terça-feira, 31 de julho de 2012

CRÓNICA DE UM AMOR DESAVINDO ENTRE UM BOER E UMA MACUA, OUVIDA NUM QUIOSQUE DE RUA

                                                                           andré masson

Ele tem - de resto.

A nuvem enlameada passou

e felizmente não deixou rasto.

Ela não tem - de facto.


O white gosta de nesquik
e às vezes a perua do amor
dá o mais triste fado.

O filho de ambos, o pardo


escrevia com gelo na areia
quando veio uma gaivota, mirava

a mãe um sardão amealhado,

obrar-lhe na meia.


Também a madre superior Joana

dos Anjos sobre a mais alta ameia

da fé foi conquistada

pela gana de sete demónios.


Uma verdadeira empreitada

pois cada um tinha o seu estilo

e de nenhum se quis ela alheada.

Disto sabe lá ele, o white!


Mas alardeia, orgulhoso,

sobre a testa já irisada

o transplante da sua amante,

pontas de volume assombroso


- no facebook é uma risada.

Ela prefere à companhia de um cego

qualquer caloteiro e nos seus quentes hornos

coze os pães franceses mais barbinegros,


e um que até é corcunda

quer levá-la ao México, a Tampico,

para a açoitar c’ a funda.

O filho é que não lhe perdoa e virou pico.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

COLÓQUIOS COM A JADE 15

A Jade descobriu que tenho “dentes falsos”. O que espantou muito a desdentada.
Quer que eu mostre à prima.
Eu recuso.
Ela replica:
- Não vais deixar de ser tio dela por ter dentes falsos… é só para ela saber o que conta…
- Saber o que conta, como? – interrogo, intrigado.
- Ela não pode contar às pessoas que o tio tem dentes sem ter, não achas? Se lhe mostrares ela deixa
de mentir…
É loucamente exacta a minha filha.
Tento contornar a coisa:
- Continuas com essa conversa e dou-te uma palmada no rabo por cada ano que tiveres…
- Dás, mas não podes dar mais de cinco, senão fico maluquinha… - responde, pronta.
Retiro-me para rir.
Ouço-a a repisar:

- O meu pai tem dentes falsos, Cathy… mãe, tu sabias?

Gato por lebre.


terça-feira, 24 de julho de 2012

JANTAR COM ESPINOSA E ALGUNS AMIGOS II/ ELIRAZ

                                                                              sean scully

Mais um capítulo do livro Jantar com Espinosa e alguns amigos, de Israel Eliraz, com tradução minha:

III

Alguém toca no quarto do lado



32


Lá ao fundo

paira a música (da qual


não sabemos se ela é

uma mosca do país


ou uma mosca infinita).


A música, para se manifestar

não precisa senão

de si mesmo.


E ondula desabraçada sobre

o continente da mesa


as colinas dos pães, as plantações

de aipo e alface,


o vale do vinho e

o vendaval do mel.


33


mas

a música


que vai e vem

«unicamente com o fogo»


leva-nos a um lugar (a-

colá!) que conheceremos

no momento de lá chegar.


Entretanto, imaginemos uma algibeira

metida para fora


uma talhada de fruta

ébria


uma língua afiada que não passa

de um sistema de ventilação

sem sonho,


etc.


34


dobrada em dois

a música surde

ao fundo do centro desconhecido


como a matéria

inextinguível no fulcro

da lâmpada


e atrai, intenso, um cheiro a açúcar queimado.


Nós velamos a música

cada vez mais

lentamente


ela abre-nos um lugar

de referências:


para saber não tenho necessidade

de saber que sei


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e quero compreendê-la

quando ela se agarra


às coisas que a contém


como se as vozes

fossem as fibras


duma matéria brutal


onde a alma desabrocha

como o vermelho

no amor.


Como se dissolve a arrogância

do vermelho à beira


de tornar-se a coisa verdadeira


(que é eterna, constante,

inalterável)


36


os sons são objectos infinitos

que se multiplicam e te seguram.


Quando dizes: é preciso ver

as coisas de perto


tu afastas-te para o dizer

(até onde?)


até aparecer uma cidade como

uma taça de tachas

de cobre


e Espinosa, que nos assegura:

pode levar-se acudimento

à tristeza


meramente o vermelho ao fim

da pura cadenza

  
37


é uma sede que se agrava

até ao insuportável:


a coisa verdadeira.


