quinta-feira, 29 de setembro de 2011

FORS SUA CUIQUE LOCO EST *

uma foto minha, no lançamento de um livro de umas fábulas macondes que eu recriei para que o meu pai, no altíssimo, veja que apesar de tudo lhe herdei o olhar, que nunca foi supramente idiota

Aconteceu-me um encontro terrível mas simultaneamente exultante. Num restaurante da Baixa de Maputo. Levanto-me para ir aos lavabos e vejo o meu pai, que não via desde os 26 anos. Alguém absolutamente igual, mas em basalto negro. Era do Zimbabué e não nos entendemos porque não falávamos nenhuma língua comum, mas saí da tasca alterado e a pensar na possibilidade de que todos nós podemos ter uma variação noutra raça ou latitude. Parece-me sedutor, e além disso sempre resolvia de forma feliz o destino do meu pai, cuja tragédia contei num dos dois únicos contos (em dezasseis) que tem um fundo de vivido no meu livro “Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo” (Teorema, 2008). Em nome da emoção que vivi hoje, aqui vos deixo:


Aos 46 anos o meu pai deixou de rir. Sulcava sorumbático o corredor da casa, para baixo e para cima: cismava em desentranhar a luz das tripas de um sapo.
Eu acabara de ultrapassar em corrida «a mais bela idade da vida» e martelava nas teclas duma velha Hermes, despachando verbetes para uma enciclopédia popular. Fora o que arranjara depois do curso de cinema e de interiorizar que não tinha estômago para rodagens com mais prepotência e bebedeira que arte, onde as equipas se comportavam alegremente como receptores de material roubado. E à bebedeira tinha-a na estima duma flor dos naufrágios. Na Escola, um dos professores confessara que para fazer cinema «basta ter lata», eu é que não tinha o canivete afiado para o descasque do cigano.
Martelava nas teclas. Estava convertido num especialista em rios, rios de todo os quadrantes, que invariavelmente fazia chegar «já exaustos» à foz, e a um deles – o que me valeu reprimenda da supervisora – fi-lo «soçobrar ao cansaço, atirando-se descompassadamente da foz para o mar num suicídio pleno de fragor.» Entregava os verbetes à sexta-feira de manhã para poder receber um cheque semanal, o que traduzido na minha proverbial indisciplina resultava em 40 horas sem dormir, atado à máquina, numa caudalosa inconsciência, enquanto espreitava aqui e ali as fotocópias de outras enciclopédias e trocava os leitos e a fauna aos rios, pondo o Danúbio a atravessar o Kentucky.
Nesse mês, Outubro, para variar, pedi material que se relacionasse com o «ó»: ósculo, obituário, oração, Orlando... e nessa manhã duma sexta desunhava-me com a fúria de um depenador de avestruzes. Tinha combinado com a namorada uma surtida ao Norte, à boleia, e precisava desesperadamente de dinheiro. As coisas fluíam no ritmo devido e eu procurava decalcar nas teclas a cadência eruptiva de Stravinsky ou da Mahavishnu Orchestra. E às dez da manhã o meu pai irrompeu pelo meu quarto:
Pára...pára...pára de bater à máquina.
Quê, está doido?
Tinha um olhar de pânico:
Pára, as teclas estão a falar de mim.
É, e a mim cantam-me ao ouvido porque já ouço as lecas...
Peço-te para parares, elas estão a falar de mim...
Ele agarrou na máquina para a lançar pela janela e eu fiz o pude para o suster, numa ira crescente. Ele estava magro, seco como o Gregor de Kafka na véspera de finar-se.  Empurrei-o para trás com quanta força tinha e ele embateu com a coluna num bico da mesa. Caiu fulminado por um raio. Sucederam-se cinco minutos de pânico, sem saber o que fazer com ele em tremuras no chão e uma expressão de dor que condensava várias toneladas de xisto.
Peguei-o ao colo e enfiei-o na cama, telefonei para um familiar, peguei no trabalho feito, numa mochila com roupa, e fugi. Ele esteve uma semana semi-paralisado.
Andámos dez dias pelo Minho, à boleia, e numa sebe deixei esquecido o meu casaco de cabedal, a única peça de roupa que alguma vez tive de valor.
Às vezes chorava enquanto fazíamos amor, com a cabeça escondida no pescoço dela, para que ela não visse. Á cabeça só me vinha o olhar implorativo dele e a frase: «as teclas estão a falar de mim!». Estava doido. E eu não me sentia melhor.

