quinta-feira, 31 de março de 2011

MONSIEUR LE VENT

«- Votre aéroport?
Tous ceux qui me conduisent vers des palmiers».
A resposta é de Salah Stétié, brilhante poeta libanês. Há quinze anos a minha concordância seria imediata, nutria a ideia de que a palmeira está para as árvores como o tigre para os animais domésticos.
A minha travessia do oásis de Hadramouth, no Yémen, em 1997, um palmar de 300 km recortado por cinco pequenas cidades, abateu-me um bocado o mito do oásis, afinal ralos como um capitoné coçado e de botões arrancados. E tão chochos de sombras! Diria até, endemoinhadamente abstractos: como cogitar um encontro debaixo da palmeira x? E que insonsas para os enredos que pedem discrição, para um alpendre onde um segredo possa dar passos seguros!
Cinco anos de Moçambique confirmaram-no: a palmeira – e o coqueiro – é um sinal gráfico na paisagem, um borrão de Giacometti. Com excepção dos períodos muito ventosos onde se prodigalizam em pontes e flique-flaques. Aí gosto.
O que me traz ao tema que comungo com o poeta libanês: o vento. Diz ele: «o vento joga um papel importante na minha poesia: associo-o à espada como se fosse um juiz de armas convidado a separar o inseparável, a desequilibrar os equilíbrios.» Aqui sim, estou em casa: pélo-me por uma ventania que desmanche a risca ao meio dos abismos. Talvez por que, como diz Bolaño:
«A literatura, ao contrário da morte, vive na intempérie, na desprotecção, longe dos governos e das leis, salvo a lei da literatura que só os melhores entre os melhores são capazes de romper. E então já não existe a literatura, mas sim o exemplo».
O fascínio do vento sempre me acompanhou. Desde que li no Fédon de Platão que havia um menino que tinha medo de que depois da morte o vento arrastasse a sua alma. Identifiquei-me logo. Já chamei a um livro publicado Carta de Ventos e Naufrágios, e trabalho numa antologia universal de poetas que escreveram sobre o vento e que se chamará Museu do Vento.
Aqui deixo o último poema que escrevi sobre o vento e que é uma evocação de Joris Ivens, o cineasta que no fim da sua vida fez um documentário sobre o vento:


DO VENTO

Descobrir o rio como um puzzle em desordem:
Joris Ivens, na  idade em que os pescadores de esponjas
                            pedincham por botija de ar,
empreendeu enxertar bambus no coração da moviola
e detectar no turbulência dos gansos a influência do mistral.

Tinha-o farejado nos cabelos da Vénus de Boticelli,
                      nos poemas de Shelley, Lorca e Saint-John Perse,
no admirável Wind de Sjostrom;
                                                    matutou –
haverá notícias de ter estoirado o vento algum vitral?
Ainda o abalava o reflexo do deus das nuvens
no impávido rosto de Buster Keaton
que lhe move batalha em Steambot Bill Júnior.
                     Joris Ivens suspeitava que o vento floresce
           no miocárdio,
como a insónia de Deus.

E quem, tão esplendidamente, anula a mediação?
Ainda ontem à noite desprendeu-se a prumo do hálito
quente da cal e desabotoou abismos
                    (pelo menos para quem habita no sétimo),
perfurou os becos da cidade, virando contentores
         e jacarandás, para logo estacar como uma moeda
de perfil, uníssona, cara e coroa
no abismado silêncio de uma gota.
Depois, pela alba,
                           (nascia ainda a estridência dos pássaros
do ventre da escassez),
voltaram as rajadas à urbe, 
escavando-lhe no rosto as nódoas assanhadas da melancolia.
                 O que dará notícias, relatório de perdas e danos.

Mas para Ivens, só o vento, que rebenta a pele das coisas
                        e embebeda os mananciais
podia trepanar o espectador,
e aliviá-lo da ressaca de Deus,
restituindo-o ao sentido dos gestos. O vento,
que não admite heteronomias, vive de gorjas,
                    aventava o cineasta, e
a mais ínfima poeira é para ele um papillon.
                    E mesmo que, despontando do seu miolo,
o opróbrio dos corvos alastre pelo céu das sementeiras
            a prontidão da morte, (a mesma que transforma
os cipestres de Van Gogh em tochas vivas), diga-se:
                       no seu ondear respira a seda.     
Certo é que tudo na visão é rasura, plano, lacuna,
                  até o seu sopro decapitar os impasses
e ganharem serrilhas as pedras e o rio dos mortos
se cobrir de reflexos de folhas douradas,
enquanto as asas do bezouro se alçam abruptas
contra a moléstia e os incandescentes caninos do infinito.