Do outro lado da cozinha

urdem-se coisas.


Uma realidade sólida em

linhas selvagens


símil à urgência na substância

da palavra.


A música, mão flébil,

espalha os flocos:


sejam bem-vindos

ao lar do fogo.


À parte,


38


alguém toca na divisão vizinha àquela onde alguém toca


39


por um instante ambos parecem executar em uníssono


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a mesma melodia. Na sua interpretação eu capto a que ponto


41


eles conhecem a forma. Conheço todos os gestos


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de onde eles extraem esta beleza. Um toca um instrumento


43


que eu identifico, e o outro um instrumento que me escapa


44


eis que a música pára, a luz que alumiava a casa apagou-se há muito


45


eles juntam as suas mãos sem estar sentados lado a lado


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quando é que eu disse

à musica


traz recitativos sagrados e toca-

-me com um gesto subtil?


Amar-te-ei como teria podido

amar Deus antes dele

ter criado as coisas.


(Que quer dizer aqui coisas?)


Só será o que ela

pode ser


(um rectângulo vermelho assinala

uma liturgia rural)


um saco de imediato no ar

como desfecho


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o meio do verão fica mesmo

no intervalo de

dois gestos


ou antes de duas poses

numa dança lenta


(Bougaku, talvez).


A ladainha duma canção local.

Litania vaga, um

momento raro.


Naquilo que nós entendemos

passa-se tão pouco


e bloqueia-se na matéria

(guarda-jóias de um enigma)


«a necessidade de capturar»


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apenas esperar perto

do centro


chamamos-lhe inquietude

ou tristeza


«até a luz se apaga

na boca».


Que é o que nos escapa

e nos vira as costas

na música?


Instrumentos, pesados, entorpecidos, onde

se engendram outros instrumentos

simples, necessários


ponho-os ao lado.

Nada está dito.


49


enredar-se em torno duma pausa

como diante dum feixe de água.

Encontrar


«o tempo forçado duma

marcha ritual».


Esperar e escutar

o tempo tornar-se

cozinha


(azul escuro) onde todos os meus

amigos ficam perto de mim,

sobretudo os mortos.


Aqueles que nós amamos (sem

desfalecimento) amam-nos.


O silêncio, uma espécie de saída


segunda-feira, 23 de julho de 2012

ICEBERG II: OS TRISTES TÓPICOS DA EDUCAÇÃO


É sempre pior do que se calculava. É como se alguém quisesse experimentar de tal modo a elasticidade da rede que o iceberg cai pelo buraco da malha. Instaurou-se uma ordem indubitavelmente demencial na relação entre o lucro e o “saber” nas instituições universitárias, pelo menos em Moçambique, que fez de qualquer ensino uma caricatura.
Sou contratado para dar um semestre intensivo, em 24 horas, porque o professor anterior baldou-se. Nas primeiras três aulas não aparece nenhum aluno. Na quarta aula aparecem dois para combinar comigo outro horário, porque afinal ainda não acabaram o semestre em todas as disciplinas e estão com aulas e exames e, justificam-se, não lhes é possível seguir o ritmo diário que me fora pedido (- que ritmo, se ainda não apareceram a nenhuma aula, pergunto eu). Ficamos em duas aulas por semana. Aparecem três, quatro alunos. Numa aula com seis alunos (uma excepção), meto-os a ver uma excerto de Tempos Modernos, do Chaplin, para lhes explicar o que é conflito, e o que seja uma narrativa cinematográfica e como evolui. Quando acendo a luz, três dormem e os outros têm uma expressão de agonia, incrédulos por terem sido obrigado a ver um filme mudo, a preto e branco. Calculo o que teria sido se os tivesse obrigado a ler Homero.
À oitava aula dou teste. Aparecem 12. Metade não entendeu sequer o enunciado. Mas pedem, porque não dá já o professor as fichas e fazemos o segundo teste e acabamos com isto… Acertámos em fazer um trabalho: eles estão lá para o canudo e não para aprender.
À aula a seguir ao teste, ontem, ninguém compareceu. Estão à espera que eu mande o tema do trabalho para o email da turma para me mandarem depois por correio electrónico o dito cujo, escusando de frequentar as aulas até ao seu termo. Entretanto, os testes estão naturalmente uma nódoa; e os trabalhos não melhorarão o quadro.
Nunca estive numa situação em que tão claramente me sinta um verbo de encher numa rota do transatlântico direita ao iceberg. A esperança deles é que a malha da rede esteja tão lassa que a massa de gelo tenha afundado. Eu não creio nessa virtualidade: deve ser de ter estudado.
No fim pagam-me 500 dólares e lavarei as mãos como Pilatos. Estão a tirar o pipo ao país, quanto mais rico mais idiota, mais vazio. Acho que vou voltar a emigrar, desta vez para o Brasil.




