina a veleidade de crer-se útil qualquer estabilidade identitária (para quê, tinir no infinito?) face à indefectível oscilação dos nomes e que conhece o seu contraponto e defesa, no que registou o heterónimo Carlos Pacheco: «Sentir a poesia é a maneira figurada de se viver./ Eu não sinto a poesia, não porque não saiba o que ela é/ Mas porque não posso viver figurativamente».
Sobrepuja, deste modo, em Fernando Pessoa a justaposição dos planos ontológico e espiritual, operando a literatura como a catapulta de acesso à metanóia – uma mutação da vida e da consciência.
O que torna a metanóia imperiosa? A evidência de estar imbricada na experiência espiritual a questão do Mal. A metanóia será, corolariamente, o resguardo de reversão face à presença do Mal Absoluto – essa entidade que separa e dispersa por força da sua profusão não integrada dos símbolos. Não se estranhe assim, detectou José Gil, que Deus seja um termo que se impõe constantemente nos poemas de Campos «para indicar o ponto último de um absoluto que o poeta quer atingir: o ser tudo e todos os outros, viver tudo de todas as maneiras e”amar as coisas como Deus”, como se lê em Passagem das Horas» (Gil: 1993:20) .
Também Bernardo Soares – continua José Gil – anseia por, a expressão é do próprio, “descascar as sensações até Deus”, no ensejo de conseguir “ver o Polícia como Deus o vê” (Gil:1993:20).
Caeiro, pelo seu lado, unifica todas estas contradições, atingindo a realidade das coisas sem as deformar, conclui José Gil.
Qual é o conseguimento de Caeiro, aquilo que leva Pessoa a considerá-lo seu Mestre, ao ponto da sua escrita se ter transformado depois da erupção de O Guardador de Rebanhos?
Caeiro chegou à arte de esvaziar, ao descasque da “doença dos símbolos”. Caeiro – elucidou José Gil com uma enorme clareza - diz as coisas, os seres, para que eles sejam eles mesmo e não para os congelar naquilo que eles são para nós. Diz a rosa com a linguagem da rosa, as cores são cores na cor e não na asa da borboleta. Caeiro remove das coisas o halo de subjectividade, de juízo, de opinião que as recobria e restitui-as a alèthéia, essa verdade grega que deve ser entendida como ausência do esquecimento, ou o levantar do véu que oculta. 
De que modo se alcança esse descascamento essencial de Bernardo Soares, que nos devolve ao olhar inaugural, à perspectiva do alienígena que recém-chegado à terra mira pela primeira vez as coisas na sua singularidade e diferença - subtraídas ao pesado manto das suas intersecções?
Chega-se lá por uma inversão das categorias, um desencaixe sucessivo dos dispositivos lógicos que governam a razão, despertando o falante para novas paisagens até então obstruídas pela ganga da memória:
«Procuro despir-me do que aprendi
Procuro esquecer-me do medo de lembrar que me ensinaram
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a natureza produziu”.