Pelo menos para Joris Ivens, o holandês errante
                    que atravessou a China, a Rússia, o Vietname
sem esmorecer com as ponteiras de aço
que desenhavam obscenas simetrias no bolor dos ideais,
pois vivo é aquele que morre a cada instante e
                          (trouxe-lhe o vento, esta carta de longe)
              quem respira ultrapassa uma fronteira.





quarta-feira, 30 de março de 2011

PORTUGAL DOS PEQUENINOS/ a indignidade tuga

daumier, le ventre législatif

O 25 de Abril de 1974, que libertou Portugal de 40 anos de Salazarismo, ficará na História como o dia em que os tanques saíram dos quartéis para irem tomar os Ministérios, e, ao descerem a via magna que é a Avenida da Liberdade em Lisboa, paravam nos semáforos. Foi uma Revolução em que os tanques paravam nos semáforos.
Nada define tanto os portugueses como esta oscilação, ou antes esta dupla injunção de carácter: o medo à autoridade foi-lhes de tal forma inculcado que mesmo no curso de uma revolução se respeita escrupulosamente a lei. O extraordinário filme de Susana Sousa Dias, Natureza Morta, mostra o júbilo profundo com que as massas ignaras se empanturravam quando eram visitadas por Salazar ou pelo cardeal Cerejeira: vê-se no lampejo dos olhos, na adesão de cada poro, o fascismo confortava-lhes em festas e ritos a irrelevância quotidiana, o sentirem-se um «zero à esquerda»; era um carnaval investido de beatice, e onde cada cidade competia com o seu santo.
No dia 26 de Abril já ninguém era fascista, só os Pides (os esbirros da polícia política de Salazar), e mesmo esses foram rapidamente perdoados. Quarenta anos a serem malhados pelos torcionários da Pide deram aos portugueses “a visão” de que eles não passavam de “rapazes desviados”, a merecerem redenção. E por isso, na generalidade, nem sequer foram julgados. Os que fugiram, na maior parte para o Brasil, não tardaram a regressar e a encontrar acolhimento, como empresários ou especialistas da segurança.
O dia 25 de Abril deu-me de imediato uma lição. Os soldados desciam do Cristo-Rei onde haviam ocupado uma posição chave no sitiar de Lisboa e passavam pelo largo onde eu tinha nascido e a população se amontoava. Era um largo eminentemente popular porque havia nele um mercado e ali se concentrava todo o comércio. Eu tinha 15 anos e queria beber tudo o que se estava a passar, desde que a minha mãe entrara no quarto e me acordara para anunciar, “houve uma revolução, caiu o fascismo…”. Eu compreendia vagamente que isso significava que não iria ser chamado para a Guerra Colonial, o que seria bom, e queria perceber o resto. Cada vez que passava um contingente de soldados no largo era um corrupio, com o povo a enaltecer os “libertadores”, num cruzamento de palavras de ordem que empolgava os soldados, que se desdobravam em mini-comícios. E de repente alguém grita, dêem chouriços, dêem fruta aos nossos libertadores. E todos os comerciantes se prodigalizaram de braços ao alto com o paio ou o pepino. E no meio deste reboliço, outra voz grita, é um fascista, o Dias é um fascista, quer oferecer aos soldados chouriços de segunda.
O açougeiro Dias era o pai duma amiga minha do judo, dois anos mais velha que eu, com quem eu no meu íntimo já pecara em intenções e em omissões mas que me mantinha carinhosamente no meu lugar de “fedelho” mais novo. Contudo, no mês anterior ela convidara-me para a festa de anos, na cave do talho (o açougueiro) do pai, um privilégio que eu pagara com o gesto involuntário de lhe oferecer uma caneca azul-mosca com a ponte sobre o Tejo estampada a dourado (nunca perdoei à minha mãe ter-me forçado a tal presente e não me ter dado o dinheiro para eu lhe comprar um long-play), e isso criara um laço novo entre nós; ou seja, o Dias e a família mereciam-me estima e, instintivamente, corri para a porta do talho para fazer dique contra a vaga de revolucionários perigosos que dela se aproximava. Seguiu-se uma meia-hora de grande tensão com o Dias a jurar que dera aos soldados “os melhores enchidos do país” e a melga duma varina a incitar a mole humana a um linchamento sem perdão.
