domingo, 27 de fevereiro de 2011

LUZES E ZEBRAS

foto de josé cabral
Pede-me o poeta Amadeu Baptista que meta no blog o meu poema Do Tibete para o Mundo, de um livro inédito, Bar La Fontaine (que teve um prémio, mas cuja edição foi sonegada pela crise que o país atravessa, apesar de ter tido direito a provas), e a minha tradução de um poema de Hugo Claus, um poeta e escritor flamengo (a minha versão é feita a partir de traduções francesa e inglesa) que me enche todas as medidas. Ora, como o Amadeu foi um dos poucos que apesar da distância se manteve um amigo, o pedido dele é uma ordem. Cá os coloco, com bónus. O livro As Feridas de Heitor também está inédito.
                                                               De BAR LA FONTAINE
DO TIBETE PARA O MUNDO

Numa região da Ásia Central, nas imediações do Tibete,
sai um homem da sua aldeia para ir cortar lenha.

Enredado no pipilar de um pássaro (reconhece-o
de miúdo, sem nunca o ter visto) que no seu devaneio
                                                         alisa o silêncio.
Até onde o leva o vislumbre da lebre
que lhe aguçou a cisma no sangue, não se dá conta.
                                Os seus passos crispam a neve.

Que procura para se embrenhar na floresta,
rechaçando a madeira à mão?
                                     Força? Delicadeza?
Que tipo de lenha mais comove os ígneos dentes?

A aragem fria da manhã corta, e pára um instante
para matar uma fornilha (só se evolam bons espíritos
do cachimbo talhado pelo seu irmão monge).

Sorri, quando reencontra na neve rastos da lebre.
Retoma depois, a plenos pulmões; a ledice
de agarrá-la pelas orelhas e ver os olhos alunados
do bicho, da resina a nascer do implante
                                           da sua lâmina no lenho,
fá-lo rasgar sendas e galgar pedras –
ouviu mesmo nas suas costas o sacrista do pássaro,  
                                         virou-se e já tinha sumido –

e distraidamente aproxima-se da fronteira soviética
onde lhe engatilham uma arma à cabeça.
Os soviéticos incorporam-no no Exército Vermelho
e fazem-no atravessar o país
                                            (a raiva
tremula-lhe nos olhos, até o cachimbo lhe confiscaram).
Ainda hoje não lhe sai da lembrança o rodado do comboio
(e a viatura que durante horas, pela estepe, seguiu a locomotiva,
arrastando consigo, num torvelinho, palhas, cigarras e penas),
de um extremo a outro, à frente de guerra com a Alemanha.

Os alemães apanham-no, antes de dar o primeiro tiro.
Numa trincheira já muito flagelada
                     (o medo floria nos ossos)
                                       enrolava o tabaco de um moribundo
quando uma sombra nas suas costas nublou a palidez,
              amortalhou a fronte suada do ferido.

Deslocaram-no para a frente de batalha em França.
Aí capturam-no os americanos. Ei-lo a fazer cera
                                 num campo de prisioneiros nos States.
Acabada a Grande Guerra havia que devolver os prisioneiros
e reparam naquele homem de linguajar áspero, titilante.
Descolavam-se-lhe os lábios como pálpebras
                            mas sucederam-se os intérpretes
sem nenhum ter levado a água ao seu moinho.

Por fim, (por cansaço, num desabafo) alguém alvitra
‘só pode tratar-se duma família linguística da Ásia Central,
                        onde os tigres ainda respiram antes do nome’.  
Com paciência (e muitas pragas) acharam um especialista
em tão pedregosas latitudes e finalmente conseguiram dialogar
com o homem. E pede-lhes este: “antes de mais nada,
depois de tanto tempo sem poder falar com ninguém,
tenho uma pergunta a fazer - por que foi que lutavam?”.