Rimbaud, na célebre carta ao seu professor Izambard em que dá como desígnio do poeta a Vidência, explicava o seu método: «Trata-se de chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos». É inteligível uma correspondência entre o “descascamento essencial” de Bernardo Soares e esta “exaltação dos sentidos” até à sua despersonalização proposta pelo autor de uma Temporada no Inferno; e apesar da diferença de recorte entre o método negativo de Soares e a emulsão em contra-luz de Rimbaud o objectivo coincide.
O desenlace desta aventura pode germinar a loucura, devido à obliteração de um ponto de fuga que impeça a lógica de se tornar numa estrela negra, como, veremos adiante, acontece na paranóia. A loucura, que Fernando Pessoa sempre temeu e que testemunha pela pena de Bernardo Soares: «Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de um vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas bóiam todas as imagens que vi e ouvi no mundo – vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo» (citado por Gil:1993:61), vertigem que  não cessa e se prolonga noutro fragmento: «A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vácuo» (citado por Gil:1993:73).
Este estado, que antecede o Inferno, desprende-se normalmente de um excesso de serendipidade. A serendipidade, técnica muito apurada por Sherlock Holmes, designa a arte de transformar detalhes insignificantes em indícios, logrando, e paradoxalmente, reconstituir um puzzle através das suas “zonas cegas”. Método que substantiva o engenho dos detectives, nos filmes policiais – eis o lado bom da serendipidade. O seu lado mau des(p)enha-se na paranóia, estado alterado da consciência, onde, mercê da sua presença excessiva, abafadora, todos os sinais, objectos e palavras são de tal forma saturados de conexões e significados que parecem conspirar contra nós, decepando a inocência do mundo, ou decalcando-a em constelações de sentido que nos visam. Fica tudo saturado de sentido.
Lê-se numa nota de Pessoa de 1910, ainda em inglês: « Há para mim – houve – toda uma riqueza de significações em coisas tão ridículas como a chave de uma porta, um prego na parede, os bigodes de um gato. Há para mim toda a plenitude de sugestões espirituais numa galinha que atravessa a rua com os seus pintaínhos.» (Pessoa:86:22)
Quem está possesso e navega nesse limiar não descontrai, não encontra fuga, um patamar para a distracção da óptica, o bigode do gato ressalta como a chave que faltava, o mais ínfimo pormenor conta e confirma – o exterior, numa brutal introjecção, vaza-se inteiramente no interior.
Mas não é sempre negativa a serendipidade: quando vivemos saudavelmente num estado poroso, ler os sinais pode trazer-nos coisas surpreendentes.
Para escrever esta comunicação, andava há semanas à procura de um verso de Pessoa que não encontrava. Anteontem adormeci no sofá da sala e acordo a meio da noite. Olho para a parede e soergo-me num susto: a sombra recortava o deus Ápis, à minha cabeceira, com o seu tronco de homem e a sua distinta cabeça de touro. Olho para a varanda e percebo que uma camisa estendida, presa por duas molas, e uma caixa esquecida no parapeito da janela, montava a aparência daquela sombra. Suspiro aliviado, e então repego num livro de José Gil que me faltava acabar. Reparo num capítulo intitulado “O Egipto e a Escrita Heteronímica” e, intrigado pela coincidência, retomo a leitura por aí. E não é que encontro, citado, o verso de Caeiro que me fugia há semanas e que diz assim: «ser real quer dizer não estar dentro de mim»? É tramado.
Quem está, pois, dentro de mim? Eis o fulcro do susto. Eu ser-me abrupta e totalmente exterior é o que qualifica a percepção a que Rimbaud chamava a “visão objectiva”, a que é captada por um crivo essencialmente não subjectivo e nos afasta do empírico (Rimbaud foi, com efeito, após insinuação de Jean-Paul, quem primeiro fez sua a verdade da impessoalidade da linguagem e da sua particular independência de toda a subjectividade). 
Esta passagem da mira subjectiva para uma pauta transubjectiva da realidade foi a meta de alguma modernidade, desde os seus primórdios. “Ver o polícia como Deus o vê” não é vê-lo como eu o vejo, ou o ladrão, ou a mulher, mas como Deus vê – em 360º, como na breve amplitude inaugural e totalitária do amor. 
Rimbaud, o que na tradição literária ocidental mais explicitamente falou de uma presença de impessoalidade na linguagem, jurava: Eu é um Outro, e dizia Pensam-me, em vez de Eu Penso. Aliás, On me pense, faz trocadilho com On me panse, que significa “cavalgam-me”, como quem vinca: sou a sela de Algo maior do que Eu (Guerdon: 1980:88). O que Pessoa corrobora em Passos na Cruz: “Não sou em quem descrevo. Eu sou a tela/ E oculta mão colora alguém, em mim”, ou no soneto XI, do mesmo ciclo: “Emissário de um rei desconhecido/ Eu cumpro informes instruções do além/ E as bruscas frases que aos meus olhos vêm/ Soam-me a um outro e anómalo sentido”.
«Essa vontade de construir-se fora de si, de objectivar as suas fantasias ou intuições, tornando-as palpáveis para si e para os outros, é condição essencial à criação artística», lavrou o poeta e crítico de arte brasileiro Ferreira Gullar (Gullar:1999:56).
Contudo, previna-se, esta “construção fora de si” não incita a qualquer idealização mística nem se traduz em supinos olhos em alvo, subentendo fontes anteriores ao acontecer da obra: é apenas uma refocagem do olhar, a mutação que, esvaziando o artista dos seus à priori, descondiciona a sua percepção, fazendo-o captar o mundo dos objectos no avesso do seu uso e função: numa súbita dimensão de presença
Podemos agora chegar a uma outra definição do que significa Catábase, que pedimos emprestada a Jung – ele não se importa. Diz o psicólogo analítico: «a catábase expressa o mecanismo de introversão da mente, do consciente em relação às camadas mais profundas da psique inconsciente. Desse nível derivam conteúdos de caráter mitológico ou impessoal...»(subl. meu)(Jung:1971:64 ).
Neste fundo impróprio opera-se a passagem de uma visão subjectiva, ainda psicológica, para a visão transpessoal – a qual eclode no exterior do confinamento psicológico.
Vemos deste modo como a poesia, ao contrário do que alvitravam Platão e Sócrates que faziam da escrita «um divertimento em que o sério não está implicado, que deverá ser reservado para as horas de recreio, semelhante àqueles jardins em miniatura compostos artificialmente para ornamento das festas e chamados jardins de Adónis» (Blanchot: 2002:18), é mais do que um passatempo adestrável e - eles sabiam-no - pode suscitar riscos insusceptíveis de serem controlados, visto que assalta as muralhas onde a identidade aquartela uma impressão de domínio.

