José Ángel Valente (1929-2000)
Um dos poetas seminais da geração de 50 em Espanha. Poeta de grande densidade conceptual e profundamente anti-retórico, a sua expressão foi-se tornando cada mais lapidar e a sua poética aproxima-nos da mística e da gaguez expressiva diante do mistério e do silêncio. Não por acaso foi um dos tradutores de Paul Celan em Espanha e teve por um dos seus grandes amigos o pintor Tàpies. Para além de Punto Cero e Material Memória, dois volumes que reúnem quase a totalidade da sua obra, recomenda-se a leitura de Fragmentos de un libro futuro, livro de poesia, póstumo, de El Fin de la edad de plata, poemas em prosa, e de Varicianes sobre el pájaro y la red, e Elogio del calígrafo, ensaios sobre arte e literatura.
As traduções são minhas, os quadros de Tàpies.
Poemas de Mandorla (1982)
ILUMINAÇÃO
Como poderia aqui quando com fina pele
de leopardo se inclina a tarde sobre
o teu detido corpo não
te soletrar a transparência?
Espalha-se sobre o ar
mortal que nos rodeia
a tua sombra luminosa.
No íntimo
te dás e não cessas de dar-te e eis-me
ateado de ti acendalha de ti
formada desde o meu centro.
Quem és tu, quem sou,
onde terminam, diz-me, as fronteiras,
e em que extremo
de tua respiração ou matéria
não me inspiro no ar que exalas?
Que as tuas mãos me afaguem para sempre,
que as minhas te afaguem para sempre
e possa o ténue
sopro de um deus fazer voar
o pássaro de argila para sempre.
PESCOÇO
A branca anatomia do pescoço.
Galgo-lhe a transparência.
Caule
de soberana luz,
o teu colo.
Podia estar isento,
ser só assim na natureza,
caule de uma cabeça não existente.
Pescoço.
Haste de luz.
Isento.
Para inventar de novo o teu olhar
e a tua irrealidade.
Para sondar de novo o mesmo sonho.
PÁSSAROS
O voo dos pássaros lunares
desperta pouco a pouco o submergido
coração da noite.
Seios
de luar.
Bebemos
a sua inesgotável sombra láctea.
O mamilo é o centro da nocturnidade
e o voo busca o centro.
Pássaro.
Mulher.
A noite:
a sua isolada luz vertiginosa
que estala em sombras.
Sonha
sob as águas cegas
como latido ou gérmen
um voo imemorial
de pássaros solares.
O primeiro nevão
e o silêncio tenaz da natureza
na bainha da alba.
A custo, decifro um pássaro.
Será acudimento definitivo o dia
mudo, na véspera
de tanta claridade?
Late na minha mão um pássaro,
a longitude inteira do seu voo
no primeiro silêncio da neve.
Quem és tu?
Quem desperta contigo
neste despertar?
Escrever é como a segregação das resinas; não é acto, mas lenta formação natural. Musgo humidade, argilas, limo, fenómenos do fundo, e não do sonho ou dos sonhos, mas de barros escuros onde as figuras dos sonhos fermentam. Escrever não é fazer, mas sim aposentar-se, estar.
ÚLTIMA REPRESENTAÇÃO
A parlar d’ira, a ragionar di morte.
Rime:CCCXXXII
Os deuses
desta Primavera
não me foram propícios
e cautelosamente os execro, mãe
incógnita, blasfémia, fonte do rogo.
Dispuseram os seus praticáveis negros
sobre o tablado.
Começa o espectáculo,
mas só um final se representa.
Ao centro da cena, um homem
ou a figura de um homem
de macilentos zigomas ostenta
uma pesada cornadura.
Por cada um dos cornos
faz beber sujos detritos líquidos
à sua exânime estirpe.
Excremental o homem.
Nada
com ele nem nele podia
crescer, multiplicar-se.
Nem sequer o pranto.
Povoai a terra.
Oh deuses,
desatino sem fim, sem fundo, o deste sonho.
Fita as lamparinas, deslumbrada,
a mulher nua que alumia
com uns límpidos e ofuscados olhos o nada.
Começa a cair o pano.
A sombra
ameaça cair outra vez sobre a sombra.
Só eu aplaudo, na sala apinhada
de espectadores mortos.
MORTE E RESSURREIÇÃO
Não estavas tu, estavam os teus despojos.
Logo e depois de tanto
morrer não estava o corpo
da morte.
Morrer
não tem corpo.
Estava
translúcido o lugar
que manteve o teu corpo.
A pedra fora removida.
Não estavas tu, o teu corpo,
sobrevivia enfim a transparência.
Jogar o jogo. Às primeiras, o jogo é torpe, sujeito a regras imitadas. Até que chega o dia em que se começa a jogar o jogo dentro do jogo, simplesmente, nas movediças fronteiras da sombra e da luz. Jacinto, ferido mortalmente pelo disco de Apolo, renasce na intensificada fragrância da flor. Jacinto e Apolo jogam: o lance é o da morte e da ressurreição.