CANTEIROS TRESMALHADOS

BOSCH

 
Rascunhos encontrados nas  últimas páginas de livros, canteiros tresmalhados:

O reposteiro desenlaça-se e uma brisa
tépida, rápida, banha-nos os corpos
açoitados pela permissão:
o amor é a carne que ri.


Um gajo que só tem por si a sua juventude, quando se vê em risco de perdê-la fará tudo para que ela pareça perdurar. Mas há que nos prevenirmos também contra a pretensão contrária: a de julgarmos que temos algo que dure mais que a nossa perdida juventude.


- Pai, e se os buracos que estão lá em cima no céu caem em cima de nós?  - e aponta, receosa, o céu estrelado.
- Não caem, sabes porquê? Porque é o teu coração que segura o céu.

O que me agrada nos teus seios é a vidência
com que me atrai aos teus olhos,
o cerco que o plátano faz ao vento.
O que me finca no teu sexo
é o avesso do tempo.

- Basta um babuinha ir assim para dar engarrafamento…
Bela palavra: um babuinha.

O que um corpo é noutro
corpo esquece
pois só no sulco
do desejo tem memória. 

CERVEJARIA ÁGUIA REAL, AO ALTO MAÉ
A empregada deposita a garrafa na mesa e diz, “hei-de vir abrir…”, e volta à sala contígua, onde se dispõe o balcão. Entra um tipo façanhudo, alto, de camisola de alças, o tronco de quem serviria de arquitrave na catedral de Westminster, e vejo-o galgar em dois passos decididos o espaço que a separa dela, ao balcão. E zás, esmurra-a sobre a orelha, um banano que quase a deixa desmaiada. Levanta-se um sururu durante 15 minutos, com dezenas de pessoas a apinharem-se naquela minúscula ágora.
Não há modo de chegar ao balcão para pedir o abre-latas e poder estrear a minha loura geladinha. Lembro-me duma ária de Offenbach em que o refrão é “gluglugluglu…” e quase choro.
O calmeirão de olhos esgrouviados que se senta na mesa ao lado da minha observa a minha aflição e num acto solidário, exclama, “brada…”, e no mesmo acto pega na minha garrafa e descamisa-a com os dentes. A carica rebola no chão, vencida.
Algo me diz que não beba.
Algo me diz que aquele sorriso cariado com herpes labial não admitirá a possibilidade de não me ver dar o primeiro gole. Um longo hausto, que me petrifica o esterno
Ao meu lado uma mulher experimenta sapatos de salto alto, todos os que o vendedor tem na mochila, e depois emparelha-os sobre a mesa, enquanto lá fora uma lufada de vento endemoninha toda a poeira acumulada nos buracos do piso. Pergunta, “quanto queres pelo lote?”. É na avidez dela que me concentro, ao segundo gole forçado.
“Estamos juntos, brada…”, sublinho, aceitando o brinde.