Desci do autocarro, fiz uma rápida panorâmica pela praceta e estaquei nele: um velho freak corroído dos ossos aos neurónios pelos ácidos mas que mantinha a agressividade no redil. Até esse dia, esse momento em que o meu olhar  a vinte metros dele estacou na sua figura e segregou na minha mente: “Que raio é que lhe aconteceu? Está  nojento, o cabelo parece uma pasta!”, à medida que avançava displicentemente na direcção da minha porta. Enfiava-me entre dois carros estacionados quando ele aferrou uma manápula de aço ao meu pescoço e me apontou uma pedra da calçada à cabeça, alvejando-me com uma clareza inexplicável: “Quem é que está nojento? Que cabelo é que parece uma pasta de merda, ó cabrão?”.
Divido-me em avaliar se o tempo se distendeu ou condensou – fixei-lhe os dentes esverdeados, raiados de nicotina, que se semelhavam a cascos de bode,  depois em ralenti foquei a pedra, o tamanho, a densidade, o relevo, procurando minimizar os estragos no meu rosto, contraído pela pressão na glote; pelo rabo do olho identifiquei cinco dos meus parceiros de infância impassivelmente recostados à montra da padaria, calcinados por milhares de panfletos consumidos (ou vingavam-se de eu continuar a estudar e eles não, de ter namorada e eles não, de ter dispensado a esquina onde coçavam as horas à espera duma cena; vingavam-se da clemência com que os cumprimentava?), enquanto o medo aflorava no meu rosto e, para além dele, o espanto em tiquetaque nas têmporas.
Repentinamente libertou-me, escavacou a pontapés o farolim de um carro estacionado e lançou a pedra para longe, antes de zarpar num passo hirto.
Refugiei-me no quarto. As mãos tremiam-me. A incredulidade reboava-me na cabeça: ele reproduzira exactamente o que eu tinha pensado.
Aquele tipo enfrentava um mundo em estado nascente, que nele confluía ou defluía por laços invisíveis. Ler as mentes supõe ouvir à capella as oratórias do inferno. Com que radar captava ele o que andava no ar, apesar do decoro do não-dito, e da opacidade do silêncio? É um dom que claramente não se deseja e que gemina com a paranóia.
Não passou um ano sem que me encontrasse inapelavelmente na mesma condição.
Três dias depois de ter feito dezanove anos, numa noite a desoras, um charro fumado em grupo projectou-me numa experiência abissal.
A minha consciência derruiu como um castelo de cartas e fui sorvido pelo vácuo. O meu pavor resistia debilmente àquele engolfamento no ralo.  Incapaz de conexão com o grupo, entrei em colapso: a vacuidade instilara-se no meu âmago e propagava-se do mesmo modo que o branco no branco acende o jarro.
Normalmente a consciência é o motorista de um carro que transporta o sentido de um lugar para outro. Naquele momento, nitidamente, viajava de táxi e o motorista não era eu – pior: o estrito valor residual do sentido coava uma espuma.
Absolutamente dissolvido, as palavras deles começaram a brotar directamente de mim. Num jorro que abolia o eu e o tu, o sujeito e o objecto, e me fazia participar de algo não formulado, oculto e nunca antes denunciado, um elástico ao abrigo da própria imagem. Despejado de identidade, sempre que tentava balbuciar algo as palavras rebentavam como bolhas antes de recortarem um sentido ou de chegarem à boca. Só as palavras deles refrigeravam o meu âmago esburacado. Estava reduzido a um vegetal com o pavor a florir, entre os ossos e uma velatura crivada de vozes.
Era uma época em que saltávamos de intoxicação em intoxicação, ávidos por tocar a chama. O álcool, as drogas, a desmesura desorbitavam a mágica geografia dos sentidos. Aquele estilhaçar de medos e simulacros fazia ressoar um aviso do inconsciente: estava preso nas malhas de um ritmo alheio e precisava de esvaziar para que o meu próprio eco começasse a fluir. Precisava ainda de engolir o dragão.
Aguentava-me como podia: num caco. Segue-se o marasmo à descoberta de que no âmago existe o nada. Lidar com a realidade equiparava-se agora a um trabalho de desminagem, que destroçaria os nervos de Hércules. Não percebemos mais do que aquilo que se filtra e eu andava sem filtro, permeável aos clamores da realidade e aos hieróglifos que a linguagem desatava, sem preparo para um estado de “doença” em que as palavras revivem a origem do seu sentido.
Com a ingente personalidade em esfoliação, manifestava-me em sombra chinesa, ofuscado por coloridos deslizes semânticos. A mais corriqueira das conversas sobre futebol, numa mesa de café, ao meu lado, descolava do seu plano factível e adquiria dois ou três níveis de significação, acabando por ser traduzida numa cifra que reflectia - o verdadeiro objecto da discussão - o meu deficiente estado de crisálida. Os comentários sobre um penalty falhado, por exemplo, na minha lógica “transmental” tornavam-se uma charada que focava a minha incapacidade para a prontidão do ser. Estava no centro do inferno, intérprete de um atávico desajuste das peças num puzzle. Às vezes, em períodos mais lúcidos, sentia-me o ponto dessa comédia cósmica que me aprisionava e me negava os liames.
Era portador de um segredo que não podia contar (temia sobretudo que a namorada me abandonasse se eu lhe contasse a verdade sobre as minhas alucinações verbais). Sofria por não saber ainda que, tal como na natureza, há um tipo de nada que fertiliza. Naquela altura andava em pontas sobre lâminas, em alerta constante, ainda que dissimulasse com relativo êxito diante da namorada, de amigos, da família. Para não pensar, não ouvir, não ser interpelado, fechava-me a ler e calhou ter encontrado num tratado indiano do século XII a recomendação para se voltar a dormir após um sonho mau, sem falar disso a quem quer que fosse, afim de destruir os efeitos nefastos. Foi o que fiz, e além de me entregar com afinco a Morfeu entreguei-me aos sonhos da literatura. Três livros salvaram-me da fossa: Aurélia, de Nerval, Trópico de Capricórnio, de Henry Miller, e Apresentação do Rosto, do Herberto Helder. A este lia-o literalmente, do mesmo modo que a Moisés a visão divina era concedida pela evidência e não por enigmas, sonhos e metáforas. Fora investido da percepção fulgurante e imediata que engendra e desmonta os andaimes da interpretação, sob o impacto duma revelação subitânea. Mas levei mais dez anos a perceber que o medo só desfaz os seus inextricáveis laços quando deixamos de o combater.
Estremeço, neste instante, ao dar-me conta de que o meu pai tinha razão: as teclas falam dele. A sua perturbada percepção tê-lo-ia feito vivenciar uma dobra no tempo, lendo no toc-toc dessa desconchavada Hermes que se derramava em rios e olas, o aveludado metralhar deste teclado ergonómico que o evoca?