Igualmente eu, às cegas,
                                       afluído à embocadura do golfo,
me sinto incapaz de cravar as unhas no flanco do discernimento,
a fala embargada pelos ossos de passarinho que as sombras
                                                                   acumularam,
e incerto das tarefas que se me pedem e do seu alcance.
Por sorte, à semelhança de Teseu, tenho escapado ileso
                                     na cama de Procusto. Mas
sou inconsciente até ao zelo, desse feliz acaso.

O NATAL NA MANSARDA

Não lhes servia de nada, bater
com os pés no chão. Tão imprestável
como ao pobre reconhecer, deferente,
o cóccix da varejeira. O frio

perlava no nariz pingão de Max Jacob,
que enroscava as mãos uma na outra, en-
xaguando os calafrios da lâmpada. Picasso,
a seu lado, mirava atónito a lua, en-

ganchada na humidade da vidraça
e a canivete raspava o carvão nas unhas.
Não falavam, para não ensaboarem
nas línguas as sílabas mais ímpias.

Meia-hora nisto, Max matutando
num modo airoso de surrar a nostalgia
que lhe desdentava a infância,
e Picasso cantarolando, entredentes,

uma das suas inaudíveis melodias
para centauros. O pintor foi o primeiro
a sacudir o álgido recobro: «Espera, 20
tenho ali umas molduras e uns esboços

para queimar.» Vai ao quarto e traz os braços
ajoujados em tralha mirífica que sem um pio
anicha na lareira. O fogo reanima.
Max sopra nas mãos, no rebordo da janela

a chuva pranteia de novo o prato de zinco
– há cinco dias que Eurípedes, o gato verde,
comia raspas – e anuncia: «vou buscar ali
umas resmas de rascunhos mais rijos

que cornos…» e trá-los, lançando-os
às brasas, como se confettis de Carnaval.
Foi assim durante todo esse Inverno
um dos mais severos que a história

destes dois cavaleiros da triste figura registou
– Max, de cada vez que rodava na porta as chaves
da mansarda perguntava desconfiado ao pintor:
«achas que gastam luz, os pássaros da Babilónia?».

Picasso desenhava de dia o que punha à noite
no lume e o poeta emparelhava rimas
que o fogo constelava, em raios e coriscos.
Nunca o mundo teve tanta esperança.

EU, SIM. TU, NÃO?

Saiu do banho de pulóver e cuecas, o irmão
              esperava-a na sala. No impensado lampejo
da roseira que abre o peito aos zangões, folheou a Vogue.
O irmão exibia o mesmo ar molenga e devastado,
de quem há décadas soletra conjugalmente o whisky
             e confunde claxons e trompetes.

Louise Brooks ouviu o ronrom de sempre, queixas.
Mas não há evasão ao tiro certeiro, a diva
recomeçou a roer o pêssego que deixara a meio na fruteira
            (fruto insusceptível de desordem), e cortou as vasas
ao ressentimento do irmão, no que toca a Myra, a progenitora:
’Quero lá saber se era uma mãe menos presente, ensinou-nos
            a amar o riso e a beleza!’.

É grandioso! Ensopa-nos facilmente a saliva dos lobos,
o medo enregela os poços da memória, e cem ventosas
             de socorro (excessivo amor mata) atraem
o corpo a regiões inóspitas onde se deslaça o verbo
             - exígua iluminação de exteriores;
       e, contudo, perguntaria a diva,
hão-de as unhas de Deus tocar guitarra
nas somíticas cem flexões-de-braços da Morte?
    
          O riso e a beleza: o universo está morto mas
tem a capacidade de ressuscitar!’, assegura o físico
               Michael Polanyi, abandonando-se à polpa
dum pêssego com um tesão que Louise Brooks desposaria.
             
                          De AS FERIDAS DE HEITOR
38       (carta à minha filha Maria, de Quelimane)

Não desanuvia.
É um céu sem nuvens que não desanuvia.
Apodrecido em flamingos.