Os próprios soldados apaziguaram os ânimos, garantindo que era preciso perdoar “ao inimigo”. Daí que o Dias não se tenha livrado de três meses de ostracismo, com a loja às moscas (do qual se libertou ao inscrever-se no Partido Comunista), mesmo que entretanto se tenha sabido que a varina que tudo conduzira tinha na loja uma dívida monstruosa.
A observação deste episódio e o posterior esclarecimento das suas motivações ocultas introduziu no espírito do adolescente que eu era uma vontade de inquirição que nunca mais me permitiria o alinhamento ou a militância cegas. Tirei as devidas consequências daquele acto.
Ora, um dos problemas do país, soberbamente psicanalizado por Eduardo Lourenço e José Gil, é que nunca tira as devidas consequências dos seus actos. O José Gil chamou a essa malsã característica dos portugueses a falta de inscrição. E por isso em Portugal tudo é espuma, aparência, e os grandes infractores gozam duma impunidade vitalícia enquanto se escolhem os pequenos infractores como bodes expiatórios. É o que hoje se passa com a perseguição descabelada da raia miúda que não pagou os impostos porque não tem, enquanto os tubarões continuam impunes – uma das indignidades do “socialismo” de Sócrates.
A falta de inscrição não é de agora. Descortina-se na facilidade com que Portugal passou de um “país pardo/mulato”, onde metade da população era fruto da miscigenação (os visitantes de Lisboa do século XVIII espantavam-se que na Europa houvesse um país com tantos pardos por centímetro quadrado) para o “branqueamento” que o regime de Salazar imprimiu à sua História, reprimindo e repatriando para as colónias os mais escuros. E esses movimentos forçados de massas tiveram sempre lugar na mais vil sujeição.
Outro ignóbil exemplo de sujeição encontramo-lo no episódio de opereta bufa que levava os ministros de Marcelo Caetano, depois de Salazar ter caído da cadeira e ficado definitivamente xexé, a durante dois anos (até à morte do ex-ditador) reunirem com o ditador uma vez por semana para ele continuar a pensar que ainda manobrava os cordelinhos do poder. A ágape cristã reduzida à sua caricatura mais excruciante.
Trinta e cinco anos depois do 25 de Abril, a Assembleia da República aceitou a inecessidade de se comemorar no Parlamento a data que consagrou o regime democrático. A razão que se aponta é, à data, o parlamento estar dissolvido. Eles não querem interromper a folga.
Eis um país a braços com uma falência que não é só técnica para ser também, a partir deste momento, e sobretudo, simbólica. É um país sem projecto e que denega o seu passado mais vivo. Porque a grande diferença do 25 de Abril sobre todas as outras datas que a constituição consagra é que as outras âncoras simbólicas da identidade portuguesa nos remetem para um passado mais ou menos mítico enquanto o 25 de Abril devolveu o país ao presente, e esta dimensão é a única que não deve ser descurada no porvir duma comunidade. Por isso esta é a única data que importa.
Esta súbita «dessimbolização» do 25 de Abril é uma coisa gravíssima que indica que os partidos com acento neste parlamento já se julgam acima dos símbolos que os legitimaram, como a canalha de qualquer polícia-política se julga acima de qualquer lei. E mostra – a tramada «longa duração» do Braudel revela como tudo se torna naquilo que é - que o 25 de Abril não passou de um momentâneo assamento das virilhas.
Eu, por mim, meus caros, que nunca fui dado à melancolia e ao fado (chateia-me de morte tal estilo musical), acho que um país que já só tem poetas é uma aberração social sujeito ao triunfo da corrupção e ao retorno do fascismo mais ronceiro, que se alimenta da aviltação dos corações.
A sugestão do Saramago é a única que me parece boa neste momento: votem em branco.