Eis uma coisa que o coração não sente: a lua afasta-se de nós alguns metros por século. Mas que definitivamente explica algumas coisas deste cínico início de século.




domingo, 22 de julho de 2012

FRANCISCO BRONZE: AS MÃOS E OS FRUTOS


Teve lugar este ano em Abril, na Casa da Cerca, em Almada, uma exposição de Francisco Bronze. Nessa ocasião, para o álbum que então saiu, com reproduções de pinturas e poemas escrevi então o prefácio que posto em baixo.
Só agora coloco o texto no blogue porque não havia até aqui arranjado as imagens que queria. Finalmente consegui algumas, chegando o momento de divulgar o trabalho deste imenso pintor que, por felicidade, foi das pessoas mais influentes na minha vida.
Encontra-se uma enorme galeria de trabalhos seus, dos anos 60 aos mais recentes, com centenas de quadros, em franciscobronze.net



à memória da Teresa Lajinha

1

Entre os meus quinze a dezoito anos, em Almada, o Chico era a figura a conhecer ou a rejeitar. Havia um terceiro termo: conhecê-lo para discordar dele. Toda a minha geração - enfim, aqueles que entre nós não haviam escolhido a hipótese de rejeitar, tendo o Chico como figura ilustrativa, qualquer pendor intelectual -, cresceu contra o Chico, a favor dele, ou, tomando-o como referência, adestrando a pose da equidistância.
Creio que, a haver uma pequena história intelectual da cidade de Almada, só houve uma segunda figura que concitou as mesmas raivas e paixões e moveu uma igual influência, o Joaquim Benite, com o Teatro de Almada. Para tudo o resto – a discussão política, os movimentos artísticos, o riso e os afectos - o Chico foi, para várias gerações, uma das âncoras da cidade. Pois discordar do Chico, por exemplo, era ainda ser um satélite na sua orbe.

Algo os separava, o Chico do Benite: o Joaquim queria ter a influência, exercê-la (o teatro exige meios e algum traquejo político), o Chico nunca quis ter influência, foi colocando de lado essa veleidade e rompendo com todo o tipo de dogmatismo.
Eram tempos de paixão, de emoções vividas a preto e branco. Não creio que as pessoas, nessa altura, enfronhadas ainda na enleada arena política que incandesceu o primeiro lustro após o 25 de Abril, estivessem preparadas para a súbita postura do Chico: uma leve ironia matizada de compreensão (o Chico procurou sempre rir mais com os outros que dos outros), uma racionalidade escorada na emoção, uma crença manifesta e vivida na superioridade da consciência individual sobre as deslocações de massas, uma certa atitude holística, um despojamento a roçar o ascetismo, uma abertura para o diálogo que sobretudo conseguisse levar os interlocutores a pensar contra si mesmo, e um labor continuado, tanto o artístico, como - o que na altura parecia suicidário – o de um aurático estado de «isolato».


Quem vai à Brasileiro do Chiado encontra aquele quadro do Nikias Spakinakos que reúne vários críticos em torno de uma mesa: o José-Augusto França, o Rui Mário Gonçalves, o Fernando Pernes, e o Francisco Bronze. E muita gente se interroga, mas quem será aquele tipo da barbicha?
Porque o Chico, depois de ter sido nos anos sessenta, princípios de setenta, um dos críticos mais temidos da praça, fez a seguir uma travessia no silêncio e no anonimato, realçado primeiro pela militância política, e, após a sua renúncia às lides revolucionárias, pela sua entrega à arte como única forma de contacto e de auto-conhecimento, mas numa obstinada disciplina que o afastou durante décadas do circo mediático – aliás, coisa que lhe é insuportável. Daí o seu relativo apagamento, isto é, a sua passagem intervalar, ao mesmo tempo que ia amontoando no seu atelier milhares de quadros, esculturas, colagens...

Eu conheci o Chico com dezassete anos, já então com veleidades de poeta e alguma curiosidade para a arte, e compreendi que o Chico era o amigo a reter. Tive a sorte de ter sido adoptado e de me tornar um frequentador da sua casa e da sua mesa de café. Com ele discutia livros, arte, a poesia, o vinco da beleza em todos os seus contextos, inclusive o feminino, as minhas diatribes e expectativas literárias, os projectos dele, numa partilha constante. E ainda hoje tenho o prazer de, sempre que arribo à cidade, ser a dele a primeira morada que visito.