Andei mal em dissimular-vos
que a vida também custa.
A vida descama-se de tudo o que é humano,
a inteligência escassa utilidade tem.
A inteligência evade-se para nenhures
como as arcas de ripas despregadas,
enquanto em frente, inédita
aparição no Zambeze, a orca
dá sinal de ter chegado.

Há (a melhor fábula de Freud) a sabedoria
tardia com que os ouriços
ensaiam o anelo da distância justa
para não se estropiarem mutuamente.
Dificilmente mais nos é concedido
e a dança é esdrúxula: necessário
é picarmo-nos para apanhar o jeito.

De resto, não desanuvia
e um excesso de cultura
pode ser um mau pendor
nos instantes que pedem simplesmente
uma roda na calha.

A sorte não vem ao caso
- é um dos maiores mistérios –
e a beleza é como o garrote
colocado abaixo da ferida.
E dói, para quem não consente
converter a experiência em souvenir,
constatar que não é dada
e que o preço mínimo é sangrar.

Mas aí os flamingos
emprestam o voo
às rosas e, no fim,
todos os vencidos
serão plagiados.


47                                      (Hugo Claus)

Sexta, 14 de Novembro, aniversário de Dante,
laureava no meu jardim, o crepúsculo estava clemente,
e cismava em Dante.
Sou assim feito, penso em Dante sem parar.
Tenho qualquer coisa dele, acho. Em moderado.

Então chegaram os dogues voadores numa nuvem de enxofre
penas e ganidos, mesmo aos meus pés.
Vazados, como num fragmento de Canto,
essa corja abateu-se sobre o meu relvado
e pôs-se a esgaravatar e a gralhar num chavascal
odioso, um verdadeiro pesadelo,
as penas espalhavam-se ao quintal dos vizinhos
entre os seus moinhos miniatura e os seus gnomos.
Depois, de repente, eclipsaram-se. Uma verdadeira visão de Dante.

Escutem, eles deviam evidentemente ter-se contido.
Acreditem-me, uma fúria daquelas,
aquela crepitação de garras e asas, mais a berraria
e o pivete que se entranhou por semanas no vestuário,
não, como erudito, aquilo agradou-me pouco.

Sobretudo, e é disso que se trata, que o meu móbil
tenha passado por um momento tão indigno, que digo eu,
eles chamaram-lhe um figo - tragaram-no.

Tinha-o construído eu mesmo, à Calder, airosa e
ingenuamente suspenso em cores primárias,
um triângulo, um círculo e um quadrado: eis tudo,
que era também, por acaso, o tudo
a que eu chamava o meu “Universo”,
pois não simboliza o triângulo o corpo
físico, oral e mental,
e não é o quadrado (: a água o ar e o fogo e a terra),
e não é o círculo, digo bem, o círculo, unicamente
a realidade terminal?
Aos três elementos, ligados por um esvoaçante fio de ferro,
tinha-os pintado de rosa, a dar para o salmão,
com o seu quê de elegante.

Como eu disse aos polícias: «Essa bicheza
comezinha e irresponsável não apenas demoliu
e se empanturrou com uma obra onde eu in-ves-ti
anos de trabalho manual,
mas também com a projecção da minha alma e da minha ética.
E quem, meus Senhores, me poderá alguma vez indemnizar?»

«Caro Senhor», disseram os polícias, «o infinito
contém em si múltiplos elementos informes».

Eles anotaram a minha queixa. Queixa
contra uma grandeza desconhecida
de digestão infinita.

Odeio a minha mulher e os meus rebentos.
Dante é a minha única consolação.                            

1 comentário:

  1. Pelo que sei (disse-me o próprio) o prémio não envolvia qualquer valor pecuniário, apenas "reconhecimento público". Contudo, a festança teve vários "animadores", naturalmente pagos a peso de ouro. É assim Portugal. Despreza os seus escritores. Principalmente os seus Poetas.

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