CARTA A UM JOVEM ESCRITOR / 1

Rubens: Saturno o mais
competitivo
dos deuses, devora os filhos 
Escrevia um msn: “confirma-se o pilim”: para sossegar a minha mulher (em Portugal, pilim não significa o “peru” do Brasil mas dinheiro), que isto entre canalha pobre é sempre um ai Jesus, e vêm-me de súbito milhentas formas para nomear o el contado: pataco, cheta, mola, lecas, painço, palhaço… e outras de designar a relação com ele: andar à brocha, não ter um chavo, aquilo com que se compram os melões, teso como um carapau, ou mais sucintamente: estar teso (em Moçambique já fiquei baralhado por ouvir de distintas doutoras: “o meu marido não tesa”, sem saber se tal significa a disfunção sexual ou se ela está a gabá-lo como empresário de sucesso); estar nas lonas, andar aos bonés, ou a minha preferido, andar ao tio ao tio – digam-me lá se isto não é um título duma música do Pinxinguinha?
E é da relação com o dinheiro que agora se trata. Sempre tratei o dinheiro de forma instrumental e nunca aprendi a usá-lo como relação simbólica – o que, claramente, me tem prejudicado. Por isso ao pedirem-me um orçamento para algum trabalho, penso primeiro no tempo que levo a despachá-lo e na adequação monetária ao contexto (isto é, exigiria muito mais em relação a uma reportagem ao Expresso, de Lisboa, do que aquilo que peço ao Savana, de Maputo), não colocando em primeiro lugar o meu currículo ou o que “devo” receber face ao capital da “minha competência” (- isto é tão pomposo, que deve ser por isso que não sei usar essas armas). Em suma, sou um ingénuo.
Tenho a infelicidade de ser rápido no trabalho, tive o treino dos jornais e quando me entusiasmo imirjo nas coisas. Não digo que seja como o Dias Gomes, que escrevia uma peça de teatro em dois dias e depois telefonava aos amigos dramaturgos a perguntar quantos meses eles levavam para acabar uma peça para não parecer ao produtor que lhe havia encomendado um espectáculo que ele lhe estava a impingir algo que já tinha na gaveta, mas fico no meio-termo; e aí sigo a regra do Jean-Claude Carriére (o genial argumentista de Buñuel, para além de milhares de outras coisas notáveis como a adaptação do Mahâbhârata para o Peter Brook)  que, ciente do tempo que precisa para realizar uma encomenda, pede o dobro do tempo para assim alternar ócio e trabalho, sem se sentir sobre pressão.
Mas ainda assim sou demasiado rápido para o costume, em terras (lusas e moçambicanas) onde se pode levar de 5 a 8 anos para se fazer uma tese universitária e de 6 meses a 1 ano para fazer um guião de cinema. E o problema é que caio sempre na esparrela do bandido e acabo por só pedir o estrito para viver razoavelmente bem nesses meses e, como diria a minha mãe, não penso no futuro.
Ora aí está um mau exemplo – jovens candidatos a escritores e guionistas.
Vou-vos dar um exemplo. Imaginemos uma situação, para abertura de um filme. O cenário é Maputo, numa avenida em cujas traseiras fica encravado um bairro “clandestino” e problemático, associado ao comércio das drogas e ao roubo:
«A noiva puxa para cima o seu vestido branco para que não roce no chão de terra, e corre das artérias do bairro para a avenida de asfalto. Na mão tenta desesperadamente equilibrar um bolo de noiva.
Mete pela estrada de asfalto, na direcção da farmácia. O seu insólito aparecimento provoca pasmo no caminho, mas a noiva vai concentrada na conjugação da velocidade com o equilíbrio do bolo.  
Entra na farmácia, ofegante. Retomando o fôlego pede uma bomba de asma para a mãe. Perguntam-lhe porque veio com o bolo e responde que foi a mãe, que está sozinha e com um ataque de asma, que a incutiu a levá-lo para que o não roubassem. O noivo não atendia o telefone e ela teve de se decidir, antes que desse um badagaio na mãe.
Sai da farmácia em corrida, o bolo em esforçado equilíbrio na mão, e a meio ainda da estrada de asfalto, começa o aguaceiro – com bátegas que engrossam a olhos vistos.»
Isto é um começo de um filme forte, em qualquer parte do mundo, mas hoje sei que para o realizador terá muito mais valor se tiver custado 10 000 dólares do que se custar 500 dólares.
Se for vendida por 500 dólares o realizador quererá “melhorá-la”, se for por 10 000 dólares (aqui, nos EUA tratar-se-ia de um milhão), ele não admitirá sequer discutir e a sequência estará aureolada de um valor dramático astronómico.
A situação dramática em si vale o mesmo – tem a mesma força impactante, a diferença está nessa dimensão oculta: a relação simbólica com o dinheiro. Não a esqueçam, ela, misteriosamente, neste mundo canalha, onde o talento e o trabalho honesto não chegam, conta. E não façam “trabalhos para amigo”, o amigo vai rapidamente confundir a coisa e tomar o baixo preço por uma subalternização na relação. Por um vício mais comum do que pensamos e que sempre me surpreendeu: as pessoas vivem em competição.
Meu caro: o objectivo é ter a inteligência da gestão de Rubens e fazer-se pagar, sem piedade, e não a sofrida camaradagem que só dá equívocos e a modéstia dos cabritas da silva desta vida.

terça-feira, 29 de março de 2011

MON AMI BILLY WILDER

wilder (moi) et son épouse, audrey

Sinto-me um bocado Antoine, L’antique, mas detesto entrar estremunhado na casa-de-banho e deparar com o papel higiénico feito em estilhas. Pois claro, foi mon chat, Sebastião, Votre Contemporain, o gato maltês que me adorna agora o lar. Entreteve-se a afiar as unhas no rolo.