Lembro-me: chegava de algures, como sempre, e dispunha-me a tomar um banho, trocar de roupa e pirar-me para alhures, entre os braços da amada e as lerpadas com os amigos. Andava pelos vinte e dois e a minha crise estava mitigada, ainda que a espaços se manifestasse em picos de ansiedade e pânico. Levara seis meses fechado no quarto, lendo, escrevendo, bebendo vinho rasca, e deixando o meu pai apreensivo por uma tão prolongada e desusada permanência em casa. Quando a realidade interior foi revolvida, ainda que se escondam os escombros, aparecem olheiras fundas na auto-estima. Por duas vezes, tentou abordar-me e eu descartei a hipótese de um diálogo, refugiando-me em monossílabos e desculpas de trabalhos por entregar. Ao fim de seis meses lá saí da toca e voltei à boémia – ainda que à cautela, sombreado por um halo de superstição. Ele pareceu aliviado, mas às vezes os seus olhos perscrutavam-me o espírito, inquiridores.
Abri a porta e fui golpeado de imediato pelas correntes de ar que provocavam uma dança de papéis no corredor. A casa distribuía-se em torno dum comprido corredor central, e as suas seis janelas escancaradas enchiam a casa de ventos, revoadas e assobios. Ele estava deitado no meio do corredor. Perguntei, ‘o que é que se passa, está doido?’, e a resposta foi descoroçoadora: ‘Estou a ouvir o que dizem de mim! Estou a ouvir os sinos da Basileia!’.
Estaria a sacrificar-se por minha causa, sabendo que com a sua descida aos infernos eu teria de reagir? Durante anos também eu ouvi os sinos da Basileia.

