sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O OLHO GORDO DE HERZOG

Mais um prémio para O Olho de Herzog. O João Paulo merece porque trabalha com a paciência e a minúcia do ourives. Com um gozo que transmite à escrita.
Um dia, passei uma tarde sentado na esplanada da Pensão Martins, em Maputo, lendo o Campo de Trânsito e polindo um pequeno ciclo de poemas em prosa que lhe dediquei. Aqui os deixo, em homenagem:

AS 11 VISITAS DO POETA WALLACE STEVENS
À ESPLANADA DA PISCINA DA PENSÃO MARTINS

ao João Paulo Borges Coelho
 Adágio 1
Hapiness is an acquisition 

‘Mais claro não canta um galo’, repetia, os olhos desfechados no peito dela, dois semáforos para cegos, lambuzando a carne ‘branca como acuçenas’, já esquecido de lhe haver prometido varrer o corpo com o olhar isento de um corrector de provas, ‘escuta, aqui não há ninguém a quem salvar’, quis emendar; a boca plasmada, as mãos gretadas no ápice da fonte, ah sim, a felicidade é uma aquisição...


Adágio 16
Thought is an infection. In the case of certain thoughts it becomes an epidemic

Em miúda foi pisoteada três vezes e meia pelo mesmo casco, o dianteiro esquerdo, do Red Bone - um ginete que valia o seu peso em aricalco. Na adolescência quis pôr anilha a uma cegonha, para saber se era a mesma que em sonhos lhe caía sazonal e lugubremente na sopa. Quando casou pela terceira vez com Richard Burton, Liz pronunciou «sim» já ciente de que o pensamento é uma infecção que, no caso de certos pensamentos, degenera em epidemia. Mas onde enxergar melhor enfermeiro?


Adágio 24
The loss of a language creates confusion or dumbness

Há três verões que não faziam marmelada debaixo da mangueira do fundo do quintal. Nem em algum outro lugar experimentou o seu sexo ventania. Olhava do alpendre o folhedo que a ceifa do Inverno acumulara cerce ao tronco cansado do jacarandá e decidiu que não enfrentaria mais ao espelho a sua figura romba, o rosto esmaecido, o peito caído, a língua seca e gretada pela perda de um idioma que lhe deixara confuso e gago o espírito.


Adágio101    (lembrando Dylan Thomas)
The death of one god is the death of all

O copo escapou-se-lhe da mão, bateu e rolou ao longo do veio mais macio da velha mesa de mármore - milagre, intacto - no justo instante em que o relógio de parede, nas suas costas, dava as treze e a sua esposa, elevando a voz do escritório contíguo, lhe perguntava  a morte de um deus é a morte de todos? Dezembro enchia de musgo as árvores, retrucou ‘hum, hum...’ e, enquanto num calafrio se inteirava do desvelado extravio do seu espírito, reforçou a dose. 


Adágio 132
The time will come when poems like Paradise will seem like very triste contraptions

Tentou vender os óculos raban, do Alto Maé à Costa do Sol, porfiou com sapatos russos quase novos, à terceira vez que lhe disseram ‘não’ a um rolex afinado que até doía sentiu-se um símio em terra de deuses perdulários e então abriu a navalha e matou, ciente de que o dia chegará em que poemas como o Paraíso se considerarão artifícios muito tristes.


Adágio 151
Life is the elimination of what is dead
(Robert Lowell inquire Mallarmé)

Quando por nós bate o sino, o último alento é mais fictício ou mais premente? Donde me veio em miúdo a ideia de que a aurora depena um anjo? À medida que atravesso a casa ela despovoa-se: adeus abat-jour, sob cujo halo li Moby Dick, adeus espelho, não voltes de Guadalajara, adeus escrivaninha onde lhe enderecei mil cartas de despiste - não é isto triste? Existe algures uma carne básica, da qual a literatura seja parte essencial? E, nesse momento em que o olhar se enrola para dentro como a língua morta do camaleão e a ponta do indicador direito se toca a si mesmo no escarpado nada, quem nos apalavra o armistício? A vida é eliminação do que está morto, e a morte os ossos convertidos em gelatina amarela? Sabias tu, ó Mallarmé, que a mínima careta arranha o rosto?


Adágio 160
The great poem is the elimination of what is dead

O drama é que não torna. A folha do caderno, depois de escrita despede-se de vez, a brasa no coração só deixa cinzas. Deixe a mão de sopesar a sua realidade num seio e o salmo que se magnificava com a chuva fica mudo. Eis o despejado de melanina, o albino, fértil nos passeios de Maputo – arrepiam, no branco da chávena, os seus dedos adustos, coloridos pelo tabaco - o que nunca foi pode recompor-se? Olha-me através de uns óculos fumados que lhe acentuam um ar de mosca – é seu, ou empresto-lhe eu o semblante inumano? O amor que não resulta é o pneu que na curva se desprende do carro, tal como o grande poema é a eliminação do que está morto? E o transatlântico que se afasta, é um soneto? 


Adágio 222
Words are everything else in the world

A espuma daquele fim de tarde, na praia do Tofo, trepava-te pelo corpo, cobria-o de uma renda onde repicavam acenos suaves como o mar de Ítaca na proa da nave de Ulisses. Words are everything else in the world.


Adágio 234
The more intensely one feels something that one likes the more one is willing for it to be what it is

Desapareceu durante as três semanas de chuvas inclementes que patrocinaram no Zambeze um Museu da Calamidade. Cheguei a ponderar: estas cheias alimentam-se do meu pranto. Voltei a vê-la, dentro de um jipe. Sorria para ele, mas eu estava em trânsito, num chapa apinhado. Reapareceu mais magra, um vinco levemente violáceo sob as omoplatas, um dente partido e olheiras mais fundas que o baque surdo da bola de snooker, e eu disse que sim. Vens convalescer, indaguei, Fazes-me um chá, murmurou. Sim. Quanto mais intensamente sentimos algo de que gostamos, mais queremos que seja o que é, e ao contrário de Pedro no horto das oliveiras, eu disse três vezes que sim.


Adágio 264
Reality is the object seen in its greatest common sense

Assim que fechava os olhos, revia o sangue a gorgolejar, junto à lâmina da faca semi-enterrada no pescoço. Ele esvaíra-se ao lado do frigorífico, aos safanões, os olhos pregados de espanto no faqueiro italiano comprado de véspera. Abria-os e era outra a cozinha, os azulejos com pássaros azuis esmaltados tinham dado outra alegria à casa, e molhava o pão com manteiga no chá. À noite ingeria o leronin para obstruir os sonhos, que a realidade é o objecto visto no seu mais intenso sentido comum.


Adágio 1 (variação)
Hapiness is an acquisition 

‘Mais claro não canta um galo’, repetia, os olhos desfechados no peito dela, dois semáforos para cegos, lambuzando a carne ‘branca como acuçenas’, já abstraído de lhe haver prometido varrer o corpo com o olhar isento de um corrector de provas, ‘escuta, aqui não há ninguém a quem salvar’, quis emendar, antes dela interromper, zangada: ‘olha as minhas mamas, são pretas!’. Tens razão amenizou ele – ciente de que o silvo da felicidade é uma aquisição -, e isto é um poema.

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