Aflorou momentaneamente em mim uma crueldade reptiliana, que sustive ao lembrar-me dos hábitos de reputado poeta moçambicano que lê o futuro nas nódoas negras com que enxameia o corpo das mulheres, deu-me uma agonia e travei o instinto. Não quero ser como esse poeta lírico uma sensibilidade à la maison e outra na delicada palpitação das leitoras. Eu cá sou assim, duma só peça, antique.
Vou buscar outro rolo à despensa, esfrego-o no focinho felino e soletro, mansamente: «ouve lá, meu cabrãozinho, voltas a fazer aquela merda e dou-te uma pantufada que ficas astronauta em três tempos, estamos entendidos?». O miado algo estreme do felino pareceu-me traduzir uma compreensão clara do meu retorno ao comando da casa, de estar ciente que se não se comporta o levo para a escola e o esfrego nas equações de terceiro grau nos quadros da sala, equações, como se sabe espinhosíssimas. Comigo é assim, Antoine, L’antique.
Passo à sala e enfrento o tornado da passagem dos hunos - as minhas filhas entretiveram-se a fazer em farrapos o meu arquivo de artigos antigos, e desenharam óculos e bigodes a vermelho e amarelo no retratinho que encimava as minhas crónicas. Quem me manda chamar às ditas, Nada do outro Mundo? Círculos rombos e cubos tortos, a marcador, enfeitam-me as prosas. Assoma-me de novo aos cabelos eriçados aquela crueldade reptiliana, mas o flash súbito daquele reputado poeta moçambicano, etc., etc. Un homme antique.
No meio dum círculo verde descortino um nome que sempre me empolgou: Billy Wilder. Resolvo espreitar a que propósito chamei à liça um génio. Leio e rio como um danado. Isn’t bad. A crónica tem quatro anos e nela produzo uma variação sobre uma ideia para filme que o Wilder nunca realizou, e oferecia ao presidente Bush (- meu Deus, o que eu já fiz para ver se os americanos reparam em mim!) essa sinopse para um filme de propaganda aos seus célebres métodos para combater a Sida.
A ideia é tão engraçada que a vou transcrever com um ligeiro acrescento final, por causa desta minha nova e inescapável índole d’ homme antique.
Ano, 2020. Instalou-se no mundo uma Nova Guerra Fria que separa Povos Com Sida de Povos Sem Sida.
Num congresso de cientistas da saúde africanos, realizado em Kingshasa, destaca-se o trabalho de Ónus (moi), um académico moçambicano - um homem íntegro, antique, e que só tem por fraqueza gostar de uma pinguinha.
É a ele que os observadores americanos, enviados por Bush, escolhem para ser o inconsciente portador da fórmula secreta de uma “bomba” (cujo poder curativo mudará a face do continente), que será posteriormente resgatada por agentes boers (- os americanos, muito desiludidos com a ANC, não se arriscam a passar-lhes directamente a fórmula para não serem acusados de favoritismo na ONU).
Para tal, convidam-no para uma festa, embriagam-no, raptam-no e depois tatuam-lhe no pénis a fórmula. Que só pode ser lida em erecção.
O cientista acorda azamboado e de ressaca no hotel, a uma hora do seu embarque de regresso, e, com a pressa, não dá por nada.
Chega a casa, em Maputo, desfaz as malas e toma um duche, antegozando a noite maravilhosa que terá com Bárbara, a sua mulher. É aí que dá conta: tem algo tatuado no sexo. Ónus entra em pânico: não há desculpas que justifiquem aquela inscrição (que não consegue ler) e a sua estranha amnésia. Ainda por cima, acontecer-lhe a ele, fidelíssimo à mulher!
À noite, a culpa inibe-lhe a erecção. Como acontece pela primeira vez, entre eles, a mulher graceja e adormecem após uma boa galhofa. Ou antes, ela. Ele não, está à rasca. E ao longo da semana repete-se a nega. A esposa começa a desconfiar que ele tem outra. E o sentimento de culpa dele adensa-se.
Os outros países africanos começam a enviar-lhe mulheres cientistas de grande aparato físico, para o atraírem a uma cilada sexual.
A lasca do Zimbaué – uma enóloga - embriaga-o ao falar-lhe sobre uma videira transgénica que dá uvas com o tamanho de melões, sem o conseguir levar para o quarto.
A enviada etíope atrai-o ao quarto sob promessa de lhe mostrar um besouro em cuja carapaça a natureza desenhou o Rato Mickey. Mas um copo a mais de Mateus Rosé fá-lo sucumbir no sono, no sofá, antes dela regressar da casa-de-banho, nua e em oferenda.
A África do Sul envia uma Mata-Hari especialista no xeque-pastor e capaz de derreter um iceberg quando expõe o mamilo esquerdo, o menos abrasivo. Mas só de lhe pressentir os atributos, com a mudança de temperatura Ónus apanha uma gripe de caixão à cova.
A Mata-Hari não se desmancha, é paciente, tanto como a ingenuidade de Ónus que, passada a febre, se deixa enrolar pelo parlapié da colega cientista e sobe ao quarto dela, num intuito académico. Martini puxa Martini, e eis Ónus enfiado na cama dela, atarantado mas nu.
Contudo, sendo homem de uma obstinada fidelidade, a erecção não tem lugar.
A sul-africana não está com meias medidas e tira da mala um x-acto para decepar o membro murcho. Debruça-se sobre a cama, o olhar amortecido de Ónus nem se apercebe do brilho da lâmina...
É então que Bárbara, que o seguia sorrateira há uma semana, abre a porta num pontapé. Com dois golpes de Karaté (aprendidos no Marítimo) despacha a espia boer e amarra-a ao cadeirão.
Ónus, a quem a entrada de rompante da mulher pusera sóbrio, observa deliciado a limpeza com que a sua mulher o salva – sim, é sua, a mais felina das mulheres! E o entusiasmo proporciona-lhe a maior erecção da sua vida.
Ónus e Bárbara, lêem então, assarapantados, a fórmula que ele exibe, tatuada no pénis: Abstinência!
Mas como Ónus (moi) c’est un homme antique…


