Para uma exposição de pinhole-câmara feita no espaço de atendimento do consulado português em Maputo, e que reune imagens obtidas pelos jovens alunos da Casa de Gaiato com uma câmera pinhole, depois de orientados pelo José Cabral e o José Tomás, fiz o texto que segue em baixo e que às primeiras linhas justifica a escolha da foto acima:
«Uma vez uma filha perguntou-me, “Pai, o escuro é o medo a fugir da luz?”.
Tinha três anos. Nunca mais me fizeram uma pergunta tão difícil e perturbadora.
Mas pessoas há que passam a vida sem dar conta
nem do desenho nem do mistério da luz.
Quem fala no vento? A árvore. Já em relação à luz
foi preciso criar a arquitectura para a vermos nos seus imensos matizes
e ainda assim para a maior parte de nós ela permanece invisível.
Só lhe prestamos alguma atenção pela alba, se o sono não nos tiver distraído.
É raro que se conheçam alguns aspectos sobre a luz:
a) que necessita de um obstáculo que a desacelere
para que a possamos apreender:
sem a densa atmosfera terrestre a sua velocidade
deixar-nos-ia para sempre nas trevas, cegos;
b) que há uma luz negra;
c) que só à sombra se pigmentam os frutos;
d) que, pelo efeito da sua refracção, as cores
que se manifestam nas coisas são a única cor que não existe nelas.
E ficava-me por aqui. E vai um pau. Pensar no enigma
da alínea d) já me dava água pela barba.
Daí que, ao ter visto que uma caixa de papelão com um furo
mínimo num dos lados e um pedaço de filme ou papel fotográfico
no lado oposto produzia imagens, me tenha espantado muito.
A minha alma ficou burra, diria a minha avó.
Mas um furo como? O buraco de uma agulha.
Por onde passa a imagem de um camelo, que vai gravar-se
no papel. A metáfora bíblica, encaixa-se, afinal,
em qualquer pequena caixa que possa servir de câmara escura.
Lá dentro fica o camelo invertido, com um ar muito atarefado.
Câmera Pinhole, se chama a este processo de obter fotos
sem lente. E é tão simples. De manhã a criança acaba os flocos de aveia,
à tarde faz-se um furo na embalagem com uma agulha e instrui-se
a cria, “Vai tirar uma foto ao gato!”. E ela vai
e volta com o gato imprimido na alma. Nunca mais se esquece.
Parece que o Da Vinci, antes de pintar a Mona Lisa,
já se entretinha a estudar o fenómeno da “câmara escura”
e aplicava os seus efeitos ao desenho. Ele há doidos felizes!
A mim não, nada disto me tinha ocorrido. A quem queixar-me
de tão abrupta ignorância? Ao bispo? Ao professor Correia,
que chamava melões às cabeças onde relampejava as bengalas?
Eis-me absolutamente a zeros (bom, a zeros – 4) sobre a luz
e as caixas pretas. E, meu Deus, o rol de imagens que despertam
numa circunspecta caixa preta a que chegou orifício:
a) mil fantasmas prateados;
b) as estrias que aveludam os lugares-comuns;
c) um relógio que pé ante pé foge do mar;
d) o sorriso de um magala cujos joelhos oxidaram anjos;
e) uma noiva a quem o vento levantou a saia até à denominação comum;
f) os 33 dentes do garfo de Jesus;
…………………………………………………………;
tantas que somos tomados por um arrepio:
e se a luz for um animal que se alimenta das tuas rugas,
das minhas – bicho que, poro a poro, calceta na pele o medo?
Embora nem sempre seja a luz dura, cruel.
Há uma luz benigna, como a que emanava da tez
daquele homem que abria os dedos e exclamava:
“tenho a mão perfurada de milagres”,
como a luz que banha o pão e dá relevo ao seu cheiro,
ou a que encheu de aprazíveis pára-quedistas
os olhos fascinados de minha filha – já ela
se esquecera da pergunta que me fizera.
A tal sobre a fuga do escuro que cinzelou estas pino-fotos
com que os gaiatos destaparam a luz.
Quem sabe quantos deles, depois disto, estudarão para faroleiros?
Eu já cá não estarei mas, não obstante,
um vendaval de luz
lembrará a minha guerra à paz do mundo.»
Sem comentários:
Enviar um comentário