IL TUFFATORE
Não nos demoramos à superfície mais do que o lapso de uma inspiração profunda que nos permita regressar ao fundo. Nostalgia das brânquias.
NUTRÍCIA SOMBRA
E uma vez mais o engodo
nocturno da aranha, ou a implacável
inversão do amor.
Os fios,
como duros arames, que aferram
de nervura em nervura o hálito.
Estendido em cruz, imóvel alimento
da devoração.
Desde a primeira bainha
onde se respira – fugi.
E de novo fugi para ver o meu corpo
na má tenaz.
Baixava,
partia do centro de si,
arrebatado por intrínsecos fluidos escuros,
o animal – tão ávido
que devorava o meu corpo abandonado,
donde fui ao que não fui,
a sua sombra ou o seu vazio.
de Fulgor (1984)
II
Esquecer.
Esquecer tudo.
Abrir
ao dia as janelas.
Esvaziar
a habitação onde
húmido, não visível, esteve
o corpo.
Trespassa-o
o vento.
E nada acha.
Procuram em todos
os cantos.
Não poder encontrar-se.
XXIII
O gato é pássaro.
Ressente-se de sua infinita
pacatez
o ar.
Faz-se presa.
É corpo, presa com a sua presa.
Voa.
Desaparece na direcção do crepúsculo.
XXXI
A extrema longitude da noite
como uma indestrutível
faca.
Noção de alba.
Abrimos as tuas entranhas.
Tu a salpicá-las como chuva
enquanto eu as bebia,
pássaros vivos.
de Ao Deus do Lugar (1989)
Formou
de terra e saliva um buraco, o único
que pôde afinal conter a luz.
(Matéria)
Como cristal, como crustáceo ou larva,
corpo voraz noutro corpo.
Não vives sem o seu sangue.
Foste violando
com as tuas ventosas húmidas
os pontos mais secretos.
Fizeste-te serpente, noite,
viscosidade, resíduo.
De quanto o outro
de si não consentiria,
nunca, morrer bastante.
O melhor é retirarmo-nos pé ante pé
do espectáculo a que nunca acedemos.
Estancar na linha das portas
a ténue presença da sombra.
E para quê embandeirar a História
se a História não existe em nenhum reino?
Cair no ar, dissolvermo-nos como
se a nossa respiração fosse doutrem.
de No Amanece el Cantor (1992)
WHAT KILLED the dinosaurios?, perguntas cravando na minha pupila a tua pupila azul. Ou quem? Tu mesma, um meteoro, uma erupção vulcânica? Morreram um a um apunhalados ou foram vítimas prematuras de uma súbita e calculada exterminação?
(Anotações para um fim de século)
DE TEU NAUFRAGADO coração chega-me, como antes a tua voz, o bafo obscuro da morte. Habita-me com ela. Nem sequer a morte pode de mim jamais arrebatar-te.
PAISAGEM SUBMERGIDA. Entrei em ti. Em ti entrei-me lentamente. Entrei com pé descalço e não te achei. Tu, sem embargo, estavas. Não me viste. Não tínhamos já sinal com que dizer-nos a nossa mútua presença. Cruzar-se assim sós, sem ver-se. Pássaros amarelos. Transparência absoluta da proximidade.
AO CAIR A TARDE, a não visível mão de um deus apaga-te como asa de pássaro caído até ao mais denso da sombra que forra a sombra. Dissolvido estás, enfim, na tua própria mirada.
LENTAS SEGUEM as luas às luas, como cede à luz a luz, os dias aos dias, a pálpebra tenaz ao mesmo sonho. Viver é fácil. Árduo sobreviver ao vivido.
Desculpa, António, mas não consigo reprimir o quanto gostei!
ResponderEliminarAbraço,
Ricardo
Excelentes as tuas traduções do José Ángel Valente, António. Como excelentes são também os poemas do Ozo, uma vertente erótica que não devias abandonar.
ResponderEliminarJá estou aqui a preparar o bote para, a exemplo do Tuca, assaltar tua casa. Um crime necessário, providencial nesses dias em que o sol carioca me convence de que é mais sábio virar churrasco na praia do que ser lentamente assada, a escrever no computador, na estufa em que moro. Espero que compreendas.
Um abraço
A propósito, ele já "amarrou" lá no DS o primeiro cabrito (na gíria carioca, produto roubado e posto à venda).
ResponderEliminarBem vinda Anga
ResponderEliminarolha que por aqui o calor também estrela ovos nos ombros.
o Ozo agradece, que a lotaria do tempo lhe seja propícia.
Anga lê-se com j?
Com g mesmo, de gata. Ou de gueparda, em certos períodos. Com j, só excepcionalmente, nos feriados patrióticos e cristãos, quando em mim baixa um anjo... o das trevas, o tinhoso, o cramunhão!
ResponderEliminarCom o cramunhão não quero nada! Fiquemo-nos pelo G, de Anga dos Reis
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