*“cada lugar tem o seu próprio destino”, Vergílio

terça-feira, 27 de setembro de 2011

NAS CUVETES DE DEUS, O CIRCO




Nas cuvetes do frigorífico de deus
congelam o génio, o santo, o guarda-redes de andebol que lastimei ser, e o director de revistas a que falhei achar o rasto,
congela a prótese de Mário Cesariny de Vasconcelos, tão parecida com a minha, sobretudo quando em poisio sobre o pulso;
congela a compaixão de King Kong, que não passava dum animal de hábitos;
congela o escroto de Martin Amis que lhe caiu putrefacto depois de ter escrito o inane «Experiência»,
congela o lóbulo direito de Herzog, vomitado pela bruxa de Hollywood, e uma taça de vinho das adegas de Coppola, a única gema depois de «Apocalipse Now»;
congela a erudição das nascentes que petrificou em rabujentos e despóticos os filhos de Joaquim;
congela o meu hábito de ceder, de ser uma Maria vai com as outras, enganando-me no bazar das sombras em que me restituo;
congela a icterícia com que muitos que conheço se libertam da alma;
congela a cura contra os moralistas de quem dissinto ao átomo;
nas cuvetes do frigorífico de deus
congelam os fulminantes da minha infância, em companhia dos quais nunca fui feliz; 
congela a arte do meu pai pintor de domingo, as suas representações de penicos pejados de malmequeres e margaridas que ele vendia num gracejo incontido aos burgueses da Aroeira;
congela a gaya ciência, onde profundidade e petulância quase de frase em frase se solapam mutuamente;
congela uma pontada do mistral que me trouxeram de França;
congela a minha ideia de que tudo o que acontece, acontece “apesar”;
congela a bola de golfe que um dia em tróia quase engoli;
congela a saudade das minhas filhas que não soube merecer;
congela a abelha que se enfiou no forro do meu casaco e cujo zumbido excitava as raparigas;
congela, ó Carlos, num paralítico a baía de Maputo, Delagoa Bay, e os seus hipopótamos pretéritos;
congela as pegadas de um flamingo coxo que persegui na foz do Lúrio,
congela o inelutável Mugabe, que com os dedos de barbeiro de Estaline mandou chambocar* uma povoação inteira que votou contra si nas eleições, e a quem o poder africano reverencia;
congelam os comprimidos para cavalo que Passos Coelho dá às criancinhas;
congelam as sobrancelhas de Alberto João Jardim, um espanador para as partes gagas de todas as freiras anãs do mundo;
congelam os milhafres com que os orgulhosos povos bantu reproduzem o racismo que ontem sofreram, iguaizinhos aos seus carrascos;
congela a minha simpatia por Catarina Furtado, em Ana Belmonte, uma das minhas últimas fraquezas;
congela a minha homossexualidade latente, denegada, motivada por afinal só me sobressaltarem pitas** mas não o Pitta, tal caniço;
congela o ascensional, vigoroso, paciente rancor da grandeza;
congelam os desertos nascidos de cada vez que me não foi devolvido um relance de ternura;
congela um círculo de Dante, o sétimo, aquele onde os suicidas se transformam em dragoeiros, por não conseguirem desapertar os atilhos da cobardia;
congelam todas as palavras em que me contradisse com o mais cobiçado desplante;
congela o descaramento dos meus olhos que te reclamam “ama-me ao menos mais esta noite, por favor…”;
na cuvete de deus, por quem já nem os cães juram, garantem os gregos, congela uma pedra tão dura que dela a água não desperta.