2

Foquemo-nos agora no segundo convocado desta noite: Herberto Helder. O Herberto é um poeta de génio, talvez o que mais se aproxima dessa figura romântica em Portugal, depois de Pessoa.
É tão celebrado como enjeitado por causa do seu pretenso hermetismo, que não se compadece com a pressa contemporânea e exige uma leitura por incubação. Ademais acontece que, como lembrou o próprio, «é preciso achar as chaves – às vezes é fácil, às vezes difícil» (Helder:95:59).
Crê José Gil, e eu comungo, de que ao contrário da ideia-feita de que a heteronomia tem raízes na esquizofrenia, devem considerar-se «os heterónimos como o meio de que Pessoa se dotou para escapar à loucura, conservando-a sempre “à mão de semear.”» (Gil:1994:13). E por isso se pôde Pessoa entregar às mais excessivas experiências de despersonalização.
Herberto, por seu turno, em Photomaton & Vox, é muito explícito sobre a tarefa do poeta: «O dramático esforço de Orfeu, que desce aos Infernos para reunir a sua dispersão na unidade final do canto, é tarefa de cada um – e isso nos baste, mesmo que não sirva para nada, além de servir para a possível salvação de quem nele se empenha.(idem:141)» (sublinhado meu).
Pessoa, através do operador Caeiro, que foi o seu psicopompo - i. é, o guia da sua alma dilacerada pelas veredas do Inferno -, derivou da vidência desregrada de Rimbaud para a presciência de René Char – figura com que Blanchot distinguiu o estro de ambos (Blanchot:2002:34). O mesmo visa o poeta de O Amor em Visita.
Em Photomaton & Vox, ao estabelecer uma linhagem, Herberto sinaliza em Apollinaire e Cendrars a técnica necessária a um mergulho no fulcro infernal: «A paciência tinha enfim acesso a uma extrema intensidade da memória. Era simples ser múltiplo; bastava ter o centro em toda a parte» (subl. meu), e frisa adiante: «Esta seria a montagem ideal; a memória como tecido ininterrupto ou a permanência rigorosa do imaginário no tempo; e a ilusão do mundo, inesgotável» (subl.meu).  
Há em Herberto uma obsessão extrema quanto ao papel e às possibilidades da memória. Porquê?
Contemos previamente uma história, um episódio que acontece à Alice, no final do terceiro capítulo de Alice Por Detrás do Espelho. Depois de passar para lá da sua imagem no espelho e de abrir caminho no país que era um tabuleiro de xadrez, Alice penetra num bosque escuro onde, segundo o aviso que lhe deram, as coisas não têm nome. «”Bom, de qualquer modo é um alívio... - diz ela – depois de tanto calor, estar dentro do... dentro do... dentro do quê?, pergunta-se espantada por não conseguir pensar na palavra. Alice tenta lembrar-se: “Bom, isto é, estar debaixo do... debaixo das... debaixo disso, ora!”, disse, apalpanda o tronco da árvore.» Alice descobre, de supetão, que na floresta nada tem um nome, até que se nomeie.
O tremor de Alice diante do traço de apagamento que afecta os nomes e da sua súbita responsabilidade na renomeação do mundo associa-se em Herberto ao eco que lhe trouxe a morte da sua mãe quando o poeta era criança. A mãe que o ensinou a nomear o mundo, iniciou-o também no opaco, na roedura incomensurável da morte, e, enigma maior, com o poeta nasceu a palavra e ao mesmo tempo a morte.
A morte chega pela mesma embocadura da palavra. Esta funesta coincidência repercute-se na pergunta fundamental: pode-se renomear o que é perecível? É-nos reservada alguma dimensão intersticial que nos subtraia ao embate e apagamento no destino? Podem achar-se outros vocábulos, outros ritmos, outras inerências para a nomeação que contrariem a fagocitação da morte, o seu halo sobre tudo?
O primeiro elemento em que o poeta busca um antídoto é na água, como Tales de Mileto. E lê-se:
«E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor»
Mas veio a morte e sufocou em aspas incondicionais o amor da mãe.
Em Húmus, um dos seus poemas nucleares, assiste-se a uma luta entre o inferno e o sonho. A palavra, transporte do sonho, incita à metamorfose, como se lê neste excerto, mas subsiste nela uma cruel ambivalência regressiva:
«A pedra abre a cauda de ouro incessante,
somos palavras,
                          peixes repercutidos»
A metamorfose contagia o vocábulo “pedra” assim que é nomeado, munindo-a de uma “cauda de ouro incessante”. Não obstante, de imediato sobrevém o desmentido da iludida operação alquímica: somos palavras (ecos), peixes repercutidos. Repercutidos por outrém e não peixes iniciais, presenças em status nascendis. Reagimos, não urdimos a combustão do mundo, somos antes a matéria que é ardida – embargada e muda. E a seguir sentencia-se: “só a água fala nos buracos”. Só a água, o seu fluido proteiforme adaptável a todos os formatos, é uma energia vivificadora – imune à erosão da morte, à tremenda iniciativa com que cava buracos em qualquer meteria ou carne.
Como adquirir a memória da água – a sua capacidade para emergir, singrar, fluir, à tona, em terrenos improváveis? Incide aqui um dos mistérios da poesia: o punch do poeta potencia-se pelo despojamento do Eu, se aceitar para si, a volubilidade da água, uma natureza que flui sem depositar resíduos. Leia-se a seguinte estrofe:
«Há no meu esquecimento, ou na lembrança
total das coisas
uma rosa como uma alta cabeça
um peixe como um movimento
rápido e severo.
um rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada. Há copos, garfos, inebriados
dentro de mim
- porque o amor das coisas no seu tempo futuro
é terrível,
profundo, é suave, devastador»
O que se enuncia aqui? A abrir, a constatação de que que a lembrança total das coisas depende do meu esquecimento. Depois, nesse outro nível da lembrança total, vemos como o peixe a rosa se enfeixam n’Um, duas manifestações copulativas que reatam uma energia aglutinadora (- Empédocles não está nada distante desta reminiscência processada por uma lógica copulativa). Temos por último que os copos e garfos, dois signos da materialidade exterior, volvem interiores, configurando a promessa de um futuro a um tempo terrível e suave. Qual a razão desta polaridade? A simples constatação de que despir o ego para entronizar uma transubjectividade é um passo que nos coloca no limiar do pavor. E será necessário superar esse medo, será preciso confiar que apesar de “tudo morrer o nome noutro nome”, num constante deslocamento, como se lê num poema, isso pode não ser um fim. Basta, se nos situarmos como a Alice no vértice hipotético da re-nomeação, não descurar a possibilidade de redesenhar o atlas das nossas coordenadas
Em certas sociedades como o Antigo Egipto a linguagem tornava verdadeiro o que afirma verdadeiro, sobretudo se esta verdade é narrada. A própria narração institui um certo poder: repetir o mito é participar dele, contar um milagre perpetrado por um santo provoca a repetição do milagre. 
Herberto Helder, na súmula que intitulou Ou o Poema Contínuo, na qual abre pistas e fornece chaves para a sua obra, insiste na vivificação de um mito: o da ressurreição do incriado – do que, por não ter sido ainda nomeado, está arredado da aritmética humana.
A ressurreição do incriado pode ocorrer na (re-)montagem do poema, se lhe acorda uma memória outra, estabilizada pela plasticidade que emerge de uma nova coincidência da linguagem consigo própria, momento em que tudo flui de novo como água. Por isso, o poeta alude (em P&V) «ao que tem lugar na ressurreição do instante imediatamente anterior à morte». Como se o moribundo virtual, num golpe de rins, “florescesse” para vida e não para morte – e, cristicamente, ressuscitasse. Faz sentido convocar aqui um filósofo romântico, pela pena de Eugénio Trias: «Que quiere decir existencia? (em Shelling): ser fuera de toda causa, ser lanzado, fuera de la causa».
O objectivo está desenhado: forçar a ressurreição do instante anterior à morte da mãe, reactualizando nesse avatar a ductilidade da vida anterior à calcificação dos nomes e das categorias. Voltar ao indistinto caos amniótico, uterino, onde a criança sonha – ainda com o inferno muito longe de si. Ou, no mínimo, propulsionar na intensidade de um nó (uma sílaba percutida até vibrar) a ressurreição futura do filho: aí, o poeta, desprendido do arrepio sacrificial do tempo (queda ilustrada em metáfora brutal: «o corpo é um buraco onde cai o corpo»), vê-se fora de toda a causa.
Daí que, no poema que culmina a montagem de Ou o Poema Contínuo, adquira uma enorme importância o eco das vogais da palavra redivivo. Redivivo significa: aquele que voltou à vida, ressuscitado - e o som das suas vogais, se repetirmos contínuamente a palavra em voz alta, abre-se em delta como o mantra om dos budistas.
Explica Roberto Calasso que «para os videntes védicos a evanescente substância sonora da sílaba é celebrada como o indestrutível, como “o não fluente”, a-ksara. De todas as coisas se pode espremer um sumo, um sabor, “rasa”, diz o Jaiminia Upanisad Brahamana. Mas não da sílaba, posto que a sílaba é já em si a seiva de tudo. Por isso subsiste, imaculada, inesgotável. Tudo flui da sílaba (...) E quando mais tarde, aksara, a Grande Sílaba, é identificada com um som, este será Om, que é uma interjecção e não um substantivo
A percussão das consoantes no vocábulo «redivivo», a suspensão dos “is”, a metamorfose do “e” inicial em “o” final, imprime igualmente à sua massa sonora uma circularidade que recoloca a última sílaba do verbo no ponto de partida, como se abrisse uma brecha no tempo linear ou fossem admitidas mudanças no fluxo do tempo, tornando-o mais manejável, com inversão de marcha, reversivo.
Fecha assim o poema:
«Redivivo. E foi por essa mínima palavra
que apareceu
não se sabe o quê que arrancou
à folha e à esferográfica can-
hota a poderosa superfície
de Deus e assim é
que te encontraste redivivo
tu que tinhas morrido um momento antes,
apenas.»
O poeta redivive pelo negativo de Deus – superfície arrancada à página. 
Esclareça-se que Deus é em Herberto Helder (P&V) uma potência que se manifesta pela unidade rítmica, uma espécie de inteligência não adstrita – como o inconsciente – que nos fascina, hipnotiza, e dispersa a atenção, até nos perder no extravio de si mesmo. E escreve: «Deus dorme, dentro de um sono pesadíssimo e por isso pesa tanto aquela cabeça». E nós somos os seus sonhos dispersos.
Herberto participa da convicção, que nos chegou do sono de Brahma e penetra em Santo Agostinho, ou Nicolau de Cusa, de que Deus é «contracção» ou absconso - Deus absconditus, escondido de si mesmo. O mesmo Deus de Jacob Bohme, de Schelling: «Dios es el ser que dispone de un fundamento que es matriz, que no es Él mismo, sino una natureza oculta». (Trias:1995:142) O que nos suspende num abismo sem fim.
Por outro lado, em Herberto rastreia-se também o enlaçe com o aforismo luminoso de Héraclito: «Os imortais são mortais e os mortais imortais. Eles trocam perpetuamente a vida e a morte». A extrema dispersão de Orfeu, no Inferno, será a mesma de Deus e cabe ao poeta unificá-la, superando o particular ritmo da retirada, ou da ocultação do divino (e a melancolia que deixou como rasto), e despertar na passada um novo Deus, uma relação inversa, uma nova instância rítmica. Avisava Rimbaud, falando de Deus: «Quando eu for toda a vossa memória – seja aquela que sabe garrotar-vos – estrangular-vos-ei», num ímpeto tão semelhante ao que exortam os mestres zen: «Se encontrardes Buda, matai-o!». Desafio que Mallarmé também não deixou por mãos alheias: “antes de aceder a qualquer contacto com o divino, impõe-se, portanto, o assassinato de um ser chamado Deus” ( CALASSO:95:142).
Como Orfeu, o poeta é aquele que percorreu toda a distância do profano ao sagrado e cuja memória é vidência: a fórmula é de Mandelstam mas elucida o desígnio herbertiano, em quem a imaginação emulsiona o pensamento mágico, única energia que perserva o rio do não-esquecimento; não para reiterar a deificação mas para despertar no sagrado a auto-reflexividade que torna reversível o tempo e traz à luz a sua lei: não somos, devimos.