 

segunda-feira, 28 de março de 2011

A CERIMÓNIA DO CHÁ/2: QUEM BATEU EM CASTELO A VIA LÁCTEA?

hokusai

Prometi que não publicava mais poesia nos próximos dias. Devia estar calado. Mas a culpa não é minha. Explico-me.
Há que não ter medo das enormidades: esta noite, um selvagem estacionou o seu fô by fô à frente do meu prédio e abriu o chavascal.
Às duas e trinta da manhã o sonho dele era ser Dj e o meu ter uma bazuca.
Ainda roguei que um meteorito o impactasse numa sandes de poeira, o que me aliviaria de ter de passar ao crime, mas os flatos musicais continuaram impiedosos.
Não me coube outra solução. Levantei-me, à procura de lenitivo.
Peguei nas traduções de Kenneth Rexroth da poesia japonesa, nas de Octavio Paz, numa antologia francesa da Gallimard de clássicos japoneses (traduzida e prefaciada por G. Renondeau – que nome!), e pus-me a cruzar versos e a informação. Entretanto, na nota biográfica que Jorge de Sena apôs às suas traduções de Bashô, descubro que «bashô significa banana, e é nome adaptado pelo poeta, em homenagem irónica à bananeira que havia em frente à porta de sua casa». Não me lembro de alguma vez ter reparado nesta informação e dou conta que Bashô, ao escolher esse nome para si, inventou muitos séculos antes de Duchamp, os ready-made. E sentado sob o frondoso relâmpago do riso liberto-me do chinfrim que está lá fora e descortino novas variações, uma senda nova para velhas formulações. Saiu o que se segue, reajustado ao cataclismo que abateu o Japão:

BATER EM CASTELO A VIA LÁCTEA

Tenebroso: quem
bateu assim em castelo
a Via Láctea?

Sem uma palavra prévia,
a cidade e o tsunami
emudecem a câmara.

Apoderou-se de tudo
o ladrão – de tudo
menos da lua.

Não sejam insensíveis, também
foi comprida a noite do mosquito -
comprida e tremebunda.

Nasceu do nada, o dragoeiro
que empavoa o pátio
da casa derruída?

Branco da caliça, dessoterrado,
suspenso da mão da mãe, o miúdo
cai em si ao ver a flor da cerejeira.

Um lago o antigo jardim, engolidos
os baloiços por águas tão frias
que não dormiu toda a noite a gaivota.

Este caminho, já
nem os néons o percorrem,
salvo o crepúsculo.

Nove na escala de Ritcher:
debaixo do capacete do bombeiro
um grilo canta!