Dizer o que lhe devo não caberia num prefácio, digamos que retenho, entre milhares, de coisas que ele me passou e me fizeram crescer, três descobertas essenciais: James Joyce, os metafísicos italianos, sobretudo, Carrá, e Cesare Pavese. Mas nada disto teria carburado sem o diálogo, perfurado de confidências e iluminações e isento de indulgências, pois o Chico não faz da amizade uma suspensão da crítica.
E aprendi com ele algumas coisas essenciais:
- a gratuidade da arte, no sentido que lhe deu Steiner: «a dignidade do homem consiste também na inutilidade, no facto de que não é rentável um grande pensamento», o que a torna algo que exige mais do que dá e cuja fidelidade é o verdadeiro ganho;
- a não ter receio do isolamento intelectual;
- a acreditar que a expressão artística tem um nível freático que nos liberta do condicionamento das modas e linhas epocais; sendo muitas vezes a contra-corrente do que a espuma da esfera da comunicação impõe;
- que muitas vezes é na duração que a verdade de uma expressão se revela. Como Rilke disse melhor do que ninguém: «Para escrever um só verso é preciso ter vivido muito, sentido, experimentado, é preciso ficar sentado ao pé dos mortos, etc.»

E talvez esta citação seja a melhor porta para a deriva que se segue. 
2
A pintura do Francisco Bronze tem vindo a ser digitalizada e colocada num site, nos últimos anos. Diga-se, previamente, que o que lá tem sido revelado ultrapassa em muito o que eu esperava e mostra quadros, linhas de trabalho, aspectos estilísticos, técnicas, suportes e pulsões, que desconhecia. O que me fascinou e entristeceu a um tempo, dado que a imagem que se tem do trabalho do Bronze é demasiado redutora face ao exposto e à diversidade que ali se denota. Diversidade que dificilmente será abarcada numa exposição antológica. Era preciso uma exposição só com os desenhos a tinta-da-china ou esferográfica, uma exposição das colagens, outra da escultura, etc. Vejam-se os resultados e processos de Eu vim do pó das Estrelas, Tacto descendente, No atelier, Desproporção Harmoniosa, Cruzes do Gólgota ou Nocturno – parecem pintores diferentes, apesar de, simultaneamente, haver uma extrema unidade na obra de Bronze.
Por isso, abaixo, vou tentar ater-me às imagens deste livro.
O abandono da prática da crítica pelo Bronze, em 1975, e o seu inesperado distanciamento da compulsão para estar à la page, e dialogar ou acomodar a sua expressão ao passo da novidade, acabou por desembocar nesta ironia: o tempo deu-lhe razão.
Quando o Francisco Bronze abandonou a crítica, se não me engano (escrevo este texto a 10 000 km, sem arquivos nem, momentaneamente, net comigo), em Portugal, a Pop Arte fenecia, e os Happenings e a Arte Conceptual começavam a ser falados.

                                                                Quarto Minguante
O Chico isolou-se, fechou-se no seu canto, e desatou a pintar, com disciplina e entusiasmo. O que conta não é o enunciado do vento, é o vento, avisara Bataille.
E o pasmo sucedeu-se: o feroz crítico abandonava as vanguardas e não só fazia fé no cavalete e na pintura – algo absolutamente a ficar fora de voga, naquele tempo – como pintava quadros que, a faltar outra definição, indiciavam o regresso ao “figurativo”, com reminiscências neo-clássicas eivadas de um «irrealismo» visionário”. O que devia parecer profundamente reaccionário aos olhos de então. Outros pecados se somavam:
- uma quantidade “anormal” de auto-retratos (num período em que a influência do estruturalismo ainda era dominante e a hipocrisia do decoro – tudo tinha de ser metáfora, transferência, impersonalidade, ausência de pathos - campeava no pensamento artístico da época),
- o uso da citação e da auto-referência artística: nele, a arte fala da arte: os renascentistas, a pintura espanhola muito El Greco, Goya, Frederich, os metafísicos italianos, mas também Matisse…  
- o que não invalidava a busca de um certo naturalismo dos sentidos, tão presente na corporalidade da representação dos objectos, na tangibilidade das cores, etc.;
- uma certa noção cenográfica da pintura,
- e, pecado complementar, a feição mais abstracta de que o Chico fazia uso nas colagens, nos “antípodas” da sua pintura – num país tão pobrezinho que não consegue conceber duas ideias sobre a mesma pessoa -, o que fazia incorrer no crime do ecletismo.