  *chambocar – bater com cassetetes nas nádegas
**pita – nome popular que se dá às miúdas
 

LEITORES, PRECISAM-SE - DE PREFERÊNCIA VIVINHOS E BONS

os sonhos de pantagruel

O Sonho de Uma Noite de Verão, de Shakespeare, que hoje dei na aula, contém tudo o que se possa ensinar sobre o que seja uma construção dramática, uma peripécia e o seu volte-face, o valor do conflito como móbil desencadeador duma acção; sobre o que é uma micro-estrutura, e até as diferenças entre géneros e planos narrativos. É um fartar. É uma peça estruturalmente perfeita e até rapidíssima, apesar de (aos olhos da maioria) estar saturada em “gordura literária”, como no essencial as peças em verso.
Acho que foi o Harry Cohn, um dos grandes produtores do período clássico do cinema americano, quem, após se ter rebolado na cadeira durante o visionamento duma adaptação duma peça de Shakespeare, a recriminou, sentenciando: “este filme está cheio de citações!”.
Graças a Deus que O Sonho… está cheia de citações. Mas o que é extraordinário, ao ler-se esta ou outra peça de Shakespeare, é avaliar-se como era inteligente o público que fez de O Sonho duma Noite de Verão, o maior sucesso da carreiro do bardo.
Qual a surpresa, se como disse acima, é estruturalmente enxuta e perfeita? A surpresa reside no facto do ignaro povo e maioritariamente analfabeto do período isabelino aderir ao seu teatro e à sua linguagem (que hoje nos parece tão elaborada) sem a menor reserva, e aprendendo trechos de cor.
Vejamos este espantoso jogo de trocadilhos fonéticos:

«Demétrio
O rapaz que jaz é um ás da morte.
Lisandro
Ás que jaz é incapaz; é um zero à esquerda.
Teseu
Com a ajuda de um médico é capaz de se recuperar e voltar a ser um as-no»