Papagaios de papel:
nenhum kimono de seda
sobreviveu ao pranto da terra.

Terra bendita, aquela em que se pode
perguntar, viste por aí a minha gueixa,
em vez de, viste por aí a minha gaja?

Come serpentes o faisão,
dizem-me. Já nada me espanta.
Hoje algo roeu os dois.

Fica sem rugas,
o arrozal, quando a terra
o engole!

Procura a sua casa sob os escombros.
A casa ou o seu silêncio? Mais
não pede a andorinha, na Primavera.

Salvé, o espírito ecuménico
com que os navios desabrocham
nos ramais do aeroporto!

A avó descobre que são jovens
as suas lágrimas. A adolescente cata
o seu email, da placidez do luar.

O ruído das turbinas parou:
o som das cigarras
serra a esperança.

O mais famoso sapo do mundo
salta e ressoa fundo no silêncio
em que deus escondeu a cabeça.

Sobre a chaminé tombada
em tufos de sangue, sapateia
o corvo: reportagem da CNN.   
  
28/03/2011

Nota: «bater em castelo» em Portugal, é o que se faz às claras dos ovos para fazer bolos.
Metade dos haikus é variações a partir dos clássicos, face aos quais adopto, na maior parte dos casos, grandes liberdades, a outra metade brotou do fluxo. E claro que a sequência narrativa é minha.

domingo, 27 de março de 2011

AS FLORES DE LEMINSKI

Paulo Leminski, uma das figuras cimeiras da geração de setenta no Brasil, era poeta que menosprezava, por influência de um ex-amigo brasileiro (onde os afectos nos levam), até que, em 2009, em Maputo, numa feira de livros de fundo comprei uma sua recolha de contos, póstuma, Gozo Fabuloso. Foi tal a pancada que fui à net e baixei 90% da sua obra e o li e reli de fio e pavio, e nele descobri, para além de livros maiores como Catatua, ou Metamorfose (que entretanto perdi, se houver uma alma caridosa que me quiser mandar uma cópia agradeço), como se pode responder com propriedade e despretensão ao apelo da concisão e do silêncio na poesia, pois as suas são pegadas de bonsai.
Não sei se os brasileiros continuam a fazer boca fina à menção de Leminski (os portugueses imaginem liga conseguida pela mistura de Al Berto, António Baharona, Luís Pacheco e Jorge de Sousa Braga) o que talvez resultasse do seu alcoolismo e da mitologia do maldito que seguiu até ao fim. Mas os que rondaram por aí e sobreviveram a essas idiossincrasias épocais, como eu, são sensíveis à extrema inteligência que se arma em muitos dos seus textos e ao seu notável ecletismo (experimentem ler por exemplo a sua biografia sobre Cristo). Para os que se interessarem, busquem em «4shared». Está lá tudo, e a sua curiosa biografia, O Bandido que Sabia Latim.
Escrevi o ciclo que se lê em baixo para um livro de admirações, inédito (onde endereço textos a Henri Michaux, Carlos de Oliveira, Hugo Claus, Grabato Dias, Al Berto, Herberto, etc.), e faço derivações em torno de admirações firmes, às vezes no exercício dramatúrgico de incorporar alguma coisa do estilo do poeta que homenageio.
 

LOTAÇÃO ESGOTADA
Encontro com Paulo Leminski à esquina de um haiku*

1
A dignidade suprema
de um navio
perdendo a rota:

sentou-se
o mar
naquela rocha

a olhar
o farol

o seu círculo
por tudo
quanto é fissura


2
Poema
abandonado
sobre a mesa

como a maçã
mordida
pla criança
desaparecida:

circo
dentro
do pão                                            


3
Despressurizada
a vida

no vento
que se agarra
aos Seus cabelos

4
Encavalita-se
o castanheiro
na lua

pelo menos
uma vez
por mês:

paisagem
em quarenta
clipes

5
Qual é a parte
de trás
de uma árvore?

onde
se mija.

qual é frente
de Deus?

a que faz urinar.

6
Sempre
que uma peça
do presépio
se quebrava
e a cabeça
se separava,
subitamente
espessa,
a minha mãe
punha uma uva
no seu lugar:

o vinho
crisma
o corpo.


INFIEL, EU?
Deus
dis
cerne

as serrilhas
de um selo
das teclas
de um piano

o baile
no teu decote
das ervas daninhas
que agora
se arrepelam
ao meu toque

Deus
des
centra
Lisa

8
Digno de nota
a laranja cravada
na duna

e esta cauda
de preguiça

nas palavras
que tocam
o sol


FRACTAL
na talha cinzenta
daquela nuvem
há aguaceiros
de verão.


