´jazz band, matta, 1973 |
As insónias são para o que servem: ou planificamos o negócio sobre bonsais que nos vai confortar a reforma ou enlouquecemos; ou relê-se algo que nos trouxe alegrias e analisamos a mecânica da escrita ou a geringonça da insónia tritura-nos vivos.
Salvaguardei-me esta noite com dois dos meus hits, Nabokov e Cioran. Do romancista, o impagável «Pnin», que me devolveu uma palavra: «rododendro» – dá-me cem gramas de rododendro mal passado, por favor? – e me fulminou com um adjectivo: «toucinho opalescente.» Seria preciso escrever um livro para explicar porque é que só uma frase de Nabokov alumia um mundo. Quando se lê esta descrição: «uma cidade antiga em que a água é preciosa, com a miséria dos burros, tapetes à venda, minaretes, estrangeiros e melões, e os vibrantes pregões da manhã.», percebemos a inutilidade dos cursos de escrita criativa. Não é possível ensinar a associar a água preciosa e a miséria dos burros, os estrangeiros e os melões, ou se tem a imaginação e a crença para fazer dum inventário tão caótico algo que brilhe e resulte no encadeamento narrativo ou não se tem, ponto final.
«À sua frente um esquilo cinzento pousado no chão sobre os quadris confortáveis examinava uma pedra cor de pêssego. O vento tinha amainado e voltava agora a agitar a folhagem.» Uma pedra cor de pêssego? É Cézanne e o seu inusitado resgata a vulgaridade do cinzento. No desfecho, eu, pobre de mim, que aprendi em Hemingway, teria encurtado para “o vento voltava a agitar a folhagem”, sem dar conta que o vento vai e vem, e que essa repetição sugerida multiplica o tempo da acção tornando implícito que também o esquilo pode entretanto levantar-se dos quadris e bazar, ficando o quadro dinâmico e não estático. E é por isso que o sr. se chama Nabokov e não é um triste chamado Cabrita.
Mas depois de excursionar cinquenta páginas pelo russo-americano fui navegar nas águas do franco-romeno Emil Cioran. Um pequeno livro de aforismos, de título Sillogismes de l’amerture/Silogismos da amargura. Normalmente passamos pelas palavras numa pressa atabalhoada, com o Cioran isso não é possível, e vai-se sentindo o terreno como o cego apostado numa corrida de cem metros obstáculos: sentindo o risco não só em certas partes mas em todas as partes, e sofrendo o embate dos seus aforismos lapidares.
«Que não nos falem mais de povos submetidos, nem de seu gosto pela liberdade; os tiranos são sempre assassinados demasiado tarde: essa é a sua grande desculpa.», ou:
«Dizer: “prefiro este regime a tal outro” é flutuar no vago; seria mais exacto dizer “prefiro esta polícia à outra”. Pois a história, com efeito, reduz-se a uma classificação de polícias; pois de que trata o historiador se não da concepção do policiamento que o homem foi perpetrando através dos tempos?».
E às tantas, dou de caras com o capítulo Sobre a Música. Como o meu amigo José Capão é um melómano opalescente (hum, será que funciona?) e hoje faz anos traduzi para ele:
SOBRE A MÚSICA
Nascido com uma alma normal, pedi outra à música: foi o começo do desconcerto, de desastres maravilhosos…
Sem o imperialismo do conceito, a música teria substituído a filosofia: teria sido então o paraíso da evidência inexpressável, uma epidemia de êxtase.
Beethoven viciou a música: introduziu nela as mudanças de humor, deixou que nela penetrasse a cólera.
Sem Bach, a teologia careceria de objecto, a Criação seria fictícia, o Nada peremptório.
Se alguém deve tudo a Bach é sem dúvida Deus.
Que são todas as melodias ao lado da que afoga em nós a dupla impossibilidade de viver e morrer?
Para quê reler Platão quando um saxofone pode igualmente fazer-nos entrever outro mundo?
Sem meios de defesa contra a música, estou obrigado a sofrer o seu despotismo e, segundo o seu capricho, a ser deus ou maltrapilho.
Houve um tempo em que, não logrando conceber uma eternidade que pudesse separar-me de Mozart não temia a morte. O mesmo me sucedeu com cada música, com toda a música.
Chopin elevou o piano ao esplendor da tísica.
O universo sonoro: onomatopeia do inefável, enigma desdobrado, infinito percebido e inacessível… Quando se sofre a sua sedução, já só se concebe o projecto de fazer-se embalsamar num suspiro.
A música é o refúgio das almas ulceradas pela dita.
Toda a música verdadeira nos faz palpar o tempo.
O infinito actual, paródia para a filosofia, é a realidade, a essência mesma da música.
Se tivesse sucumbido às meiguices da música, às suas chamadas, a todos os lugares que ela suscitou e destruiu em mim, há muito tempo que, por orgulho, teria perdido a razão.
A propensão do Norte para idear outro céu engendrou a música alemã – geometria de Outonos, álcool de conceitos, ebriedade metafísica.
À Itália do século passado – um bazar de sons – faltou-lhe a dimensão da noite, a arte de exprimir as sombras para extrair a sua essência.
Há que escolher entre Brahms ou o Sol…
A música, sistema de adeuses, evoca uma física cujo ponto de partida não seriam os átomos mas as lágrimas.
Talvez tivesse esperado demasiado da música e não tomei as precauções necessárias contra as acrobacias do sublime, contra o charlatanismo do inefável…
De alguns andamentos de Mozart desprende-se uma desolação etérea, como um sonho de funerais na outra vida.
Quando nem sequer a música é capaz de salvar-nos, um punhal brilha nos nossos olhos; já nada nos sustém, a não ser a fascinação do crime.
Como gostaria de morrer pela música, como castigo por haver duvidado da soberania dos seus feitiços.
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