domingo, 20 de fevereiro de 2011

STRANGE FRUIT: O JOSÉ CABRAL 1

Esta foto ao lado é do José Cabral, um dos grandes fotógrafos de Moçambique e um dos meus únicos e autênticos amigos nesta terra. Digo autêntico porque o sacrista me diz sempre o que pensa e não o que é conveniente dizer. É uma qualidade que chateia muitos e que faz mossa nestas terras a sul onde se procura evitar o mínimo atrito (e o não-dito acaba por rebentar mais tarde, em conflitos maiores e irremissíveis), mas com o Cabral é garantido. Ele não consegue ficar a ruminar, “não sou um boi…”, explica.
Às vezes passamos horas a discutir um livro, uma passagem, uma descrição, um adjectivo, porque o é um leitor e, como o seu desgosto é «não saber escrever», esmiúça as páginas ao pormenor, arma-se de lupa. Um dos raros com quem posso discutir o porquê disto ser assim e não assado, os rudimentos, a técnica. Não raro começa com um “olha na fotografia é assim…”, e passa a explanar o modo como se trata a luz (“uma senhora delicada com quem é necessário ter imensos cuidados…”) ou se desenvolve o veio numa árvore, antes de descer à correspondência disso na escrita, ao tratamento formal naquele excerto, à oportunidade da figura de estilo ou à justeza do adjectivo. Passamos horas nisto, e já sei, que três horas depois, aviadas umas canecas, me azucrina com a exactidão do verbo em Cardoso Pires, ou no Jorge de Sena, os seus “Ai Jesus…”, e repete-me exemplos, sobre exemplos, de actos de bem escrever.    
Eu chamo-lhe carinhosamente mon emmerdeur! (o chato!), e não há outro como ele em Maputo para farejar se acabei um texto ou se vou numa fase intermédia. É passar-lhe um manuscrito e é um instante – tau!
O resto das pessoas, as que teriam competência para isso, têm um grande escrúpulo em discutir um texto, arvoram um pudor de galinholas, como se estivessem a blasfemar e a ofender Deus. O Cabral não, pega num texto e o que lhe interessa é a escritura e não quem o escreveu. E é dum amigo assim que precisamos em cada etapa da nossa vida criativa.
Há uns anos gamei-lhe esta fotografia. Eu adoro-a. Ele não gosta dela e não compreende o meu apego. Já esteve para ser capa de um livro com um título a condizer: Janelas de Cego. Mas a hipótese da edição gorou-se e nunca mais tive um título tão a preceito. Uma capa assim não pode cair em saco roto, exige um âmago à altura, uma massa devastada, e, com a excepção desse livro particular, puxa-me a mão para uma pescaria mais festiva, menos brutal. E já não sei se me apetece publicar um livro tão triste só por inércia, quando me sinto outro, mais próximo da descolagem que do desânimo, pó sim mas enamorado, no dizer de Quevedo. E sofro do pudor que me infiltrou um aviso de Camus, decorado na adolescência: «sofrer não te dá direitos».
Não sei porquê, a foto do Cabral lembra-me outra que sempre me arrombou, a que coloco em baixo.

Eis Billy Holliday num momento menos bom da sua vida. Vejo-a e ouço-lhe a voz plangente em Strange Fruit, percebo-lhe a ressaca de quem nasceu para Nefertiti numa hora errada, num local desacertado, com o horror do visto a roer o esplendor da memória. O descasque já consumado que vejo na foto do Cabral e que às vezes nos tinge a alma, essa péssima palavra para designar na pele intocada o contacto com o mundo.



Sem comentários:

Enviar um comentário