3
A Paixão Segundo GH, da brasileira Clarisse Lispector é o terceiro apeadeiro nesta nossa viagem por terras do Tártaro.
A novela, a sermos sucintos, narra “o encontro de terceiro grau” entre uma dama de classe média e uma barata, no devoluto quarto de criada do seu apartamento.
Um feixe de pequenas incidências ordena uma experiência de teor místico, a partir desse breve encontro.
Primeiro ocorre “a colisão”, num pasmo doméstico, que desencadeia o asco físico e o intempestivo esmagamento da barata na porta do guarda-vestidos. Depois a reflexão desperta a consciência de uma identidade cénica face a face com o tempo imemorial que a periplaneta americana representa, e avoluma-se em GH a sensação de não passar de um mero atributo da barata, na sua imperceptível longa duração: «o mundo não tinha mais sentido humano, e o homem não me tinha mais sentido humano» (GH: 66).
Segue-se «a gradual redução dos sentimentos, das representações e da vontade, a perda do eu» (Nunes:1989:63), o que abre espaço para o contacto; ou antes, para o desbordamento do ser esvaziado numa identificação com o ser indiviso, instaurando aí uma situação de não-dualidade. Por fim, tem lugar a tentativa de «confirmar o seu estado de união, ingerindo a massa branca da barata esmagada, redimindo-se na e com a própria coisa em que participa» (idem:65).
Em que é que, afinal, participa GH? «Eu entrara na orgia do Sabath. Agora sei o que se faz no escuro das montanhas em noites de orgia. Eu sei! Sei com horror! Gozam-se as coisas de que são feitas as coisas – esta é a alegria crua da magia negra. Foi desse neutro que vivi – o neutro era o meu caldo de cultura. Eu ia avançando e sentia a alegria do inferno». E mais adiante atesta a personagem: «O que sai da barata é: “hoje”...»,(79).
Em certas narrações medievais o feliz encontro do monge com um pássaro e um jardim pode unificar subitamente o mundo e tranformar a percepção do humano, abrindo-lhe o ouvido ao entendimento da línguar solar, “a língua dos pássaros”. Então, pode ter lugar “a visão do paraíso” e o tempo dilata-se. A personagem adormecia debaixo de uma figueira-da-índia (é um exemplo), a ouvir um pássaro, e acordava 100 anos depois, convencido de que acordara para “hoje”, dado que esse momento de confluência, de unidade com todo o vivente, criara uma angra de refúgio para o instante que, tendo-o resguardado das tormentas da manifestação, lhe ampliara incomensuravelmente a duração (cf. Valverde:82).
O choque de G.H. é similar. Deparar com a prova de uma presentificação irredutível é coisa que a sidera, dado fugir à sua pauta de representações e supor algo de anterior ao humano. Mas tem mais: o seu “encontro” fá-la concretizar que – na esteira de Schelling, segundo a leitura de Trias – não há dissociação entre um “eu” e um “não-eu” (a barata), visto que aquilo a que chamamos não-eu não passa de um eu latente (a externidade imemorial do “hoje”), um eu adormecido (à ombreira do efémero).
Consequentemente, de que modo afastar, doravante, a clarividência de que o temporal emerge no humano como um colocar-se fora de si, num derrame que não se escamoteia? Aí, o inexpressivo (a massa branca da barata, “o agora do hoje”) exposto finalmente à luz revela-se diabólico:
«Eu estava sendo levada pelo demoníaco.
Pois o inexpressivo é diabólico. Se a pessoa não estiver comprometida com a esperança, vive o demoníaco. Se a pessoa tiver coragem de largar os sentimentos, descobre a ampla vida de um silêncio extremamente ocupado, o mesmo que existe na barata, o mesmo nos astros, o mesmo em si próprio – o demoníaco é antes do humano. E se a pessoa vê essa actualidade, ela se queima como se visse Deus. A vida pré-humana divina é de uma actualidade que queima» (97).  
Esta actualidade insuportável leva GH a compreender finalmente que na vida não podemos pôr o acento sobre x coisa em detrimento de outra e que aceitar todos os elementos da vida dilui as polaridades, integra os contrários, o belo e o horrífico, o humano e o inumano, o sentido e o absurdo, o evanescente e o impronunciável. Concomitantemente, o demoníaco é a tentação que precede a coagulação das categorias mentais.
Mas recapitulemos. Uma senhora, de estatuto e identidade bem definidos, entra no quarto da criada, que se despedira, para ver se na partida esta deixara alguma coisa para arrumar (subtil inversão dos papéis) e encontra um quarto imaculado, onde avulta peremptório, um guarda-vestidos. Abre-o e depara com umas antenas que exorbitam de um coágulo escuro, de uma fuselagem que brota do começo do mundo. O que a abisma na danação do tempo (uma porta, e os seus gonzos: eis uma clara isotopia do tempo) e na apalpação da impercepível cegueira do seu passo: «A barata é um tamanho escuro andando» (109).
A criada (ausente) é então a metáfora da nossa forma de empregar o tempo (sequencial, ordenada, causal “faz isto, faz aquilo...faz isto para aquilo”), enquanto a barata funciona como o nexo que activa a anamnese no perdulário caminho de uma vida. Processo que nos catapulta ao encontro do incondicionado.
E, imperturbável, o mistério canibaliza a acção: o que está para além da linguagem e prescinde de palavras de pensamento colhe um sentido que a palavra cinde? «Mas eu tenho muito mais, à medida que não consigo designar» – diz GH. Então escrever, admite Lispector no posterior Legião Estrangeira, é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Pescando no inapreensível, inumano, Todo, como se lê em GH: «Enfim, quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou, eu sou. (...) Da organização geral que era maior que eu, eu só havia até então percebido os fragmentos. Mas agora, eu era muito menos que humana – e só realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse, como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é inumano (...) E tal entrega é o único ultrapassamente que não me exclui. »
Talvez a urgência do humano ressalte, se entronize, depois de acolhermos a inumanidade que nos é intrínseca.
Uma tensão que se estende aos escritores destas notas e que se revêm na ideia de que compartilhamos a alteridade, ainda que não folguemos nela.

