sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

FONTES DO VENTO I: JOAN BROSSA

JOAN BROSSA  

Poeta, dramaturgo, artista plástico e designer gráfico catalão. De feroz ímpeto experimental, foi o inspirador e um dos fundadores do grupo e da publicação conhecida como Dau al Set (1948), uma das principais manifestações modernas da poesia visual catalã e donde sairiam figuras como o pintor Tápies. Poeta total sem distinção de géneros, o seu trabalho alargou-se à prosa poética, ao cinema, teatro, música, cabaré, design gráfico e ilusionismo.
As traduções são minhas.




O céu está estrelado.
Agora começa o poema.

Uma mesa; ao seu redor
três cadeiras.

Deve o decoro presidir tanto
aos deveres importantes quanto os prazeres
mais frívolos. O decoro
é o fruto do conhecimento
e do respeito; é o conhecimento
do sacrifício que os deveres sociais
impõem ao amor próprio
E é uma imprescindível
necessidade de afecto.

A mesa e as cadeiras estão vazias.


Este poema
tem duas estrofes.

Entre uma e outra
há uma distância
de um centímetro.

Irrompe um pranto calado
tapando a cara com ambas as mãos.

Era pastor?









Já me constaram os valores da dose
de segurança ou tolerância
estabelecidos para a quantidade
de radiação que pode receber uma
pessoa que trabalhe com aparelhos
radioactivos.

Dependure-se
deste poema
uma âncora.



A persiana pode ser horizontal
ou vertical e podes graduá-la sem
te mexeres da cadeira em que estás sentado.

Oh, sucessão do dia
e da noite!


E neste momento
faço o que é suposto fazerem os
marinheiros: com a canção de
um metem os outros a compasso
a cadência dos remos.

O calor
aumenta de dia em dia,
pois a primavera está
nas últimas e assoma
o verão.

Dafne e Cloé.
Livro Primeiro.
Prefácio.



Aqui
recorro a uma cova natural;
o plano deste poema está
situado num nível mais baixo,
não demore o escadote
         para sanar a diferença.
No corredor há pilastras
que o dividem em dois
compartimentos.

Penso em Saturno
com o seu
anel.



POEMA

A tua amizade
faz a minha felicidade.

Pela direita entra TU
cruza um passadiço e sai
pela esquerda.

Pausa.

Entra AMIZADE pela esquerda
e sai pela direita.

Pausa.

Abre-se a porta do fundo, aparece
estranhamente maquilhada FACE A MIM
e desaparece.

Pausa.

Entra FELICIDADE com um nariz de cera
Pela direita e sai pela esquerda.



ODE À HISPANIDADE
Esta cadeia vem da Venezuela.
foi iniciada por Salomé Farina
e deve dar a volta ao mundo.

Faz 24 cópias e reparte-as pelos teus
amigos por longe que estejam.

Espinoza Díaz, do Exército Venezuelano, fez
as cópias e ao cabo de nove dias recebeu
uma recompensa de10 000 pesos.
Aurelia Núñez levou a coisa para a brincadeira.
Incendiou-se-lhe a casa, perdeu
os seus familiares e ficou louca.
Em 1954 o general Ostranza não
a tomou a sério. Apanhou uma gripe
das feiotas; assim que melhorou, encarregou
o seu secretário de fazer as cópias;
mas este não as meteu no correio.
Ao fim de 9 dias houve mexidas
no pessoal e o secretário nunca mais
se endireitou.

Não rompas por nada deste mundo esta cadeia
e antes de 9 dias receberás uma surpresa
agradável.

Tal como recebi a reenvio.

Louvado seja Santo António!

eclipse

A cabeça
é um círculo. Dois círculos
com um ponto no meio
são os olhos. Duas linhas
representam o nariz e uma linha
a boca. Surge o cabelo
como um gatafunho por cima
do círculo da cabeça.

Lanço uma coisa na papeleira.
Há lutas a que se discerne o fio condutor.
Outras vezes as causas da guerra não são tão claras.
Mas a vida humana tende a ocupar a terra.

Três círculos,
três linhas
e um gatafunho. 


O MARINHEIRO

Eu sei como
fazer cruzar o mar
numa barca a três homens e três mulheres
sem que em nenhuma das duas bordas
haja dois homens com uma
mulher.

Sei como
fazer cruzar o mar a três homens
e três mulheres, não cabendo na barca
mais que duas pessoas e sob condição
de que em nenhum caso se verifique haver numa
ou noutra borda mais homens que mulheres,
mas antes o contrário, ou tantas mulheres como homens,
ou só os homens ou só as mulheres.


                                         
O SONHO DO PEIXE

O mundo
está submergido ao fundo
das águas do espaço.
Vê-se surgir uma grande claridade
seguida de gritos e gargalhadas.

Está escrito:

Não se pode explicar
nem o como nem o porquê
das cidades que existem
com ruas e edifícios
fundidos no espaço,
junto a uma praia.

E ainda mais:

O mar é vida, a morte
é praia.
A franja da lua
é muito estreita.


Três mulheres
somam sessenta
unhas.


Apesar de me sentir tão alegre, vem-me
alguma de imediato à cabeça e, deixando-me levar
por ela, ponho-me triste, tanto, que o leitor
se dá conta e fica surpreso; e eu,
esforçando-me por dizer algo, cito
razão pretérita e agarro uma cana:
é a cana com que brincava
em miúdo, como se fosse um corcel,
encaixando-a entre as pernas
para correr de um sítio
para outro.


POEMA

Escreveram-se estes versos
para que passem desapercebidos
como um cristal. Olho a rua através
do vidro duma janela.
Mirai a rua e não vereis o vidro.

Fora e dentro de vós
há um universo.

Também quero que os meus versos
deste poema sejam idênticos
às badaladas dos relógios
de torre espalhados
pelo mundo.
 



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