Pensar que o espectador isabelino acolhia entusiasmado o wit, a qualidade deste humor, e reagia na hora, no timing certo, às deixas – o que não acontece com a maioria dos meus alunos – é descoroçoador.   
Há uma história da recepção literária ou dramatúrgica por fazer e seria utilíssima para derrotar certos mitos actuais que encharcam jornalistas, agentes culturais, e editores numa suficiência espasmódica e gelatinosa que os levou a interiorizar a crença de que o gosto médio não está preparado para o complexo e só compreende estruturas básicas e um nível lexical a roçar a decomposição onomatopaica, viciando completamente a literatura e o que nela é considerado aceitável e inteligível.
Hoje o Shakespeare não teria editor – o negócio que os idiotas perdiam – e seria aconselhado a aplainar os textos em nome da eficácia e da funcionalidade. Um homem como John Updike teria dificuldades em arranjar editor se começasse a editar vinte anos depois, pois foi sempre acusado de escrever bem demais.
A propósito de escrever e de “pensar bem demais”, li num blogue – não lembro qual –, que a “causa oficial” (veiculada nalguma revista literária) para uma eventual menor saída que os livros de Virgílio Ferreira teriam hoje junto do grande público estaria associada ao “facto” de que o tempo dos romances de ideias teria passado, tendo o bloguista lembrado com acerto que contra essa generalidade se levantava o êxito dos livros de Gonçalo M. Tavares, que escreve romances de ideias, o que evidentemente destrui a tentação de olhar-se para “o género” como uma moda passageira.
Ou seja, diz-se qualquer tolice para esconder a evidência de que, da mesma forma que nos últimos vinte anos se assistiu a uma puerilidade crescente nas histórias do cinema americano, estão a literatura e os seus responsáveis reféns de mitos redutores que esquecem que a inteligência é um item da expressão, quer da produtiva quer na sua recepção, e que o Gonçalo não deve ser visto como a excepção que confirma a regra.
Hoje há mais leitores que nunca no mundo, embora o seu nível médio seja espantosamente baixo. A aposta das editoras na exclusiva mecânica do enredo e na prioridade das estruturas funcionais, em detrimento da grande liberdade da criação, já levou o Kundera a falar em «testamentos traídos», e o grave é que não se ache grave que a enorme maioria dos milhões de pessoas que hoje consomem Dan Brown não esteja à altura de ler Rabelais, Cervantes, Shakespeare ou Diderot. É desastroso, parece-me, que não se considere lastimável que, cinco séculos depois dos foliões analfabetos que o citavam nas tabernas, se considere Shakespeare como um espectáculo para elites.
Ora, não se tenham dúvidas: é mais grave ler mal do que não ler.
Entretanto, para além das qualidades rítmicas e prosódicas, ou da originalidade da trama, adiantemos uma outra janela para a aferição do quid literário: tal como acontece na poesia, um bom romance, um bom conto, etc., é aquele em que por voltas que demos à frase se constata que não há uma palavra que aí consigamos substituir com vantagem; não há um sinónimo que aí caiba.
O que Northrop Fry articulava assim: «Em todas as estruturas verbais literárias, a orientação definitiva da significação é interna».
Peguemos em Setentrião de João Paulo Borges Coelho, por exemplo, e tente-se substituir uma palavra por sinónimo, uma expressão por outra: o parágrafo inteiro desfazer-se-ia, as palavras aí, mais do que servirem a função, estão engatadas. A língua parece galvanizada pela corrente de um inexaurível fluido que a resgata da opacidade. E não há nada a fazer, onde quer que se coloque o escopro não se acha uma brecha, uma desafinação, superfície oca: a pancada não pode senão ressaltar.  Nestes livros, todas as palavras, como acontece com as notas musicais na Sinfonia Eroica, de Beethoven (di-lo Leonardo Bernstein), são as únicas e necessárias ao desenvolvimento daquela pauta. Uma palavra diferente e o romance seria outro.
Diga-se que o mesmo se verifica em Passos em Volta, de Herberto Hélder, em Nome de Guerra, de Almada Negreiros, em Todo o Nome do Mundo, de José Amaro Dionísio, em Maina Mendes ou Casas Pardas de Maria Velho da Costa, em Ualalapi, de Ungulani Ba Ka Khosa, em Na Tua Face, de Vergílio Ferreira, em Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares, em Ambulância, de Manuel da Silva Ramos, em Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar, entre muitos. Curiosamente, nenhum destes livros é estudado nas escolas, pelo menos em Portugal e Moçambique
Ao invés, a minha filha adolescente, que nas aulas tenta sobreviver ao aprendizado de figuras como a prolepse e a prosopopeia e que numa semana estuda a metonímia e noutra se amanha com a personificação, em vez de ser convidada a participar em vivas discussões acerca do que falam as obras, vê-se coagida pela pressão do mercado, que as escolas não sacodem, a ler livros programados para o formato juvenil.
Em vez de se confrontarem com Melville, Dickens, Mark Twain, Kafka, Paul Auster, os adolescentes são induzidos a ler livros em que infelizmente, por mais engenhosas que sejam as tramas, a linguagem se apresenta desmotivada - i.é, qualquer bom escritor pegaria naquelas “informações” e acharia uma forma mais rápida, eficaz e expressiva de as fazer passar, visto que, como no grosso dos best-sellers, nestas aventuras qualquer palavra se pode substituir por outra.
Não sei como pode ela apanhar o gosto pela literatura em livros onde, em nome da pedagogia, as palavras estão desvalorizadas e são moedas gastas, onde já não se vê a efígie.
Só vejo um meio de minimizar os estragos: é pegar em alguns contos de Jorge Luís Borges, ou de Conrad, e levá-la a fazer cópias; se o caso for grave, induzi-la a copiar O Relatório sobre Cegos, do Sabato.
Eis um exercício de que não se sai indemne e pelo qual se percebe que a literatura é uma experiência vital e não um mero entretenimento para consumidores de informação; e talvez haja a hipótese dos seus efeitos sobrevoarem a alergia para se converterem num amor à literatura.
  