Mas, entretanto, eis Orfeu refeito, o ser descascado, e o polícia visto como Deus o vê. E como a sua irmã, que nele sempre confiou - ou não tivesse toda a verdade uma forma paródica

sexta-feira, 13 de junho de 2014

COMENTÁRIO A ANTES QUE TE ESQUEÇAS NÃO ESQUEÇAS

                                              MIRÓ, EM HOMENAGEM A MELO NETO


 "A poesia ensina a cair”, escreveu há semanas Luís Carlos Patraquim a propósito de Bagagem não Reclamada e de repente, depois de ter escrito Antes que te Esqueças não Esqueças, desce sobre mim a evidência de que é muito raro que vivamos a nossa morte, gastando o grosso da nossa vida a desejar passar o umbral à boleia, se possível clandestinos, incrustados na ilusão de que assim nos seja facultado regressar.
Uma morte de empréstimo seria o crime perfeito que o nosso consciente organizaria, sendo o papel da poesia desenganar-nos, resgatar-nos das falsas vias e motivar-nos a enfrentar o cerne dessa experiência indelegável. 
Porque, apesar de não haver saída, a dignidade de compor a meia diante do pelotão de fuzilamento distingue-nos da massa, torna nosso esse momento, impõe ao anónimo estupor da violência a presença dum rosto, o peso da nossa vigília, como quem entra por decisão morte dentro e não por engano dela.
Mas este gesto só nos habilita se executarmos o grito até ao fim, em vez de fugirmos à dor da sua trepanação.


Pequenos Projectos para Adorno das Inteligências Subtis, o belo título que fui pescar num ensaio de João Cabral de Melo Neto sobre “composição poética”, uma daquelas reflexões seminais que lida na devida altura nos faria poupar décadas de equívocos e nos mostraria como é improfícua e patética a guerra entre gerações, não mais que um momentâneo ardil para nos afastar do essencial.
Neste ensaio, ademais, levanta-se uma distinção que me parece crucial, a de que existe uma poesia que se lê mais com distracção de que com a atenção.
Não preciso de dizer que estou do lado do cultivo da atenção.
Está dito.



