LEMBRAR ABELLIO

Os livros antigos servem para isto. Encontramo-los quando já os considerávamos extintos de todo, sentamo-nos no sofá a bebericar um gim e a folhear a velharia e somos abalados por um parágrafo, por outro; de repente temos na mão um porco-espinho cujo ímpeto não conseguimos estancar e o conforto de um velho desassossego sangra-nos os dedos. A dispensa devolveu-me esta justa alfinetada de Orson Welles: «Pois bem, devo dizer que me interessa mais o carácter do que a virtude. Podem chamar a isso uma moral nietzschiana, como eu lhe posso chamar aristocrática, por oposição à burguesa. A sentimental moral burguesa causa-me nojo: prefiro a coragem a todas as outras virtudes.»

No mesmo transe, ressuscitei um livro que há vinte anos me prometera Os Olhos de Ezequiel Estão Abertos, de Raymond Abellio. Também ele um homem que preferia o carácter à virtude.

Comecei-o às 16 da tarde e virei-o toda a noite, acabando-o às sete da manhã, depois de duas horas de sono agitado, tomado pela sensação de ter sido bombardeado por pólen de girassol.

O pano de fundo é a Guerra Civil Espanhola e a indagação metafísica do homem face aos seus mistérios. É um livro extraordinário, complexo, que pede uma segunda leitura de lápis em riste, devido ao ping-pong das ideias e ao que se tece nas sombras que as personagens encarnam. Diria, inclusive, que se trata de um romance de sombras chinesas que afloram progressivamente à luz - uma luz apofática, naturalmente.

É até agora, de muito longe, o melhor “romance metafísico” que li, dado que na sua urdidura há uma dosagem perfeita entre a esgrima das ideias e as situações romanescas – basta dizer que daria um magnífico filme, ainda que, como invariavelmente acontece, se perdesse na adaptação muito da sua textura. Mas serve o exemplo para constatar que se lê com gosto e de anzol na boca, devido ao suspense que arma.

O romance é de 1949 – porquê só lê-lo agora, quando o poderia ter lido na sequência dos Caminhos da Liberdade, de Sartre, aos vinte anos? Na verdade, do mesmo modo que, e apesar da ansiedade com que devorei os três tomos, pouco deles retive e quase esqueci a trama e as personagens sartrianas, é-me agora evidente que se tivesse lido este romance mais cedo desperdiçaria a oportunidade (provavelmente largá-lo-ia a meio) porque não tinha ainda a densidade humana necessária para o embate com a filigrana de Abellio (talvez só igualada em Sabato), que exige muitíssimo mais do seu leitor que os romances do autor de A Palavra.

E sobretudo exige o desapego em relação às ilusões maiores do século XX - perspectiva que só a idade traz - e um nível de atenção condensada.

Não há dúvida que os períodos de grande crise relançam os homens numa vertigem de pensamento que os períodos de paz não almejam. Em suma, que romance extraordinário, a que voltarei com lupa e pinça!
Na mesa-de-cabeceira tenho outro romance sobre a Guerra Civil Espanhola, Soldados de Salamina, de Javier Cercas (editado em 2001 e que já adaptado para fita - fracote) mas suspeito, pelo relance que lhe deitei, que embora leitura de agrado, o romance fique aquém do «encontro» que proporciona o de Abellio.