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

aguardo a grande ficção

matta




Chegou-me o manuscrito numa carta tímida, assinado por um nome que desconhecia, Fernando Machado Silva. Queria saber a minha opinião.
Como hoje estou numa de barba & cabelo ocorre-me uma cena extraordinária de O Barbeiro dos Cohen e que se resume nisto: Ed Crane (Billy Bob Thorton) mata o seu laconismo indo ao fim do dia a casa do seu patrão ouvir a filha deste a tocar piano. Um dia lê o anúncio de uma audição para a formação de uma orquestra e decide armar-se em agente e levar a filha do patrão aos testes. São recebidos pelo maestro e a candidata encaminhada para a sala da audiência. Ed fica cá fora, ouvindo as escalas no piano, as frases musicais, as harmonias e cadencias que sempre lhe pareceram tão magnificamente executadas. Ao fim de meia-hora a porta abre-se e o maestro vem acompanhar a rapariga e despedir-se. ‘E simpático mas não diz uma palavra sobre a interpretação dela, e vira-lhes as costas. Ed, ansioso, vai atrás dele, e insiste, “então, mas ela não esteve bem, houve algum erro?”. Responde o maestro: “Erro? Não, ela tocou tudo certinho, onde estava um ré na pauta premiu o ré, onde havia um fá ouviu-se um fá, foi perfeito…”, “e então?”, repetiu Ed; resposta do maestro: “Então, será uma óptima dactilógrafa!”.
‘E esta a sensação que tenho diante de 95% do que se escreve e publica hoje maioritariamente, são belos exercícios de dactilografia, textos virtuosos mas sem carácter, textos que comunicam mas nada exprimem, inanes imitações sem voz. Aqui encontro uma voz.
Claro que a um tímido assim sempre será difícil encontrar uma editora capaz que o projecte e ajude a mostrar a sua diferença. Por mim, esta aposta ‘e segura. Aqui deixo alguns poemas do Fernando:


aguardo a grande ficção


aguardo a grande ficção do mundo
(os rostos envelhecendo
o meu o teu se houver
tal coisa como o amor)
que valerá a luta
o escasso tempo
a morte a mais
(não olhes para trás
vão se aluindo
as casas a história
não haverá recomeço)
meu amor o homem
tamanha tristeza.




a gravilha range


e na garganta um rumor


rebate em soluço
(na passada a infância vai
cingindo-te um nervoso nó
sussurras e os dentes
gravilhando tens
tempo tens tempo)
os cheiros dizem-te uma vida


trocada aos poucos
(e sobe aos lábios
a melopeia de terras
morenas e azinheiras)
fosses pequeno e a mão


na mão materna. agora


és tu levando um filho deixando


solta outra para amparar a sua


chegada de granizo nos olhos


eclipse


é imperativo uma noite para a infância
(escura e selvagem diria
o fundo feminil
de teus olhos)
onde um pirilampo
(anjo de duplo traço a néon)
regressa (da ulissíada
da memória) à morada
e o dedo fluorescendo.

uma noite e a lua num banho
a ouro que sombreia o tranquilo
argênteo mar
(a pele rubra e vibra
quando tua mão
mistura sal e água de
espuma caxemira)
veloz se esconde e aparece
(tu)
onda abrasiva rolando na cama
feita pérola menstruada.


 

de Poemas possíveis do cabo sardão

i
este silêncio do cabo
sardão. ribeira fresca
odor morno de um canavial
mar solto ao fundo
da caminhada o estalar seco
e verde de chorões cobrindo a areia
a terra quente viva de carochas
cigarras. as palavras trocadas
pela minúcia gramatical
dos corpos os nossos o outro
silêncio ao cabo do sexo
dentro de tudo que habitamos
lá fora um eco mais
escuta