É espantoso como se têm multiplicado o número de séries televisivas de sucesso que andam em torno do trânsito e contágio entre mortos e vivos: Contacto, ou Médium, por exemplo. Para já não falar da verdadeira obsessão com vampiros ou zombies que se manifesta a qualquer exercício de zapping.
Não percebo como ainda se diz que a civilização ocidental padece de um excessivo racionalismo.
Há que livrar Descartes da calúnia.


Detenha-mo-nos nas circunstâncias:
cinco a um levou Espanha da Holanda. A Espanha não caiu de pé, caiu deitada. Estava como eu, de borco, que não vi o jogo. “Eles” também não, pelos vistos. Explicou um antigo guarda-redes que o Casillas não estava presente no jogo, que isso se via pela linguagem corporal. A inteligência às vezes também habita no futebol. O Mourinho já tinha visto isto, as “ausências” do inquestionável  guarda-redes.  Del Bosque não, até hoje.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

ANTES QUE TE ESQUEÇAS NÃO ESQUEÇAS/ CARTA A HERBERTO HELDER


Antes que te esqueças não esqueças
De me ensinar a deixar de explorar os mortos         
Por macios que nos pareçam,
Ou a minha compaixão os amotine.

E antes a usar a minha própria queda
Emprestando-lhe a asa de Durer
Se no perímetro a dicção não se me ajustar
À ocasião, ao trôpego acto

De capinar o coração,
Até que liberto de espelhos e fantasmas
Possa rufar sem eco. Sim, sê
Tu o meu Marteau sans Maitre,

Ou sei lá o que digo, sê a sede
Na fonte que nos sangra
E afinca ainda o dente à sombra,
Dispensando o baixo custo da métrica estrita,

Que para nós a morte é o luxo
Último de nos negarmos
A fazer da memória oração
Para sentirmos até à derradeira batida

Como ritmamos o mistério
Do espaço – o único vitral
Que nos situou e visitámos,
Lerdos e aflitos como a corola

Que abriu na mais despenhada noite,
Pelo ilimitado isolamento
Em que culmina a alegria.
Antes que te esqueças não esqueças

De me avisar que o céu também se enruga
E que o gesso de muitas décadas
De avícola existência
Às vezes degenera em alarido de megeras,

Em vaidade megalocéfala, engodada
Pela promessa de que em letra de Mefistóteles
Se faça ninho. Antes que te esqueças
Não esqueças de me colocar diante dos olhos

Os grampos, as pinças, o bisturi com que se maneja
O vazio sob a pele e os astros nas veias,
Essas amálgamas de escória e fantasmas
Que antecipadamente cozinham no sangue

O vil perdão da nossa morte. Afundar-se
Na própria profecia é o deslustre
Do diamante desfeito em carvão de coque
Ou o mar que respira na incandescente salamandra?

Antes que te esqueças não esqueças
De me penetrar com o teu turbilhão
Até que o nome fie mais pus e sujo
De luz, renhidamente, me aperte a garganta.



12 Junho de 2014

segunda-feira, 2 de junho de 2014

O CORPO IMPOSSÍVEL: O POSFÁCIO AO LIVRO DE JAIME ROCHA


Posto de novo, com emendas e alguns acrescentos ao texto, feitos para esta edição da Relógio d'Água, o meu posfácio ao livro de Jaime Rocha, que agora tem esta bela reedição. Que o livro venda e seja bem acolhido, são os meus votos:

 «Conhece o livro de Jaime Rocha, A Loucura Branca, a sua terceira edição. Congratulo-me por isso. Tempos houve em que a singularidade do universo literário de Jaime Rocha não lograva leitores ou a atenção crítica. Fui desde o princípio um dos raros entusiastas e inclusive responsabilizei-me pela segunda edição da novela, na defunta Íman, na fruste tentativa de chamar a atenção para o livro. Treze anos passaram e o autor ganhou leitores, prémios, uma certa aura, a ponto de se tornar plausível uma terceira edição: o tempo trabalha na legitimação do genuíno.
Pediu-me o Jaime que revisse o posfácio que então escrevi para o livro. Relido o texto, pouco tenho a acrescentar, até pelos motivos mais simples: creio que no essencial está lá tudo o que saberia dizer sobre o livro e ademais o modo discreto como o livro se volatizou na voragem do fluxo editorial, que começava então a configurar a explosão demencial que torna invisível oitenta por cento do que se lança no mercado, dá ao texto um carácter pouco menos do que inédito.
Daí que o repita, com algumas alterações de pormenor e o acrescento de dois páragrafos, esperando que esta vez A Loucura Branca reclame o seu momento de atenção:

A tremenda afasia das sextas. Ter de acabar o posfácio a uma sexta, sem poder gozar a preguiça, as hesitações, a frondosa irresolução dos sábados e domingos, enrodilha-me o corpo numa agonia.
Resolvo tomar um banho de imersão, frio, a fim de procurar no choque da temperatura a faísca.
E à primeira submersão da cabeça distrai-me o que ouço: o latido distante de um martelo, um motor não identificável, a vizinha de cima a queixar-se à filha da vizinha de baixo, o chuchar de um bebé no pé de uma boneca de plástico, o matraquear de uns dedos num teclado. A água amplifica os sons, dá-lhes recorte e detalhe – o som que viaja pelos canos, subitamente ubíquo.
E então ocorre-me: a escrita de Jaime Rocha é a de quem anda pelas ruas com a cabeça submersa nos rumores do mundo, nas suas dimensões dúplices, ocultas, cifradas, afastando da sua frente, com gestos de nadador, as cortinas do aparente.
Escreveu Goethe: «Não se morre. Apodrece-se em certos lugares, amadurece-se noutros». Se Goethe se referisse à ambivalência das paisagens sedimentadas num corpo esta sua formulação podia reportar-se àquelas conhecidas e irracionais figurações onde rostos e olhos heterotópicos deixavam de se alojar na cabeça do humanóide para errar por outras partes do corpo, em busca de um lugar onde: homologador.
Vítor, a personagem de A Loucura Branca, está diante da mesma inquietação ulcerada: onde firmar os olhos, no/ do corpo, se a memória – ponte levadiça – não tem um fosso que a salvaguarde da melancolia?
Cabe-lhe assim vaguear, sofregamente, no torpor de quem não queria mas foi posto de vigília, a reboque de um conjunto de circunstâncias que lhe ilumina as dimensões reversas, inaparentes, cifradas, do real.