O que se passava é que o Francisco Bronze se tornara, uma década antes disso se começar a notar e discutir em Portugal, pós-modernista, movimento que recuperaria, precisamente, tudo o que lhe provavelmente lhe seria apontado como defeito. Só que no Bronze esses defeitos e qualidades eram interiores e não habilitação mimética, consoante a conveniência estética. Sem ele mesmo se dar conta, uma dobra no tempo tornara-o um pioneiro.
Este livro reúne quadros e poemas. O Bronze foi sempre um leitor apaixonado de poesia e em olhando as reproduções é nítido o que atraiu os poetas. Há em muitos quadros presentes neste livro uma melancolia, uma tristeza, uma nocturnidade, que se prendem com um pendor metafísico e mistérico, e emprestam a alguma desta pintura um halo poético vizinho de algum simbolismo (- mas tenha-se permanentemente que este é um aspecto do Chico, entre outros). Creio haver, neste particular, uma identidade subterrânea entre a pintura do Bronze e a poesia do Rilke - detecta-se em ambos uma semelhante presença de anjos, frutos, ruínas, a par de uma similar tangibilidade dos crepúsculos, da noite, e mesmo dos aspectos solares que apresentam a luz como uma experiência da matéria: em ambos o diáfano é um realce do real, ou uma janela para outro real.

E radica, às vezes, nesta atracção fatal pela poesia um dos riscos que rondou a sua pintura: vejamos o quadro Cruzes de Gólgota, de que gosto bastante. Neste quadro, como noutros com motivo (Gadanha, por exemplo), há uma tentação alegórica que noutros pintores, a meu ver, desembocou numa esterilização artística. Falo especificamente de Lima de Freitas e Noronha da Costa. Na minha opinião, o que fez o Bronze ultrapassar de forma pujante esse risco foi a compulsão material da sua pintura. Verifica-se nela uma tensão entre o que não é pictórico – o tema, o poético, a procura de imagens cristalizadores de arquétipos/mitos – e o diálogo da cor consigo mesmo, com as texturas e ritmos, que rompe os “esquemas”, a obediência ao que o quadro queira dizer. Acontece-lhe o mesmo que a Carrá: o cromatismo, as formas totalmente imanentes que emergem no quadro sobrepõem-se à razão, ao ditado do título. E assim esquece-se o quadro de decorar o tema e vê-se a pintura devolvida à pintura.
Quarto Minguante, por exemplo, é o exemplo de um quadro que se fez a si mesmo, feliz porque totalmente imanente.
O Bronze é um dos pintores que conheço que com mais felicidade assimilou a famosa formulação do Baudelaire (que tem dado azo a tantos comentários), segunda qual a arte deve ser metade nova e metade eterna. Desiludam-se, entretanto, os farejadores do esoterismo, a meu ver a frase de Baudelaire corresponde àquilo que Deleuze preconizava quando defendia que começamos sempre a meio: isto é, fazemos parte de um fluxo.
Termos consciência disto conecta-nos com o que nos precedeu e o que se nos segue, de que somos o elo vibrátil: o presente do Incondicionado. Realismo quântico.
Portanto, no Bronze a arte enfeixa, enxerta o acontecimento (o inesperado, o novo, o estranho, o que desencadeia o movimento do olhar) na variação face ao fluxo (à tradição) - ou simplesmente ondula. Do que provém a importância da memória como chave para a sua pintura (e a memória pessoal e a da arte fazem corpo no corpo do pintor: o que legitima os auto-retratos) e leva Bronze à prática da citação, que incorpora como matéria elementar, estando esta tão presente como as imagens emocionais em que o pintor recria as células da memória. Evoquemos aqui três quadros presentes neste livro: Miragem (onde se adivinha a figura de Velásquez, ao fundo na porta), Leda e Mona Lisa.
Vejamos agora outro trabalho reproduzido neste livro: As Nuvens. Inscreve-se nele o aspecto cenográfico de que falo atrás: uma simultaneidade de tempos, como se a imagem nos quisesse mostrar, isolando as partes, a sucessão na duração. Em muitos quadros do Bronze, desde os anos 70, o enquadramento é invadido por “janelas” que abrem outros planos no plano, sendo o quadro um palimpsesto cujas margens não coincidem. Atrevo-me a interrogar se a esta abertura de janelas no plano, que às vezes tanto introduzem “outros lugares” como rompem sintaxes, não a encontrou Bronze na observação de El Greco, embora naturalmente a prática e a técnica da colagem também tivessem sido determinantes. Com esta técnica quis o Bronze introduzir o tempo no plano, dado que a pintura não contempla a sucessão temporal, e, no seu efeito desconstrutor, a colagem tende mais a desfazer as fronteiras: entre o real e o sonho, as imagens e a memória, o figurativo e a mancha cromática.