POSTIGO
a placa
de luz
aplaca
o pó:

xis
coxo

amanhecido


11
Cabeça
tem o prego,
e o martelo

o homem
tem o silêncio
que se segue

e às vezes
a palavra
que o antecede

se tiver
evitado
perder
a mão.


THRILER
Aporrinhou-se,
só porque lhe dei
uma azeitona

foi para estrear a arma,
juro!

Que mal tem crivar
o peito nu
de rosas
humedecidas?

É falta de humildade,
é o que é!

Humor, se o teve,
saiu ao Trostsky,
o zagueiro
mais frangueiro
do século!

Falava ele
em poema
poroso!

Osteoporose
mental!


13
Vida é esgueirar-me,
sussurrar baixinho
no covil do grito.

ver como o gavião
perfura
o vapor de água
na catarata

e pensar
há dias
em que é assim mesmo!

14
Uma vidinha mal passada
com um ovo a cavalo
e uma cerveja como (s)ela.

15
Apenas beliscou o amor.
Entre um e outro gole,
beliscou o amor,

como se pasmo, diante
do cromado da torneira,
a esquecesse de abrir.



luis bastos, red 2
EM MARES MORTOS
Abrir-lhes a cuca
deixar que transvasem
os maremotos

no seu lugar
plantar
o Teatro Paiol.


TER OPINIÃO
- Achei pernóstico?
- Eu também

- Ouve lá, que significa pernóstico?
- Eu também


AS CEREJAS DE MALLARMÉ
Tinha crises de megalomania:
desde miúdo que as cerejas
lhe enfeitavam as orelhas,

não topava interruptor
que não premisse de imediato,
vítima de incontinência!

Assim que se apanhou no velório
da mãe quis esticar as pernas
e pôr-se ao fresco

mas a lâmpada que levava
na cabeça estava quente.


PIETÁ
Vagões
cheios de lágrimas
de vidro.


QU’EST QUE L’ARGENT?
O museu do vento
tomado pela chuva
e o granizo
e a rapariga de cabelos
cheirando a salsa,
de olhos melados,
convulsa
sob a tua sombrinha,
asperamente
amarfanhada,
enquanto cabotino
lhe explicas
que devemos manter
intacta
a fragilidade
original.


NABI

i
Deveria a palavra adúltera
ser apedrejada
pelo povo
até à morte?

a natureza
admite cucos -
por que não nós?

quem nunca
tiver comido
um fruto
seco
atire
a primeira pedra.

ii
É nascida,
a Virgem
de uma coxa
de Cristo

tragam ouro,
incenso, mirra,

em faltando,
electrodomésticos

aceitamos tudo.

iii
Num dos evangelhos
apócrifos
um menino pula
nas costas de Jesus
e morre instantaneamente,
só para Jesus ressuscitá-lo

talvez a moda
tenha pegado,
nunca esclareceremos
se os poderes
do taumaturgo
foram menorizados
pela censura romana
ou pela sua modéstia

iv
Tudo o que faz é pregar.

Pregos – signos.

Pregos que um dia o crivariam,
carpinteiro, numa cruz
de madeira.

A explícita deslocação
dos sonhos, segundo Freud.

Teria sido Cristo
um sonho colectivo,
algo como um maremoto
no mar, quase
andrógino, quase nada?

22
A colher
com que o tempo
mexeu
os líquidos
amnióticos
extraviou-se
a caminho
do leilão

não há agora
como controlar
a velocidade
do abismo
que te puxa
o tapete.

23
O que me fascina
na morte:
o vento
declina
de sondar
os buracos
da minha ausência.


24
Com os dedos
artilhados a noite
minuciosa
faz
de cada rouxinol
emudecido
um brinco;
se na eminência
da alba
surpreenderes
ainda
no pássaro
uns olhos melancólicos,
não hesites
e mete-lhe a cabeça
no tabasco.


URGE
Uma arte amnésica
que chapinhe
no seu próprio
sangue
como um pinto
decapitado.


VARIANTE DE UMA VARIAÇÃO
DE LEMINSK ARTILHADA
EM BASHÔ E MALLARMÉ
O schlaaap à tona da verdoenga
água do poço jamais
abolirá o acaso: é sapo!


RETRATO DA TIRANIA
DE SER EU MESMO
Glu glu!

* os versos em itálico são de leminski

PS - Estou a ficar farto de poesia, para a semana é só política