Para Aristóteles, a melancolia tinha dois pólos: a loucura e as úlceras. Victor, após o inexplicável suicídio de um amigo fica num estado catapléctico, enfermiço. Vomita. Até aquilo que se conectava com as suas manifestações subjectivas enquistar. Tumor, anuncia o médico, diante duma tão evidente desobediência do corpo. E onde? Algures, pelo meridiano das úlceras.
Mas a súbita “erupção” de um “corpo estranho” na massa de um corpo que a rotina conformara a uma vida amorfa, de uma cartilaginosa repetição formal, fá-lo afrontar pela primeira vez a realidade e reconhecer (em si) uma presença informe, incognoscível. Quem era, fora do seu uso? Entre si e si havia um espaçamento. Daí que Vítor, durante o repouso a que a doença o obriga, descubra que nem nunca conheceu verdadeiramente a casa onde habita - «Vítor ia olhando para os objectos com espanto. Nunca tinha dado por um crucifixo no quarto, nem reparara que os reposteiros estavam decorados com formas de árvores de fruto.» -; ou sequer reconheça a relação espacial entre os objectos que a mobilam. Pior, a sutura do seu corpo desdobra-se numa sutura óptica, pois à medida que, pela primeira vez, vê as coisas como elas são, espalmadas à sua frente, mais se aproxima de uma fractura ontológica, de uma espécie de terror praesentis que tudo transfigura.

Tanto em A Loucura Branca, como no posterior Os Dias de um Excursionista, Jaime Rocha expõe universos de um concretismo diabólico, que fazem resvalar os objectos e gestos triviais para a sobrenaturalidade: «Vítor pediu um café, estendeu a mão por cima do balcão, viu os dedos suados que se mexeram uns contra os outros. Nunca antes observara esta posição dos dedos, ora aproximando-se, ora afastando-se, para depois se fecharem e desaparecerem na palma da mão. A chávena do café ficara encostada ao polegar. Num dos dedos tinham nascido cabelos finos e noutro ressaltava uma pequena borbulha arroxeada parecida com um confeite. Pela primeira vez sentia que possuía uma mão, mas não conseguia mexer os dedos. Via-os mexer, sabia que era a sua mão, mas era como se os dedos pertencessem a outro corpo, como se a mão continuasse por um braço artificial que se tivesse colocado atrás de si e se houvesse colado ao seu ombro.»
Ambas as novelas se podem ler como paisagens cristalográficas onde – o que é comum às narrativas fantásticas – a potencialidade visionária da mente humana amplifica os recortes patológicos, refractando sombras e convertendo o mundo das coisas simples em signos suspeitos, ameaçadores. Funda-se aqui o drama ou o pasmo das personagens de Jaime Rocha: estão sideradas pelos segredos ou pelo inadmissível que irrompe atrás das portas que tantas e tantas vezes atravessaram, como se debaixo do tapete da realidade houvesse não apenas a sujidade acumulada por descuidadas mulheres-a-dias mas sobretudo o rol de temores e mistérios para que não estávamos aptos, para o qual nunca ficaremos aptos.
Diz o narrador, em A Loucura Branca: «Teme-se o que se desconhece, por isso, apesar de ter nascido naquela paisagem o seu temor deveria vir de outros segredos que só agora experimentava».

Em Os Cadernos de Malte Brigge, Rilke dedica meia página à observação do andar de um transeunte a quem domina um estranho tique, que o obriga a dar um saltinho com meia-rotação do pé a cada três passadas. Era uma criatura dominada pelo que queria ocultar.
Jaime Rocha levanta nas suas novelas uma galeria de personagens cuja característica comum é exactamente a de estarem sempre a inventar cenários para camuflarem os seus tiques e obsessões aos olhos dos outros. Pois o que quer dizer um corpo, senão a inaceitável mediação de um desconhecido que se intromete entre nós e o tempo?
Neste desajuste o tique de cada um funciona como a sua inconfessável forma de desvio, de resistência ao social, no sentido da imediatez daquilo que não domina. Com o risco de a pouco e pouco o seu carácter (o do tique) se ir sobrepondo ao do seu portador, fazendo sobrevir o pânico da segregação social. Esta contradição tece uma rede de gestos impensados, encarnados no irracional que (n)os conduz.
Apurando a sonda, Jaime Rocha mostra esse manto de inconsciência que recobre os comportamentos e governa o quotidiano: «O barulhos dos pés em cima do oleado enervava-o. Só naquele dia compreendeu a razão porque colocara uns chinelos no começo do corredor, que só serviam para atravessar o oleado»; a consciência dos actos é sempre posterior ao seu acontecer, o que instala uma dimensão paralela por onde se vão disseminando as metástases da “loucura normal”.
Sendo que esse manto de insconsciência também é óptico e, estranhamente, se aparenta à função que Walter Benjamin, em A Pequena História da Fotografia (de 1931) atribui à câmara fotográfica: «Se é banal analisar (..) a maneira de andar dos homens, nada se sabe com certeza de seu estar durante a fração de segundo em que estica o passo. Conhecemos em bruto o gesto que fazemos para apanhar um fuzil ou uma colher, mas ignoramos quase todo o jogo que se desenrola realmente entre a mão e o metal, e com mais forte razão ainda devido às alterações introduzidas nesses gestos pelas flutuações de nossos diversos estados de espírito. É nesse terreno que penetra a câmara, com todos os seus recursos auxiliares de imergir e de emergir, seus cortes e isolamentos, suas extensões do campo e suas acelerações, suas ampliações e reduções.»