Extraordinário despaisamento que nos restitui de novo à poesia.  
3
Como já referi, o Bronze tem mantido ao longo de toda a sua vida um diálogo com a poesia e sempre se interrogou sobre a elucidação do poético. Para este livro encontrou a cumplicidade de três poetas, Manuel Correia Fernandes, Sónia Grave e Maria Inácia Reis.
Cada um dos poetas escolheu o seu painel de imagens e trabalhou a partir delas. Como escreve Sónia Grave: «Esta tela tem uma voz que se ouve no silêncio» - e estes poemas entregam-se na generalidade com felicidade a essa escuta.
O resultado tem muitas zonas de equilíbrio, embora, como seja normal num livro desta extensão e com três vozes de densidades, estilos e dicções muito diferentes, haja poemas mais conseguidos que outros e, mesmo no espaço de cada poeta, desiguais níveis de encontro da palavra com a imagem.
Porém, se nem sempre se desencadeia o engate, manifesta-se continuamente nestes poemas um labor digno, honesto, bem ilustrado nestes versos luminosos de Sandra Grave:

«Medos certos
Erros correctos»,
que transforma este álbum numa morada apetecível.

Sucede, ademais, que se multiplicam pelo livro os momentos plenos de apuro poético:
«(…)

Torno-me translúcida.
Pura de mim.
Desejo que o cinza da vida,
não se infiltre.
E o meu ponto de luz
me recorde.»
(Sónia Grave, Sou);

«(…)
Cai a paz,
Doce, sedutora,
Acorda a aurora
E em bicos de pés
Vai-se a lua embora
(Manuel Correia Fernandes, Madrugada de Esplendor)

 «(…)
esculpi um rosto
que a chuva desfez
o nome que inventei
gravei-o no pó
posso até dançar nos salões do rei
mas por entre as multidões
caminho só.»
(Maria Inácia Reis, Rosto Precário)
e que são inúmeros os poemas plenamente realizados, o que o leitor descobrirá com prazer.
Os três poetas são, como disse, vozes de distintas dicções, tonalidade, e temperamentos: Sónia Grave evoca-me a Irene Lisboa, Maria Inácia Reis tem um sabor rilkeano, e Manuel Correia Fernandes explora um veio mais tradicional a que não escapa a rima:
«Na doca de meus dedos
Estaleiro de ossos, carne e pele
Meu barco adernado expele
Opróbrio de morrer à beira d´água
De cavername dorido
Porão vazio, cheio de mágoa
Por decreto preterido
(…)», Na doca de meus dedos

 O que interessa ressalvar é a generosidade do projecto e a qualidade do resultado final, que me deixa enciumado por não ter colaborado também nele a outro nível. Talvez outra oportunidade nos junte a todos, seria um diálogo muito produtivo, cheio de pontos de luz:
«Solidifiquei a ponte.
A vida sem pressa»
                            Sónia Grave, Ponte.
«(…)
e surgirá intacto o osso da palavra
lambido pelo fogo
limpo de toda a ganga»
                             Maria Inácia Reis, Poemas Mortos

«Há uma luz misteriosa que me sustenta
Talvez farol procurando o seu lugar»,
                                      Manuel Correia Fernandes, Alucinação.
4
Quando eu conheci o Bronze, eu teria dezassete e ele quarenta. A nossa diferença era manifesta. Agora continuam-nos a separar os mesmos anos mas nos meus cinquenta e três anos descubro-me espantosamente parecido com o pintor no auto-retrato com um travo de auto-paródia (porque destituído dos óculos de massa que fazem parte da identidade Bronze, da sua própria visão artística?) a que o Chico chamou Exausto (- até na falta de cabelo).
Afinal, sei agora porque uma empatia nos tornou amigos: aquele retrato é já o meu - vou enviá-lo para todo o lado como meu. Não lhe digam, é um segredo nosso.