sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

REVISITAÇÃO DE RULFO

Comprei numa banca de rua, pela quarta, quinta vez (ofereço-sempre), o Pedro Páramo, do Juan Rulfo. Sentei-me numa esplanada, li as duas primeiras páginas e soltou-se o texto, como um ferrolho que achou a chave:

tàpies

Nasceste com a cabeça crivada
de ruídos e vozes, como a velha
a quem a coluna verga a 90 graus.
Assim nasceste, o apelido
pendurado num prego atrás
da cabeça. Nasceste e durante
9 meses desataste nós, 9 meses
de atribulação num território
tão vago como um mamilo.
Enrolado ao teu áspero agasalho
vomitado de vozes e gritos.

Às vezes vinha o dia e o seu ombro
colava-se ao teu. Ou desfazia-se
em vapores entrecortados de gemidos,
quando o teu pai, tipógrafo, intoxicado
pelo chumbo exigia o indulto do amor.
E tudo se acumulava, incerto e opaco,
 - conhece um lugar chamado Comala? –
tragados os olhos pelas íris do mundo.

Os rostos pareciam-te cactos onde
martela a luz - faziam plás e plás,
e mais plás - e no sangue pulsava
uma cobra, sentia-la nas frontes,
como se abrisse um buraco.
O corpo incomandado como
um moinho estragado. E sobretudo
a imensidade dos estalidos na boca
de minha mãe, estando eu saciado.

Entre os dedos atrás do vento,
repetia o meu pai assim que lhe
indagavam sobre as suas dificuldades,
eu a leste de tudo e sem saber
o que fazer com o frio
que me chegava do anjinho
de gesso sobre a cómoda. Tantas
as imagens que me palpavam,
enquanto ia moendo no escuro
as vozes e ruídos que me atravancavam
desde nascido, o fardo que se paga
por um metro de locomoção.

E um dia, como se rebentasse perto
da cabeça um desses foguetes de aldeia,
acordei em silêncio – uma luz
transparentava a minha mãe -
e ágil soltou-se-me a primeira vogal.
cada um face ao ondear dos dias,
vale-se do que pode. Tens
de te conformar, avisou a minha avó.
E vi uma pomba desprender-se da tarde.

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