Presa ao mesmo movimento, mas num impulso contrário, Inês, a falsa-cega que a dado momento o salva de ser internado, cede à tentação (ao tique) de penetrar em casas alheias, não pelo fito de roubar mas à cata de indícios (um extraviado bilhete de cinema, uma conta de supermercado, um bilhete postal) que, somados, possam recensear os movimentos da verdadeira vida dos locatários – vasculhando o que neles secretamente difere da vida que relatam, numa desbordante fantasia.
Esta “loucura”, que coalesce nos mais irrelevantes sinais, é delatada por Jaime Rocha com o sentido de humor de um Tati, um humor em surdina, subtil, que desencadeia na ordem do trivial a sua inescapável natureza cómica: «Quando o médico saiu é que Victor verificou que era coxo. Ninguém mais dera por isso. A todos pareceu que ele saltava por cima do gato.»; «Vítor ouviu a rapariga com atenção, tinha uns grandes olhos castanhos, um sorriso cândido, com um dente molar dourado que se destacava do resto da dentadura. Reparou que ela ostentava um broche com o feitio de um pão caseiro, que devia ser o emblema da editora».

Outro aspecto interessante nos livros de Jaime Rocha é que os comportamentos humanos, apesar de descritos com uma minúcia estonteante, não nascem propriamente de uma determinação causal -  «A cama já não existe, havia-se partido numa manhã de domingo em que Vítor se sentira mal e vomitara. Adelaide lembra-se desse dia porque um dos filhos tinha atirado um vaso ao chão e uns minutos depois a vizinha tocara à porta a pedir açucar» -, tornando-se imprevisíveis ou mais propensos a adoptar a plasticidade que reveste o universo exterior. Tanto A Loucura Branca como Os Dias de Um Excursionista estão impregnados por uma compulsiva lógica de transformação que no entanto leva as personagens a confrontar a força do aleatório. Daí o horror.
Começa pela súbita irrealidade do olhar e do corpo, que se tornam estranhos (cf. o segundo excerto citado acima) e acaba na fusão de objectos exteriores no corpo: um misterioso triângulo de vidro que se encastra na carne de Vítor e lhe provoca uma mutação do seu aparelho perceptivo.
É fácil aludirmos a Kafka quando lemos A Loucura Branca mas parece-me mais produtivo remontar a Dante, autor para quem o homem necessitava de uma metamorfose para adquirir noutro mundo uma forma definitiva e eterna.
Para Dante o homem era larva neste mundo, crisálida no outro (sobretudo no Purgatório) e ser completo ou imago no Paraíso. O Inferno correspondia à maldição de estarmos confinados numa identidade, numa memória, reféns de um corpo perecedouro e tão maldito como imutável.
De forma semelhante, em Jaime Rocha o Inferno não está nos outros, como garantia Sartre, mas no pequeno, compulsivo e irrefragável tique que prende cada um à imobilidade que lhe atrasa o ser mutável e resiste ao fluente devir outro. Porque – e sublinha-se aqui o paradoxo infernal – se por um lado o nosso tique homologa uma forma de resistência privada à alienação no colectivo, por outro sinaliza a nossa impotência para superar as nossas propensões identitárias, o estado larvar.
Diga-se entretanto que, por incrível que nos pareça, o sistema do medievo Dante era afinal muito mais aliciante que o grotesco aparato com que o mercado de massas nos impinge um turismo das emoções. 
O conceito dantesco do homem como ser necessitado de uma metamorfose para adquirir no outro mundo uma forma definitiva e eterna, dava entretanto, neste mundo, uma plasticidade transitiva à espécie humana.
 Isto clarifica que todo o poema de Dante seja habitado pela ideia de transformação. Nascia-se com uma forma para devirmos outra, como as crisálidas devém borboletas. O objectivo estava à nossa frente, e tudo podia ainda acontecer. O ladrão Vanni Fucci, por exemplo, ao ser picado por uma serpente, converteu-se num monte de cinza; os luxuriosos tornaram-se estorninhos; os gulosos uivavam como cães; os suicidas em árvores; mas estes eram exemplos dados por Dante, cabia ao leitor agir no sentido de mudar o seu comportamento e determinar aí o seu futuro avatar – o que releva é que a vida se desdobrava numa crença na capacidade de transformação. 
Com a sociedade de massas, pelo contrário, somos conformados na origem, formatados por estereótipos que nos condicionam para determinados gostos e respostas, sendo-nos imprimida um tipo de personalidade consumista. Nela, o que importa não é aquilo em que nos transformamos mas o quanto podemos ser conformados.
Para Jaime Rocha só a loucura, electrizada pelo seu naipe de significantes flutuantes, pode então operar a passagem para outra modalidade de ser, acelerar os processos. Repita-se Goethe: «Não se morre. Apodrece-se em certos lugares, amadurece-se noutros». O ser que evanesce num lugar não encalha no Nada. O Nada deixa de ser negativo para sinalizar unicamente um intervalo entre dois traços, o momento em que uma sincronia entre a realidade exterior e a realidade interior gera uma nova possibilidade, um novo lugar para o despontar do rosto errante.
E é branca essa loucura porque, nesse instante em que o novo se entroniza, abolindo todas as anteriores categorias e dispositivos da percepção, a sua virtualidade abarca o espectro inteiro.
Vítor, que ao princípio observa um caranguejo agonizante na praia, escolhe no fim penetrar no mar, como quem despe uma carapaça exterior (esse esqueleto de crustáceo) para se fundir numa totalidade que o dilata e engolfa. Ali, só uma variável o separa do crustáceo, como só uma débil intensidade da conciência (o quisto da memória) destrinçava o seu corpo do triângulo que afinal lhe inventou um «dentro» e a decisão de uma ocasião. Crisálida que o vento liberta.
E se isso é um bem ou um mal esta água transparente que (na banheira) me cobre e se infiltra na intimidade do meu corpo, restabelecendo-me um sentido ao aberto da vigília, nada me diz. Mas sinto - ironia – que o corpo se apega ainda à caução do medo, às rochas. Levanto-me, sento-me à mesa, retomo o posfácio: «a escrita de Jaime Rocha é a de quem anda pelas ruas com a cabeça submersa nos rumores do mundo, nas suas dimensões dúplices, ocultas, cifradas, afastando da sua frente, com gestos de nadador, as cortinas da aparência. É uma escrita de quem dá conta de que os objectos nos lêem, etc... »