terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

O PASSO VERTICAL:POESIA & FUTEBOL

Márcio Sampaio -
POEMA PARA DARIO – 1972
Dario, “peito-de-aço”, artilheiro, camisa 9 do Clube Atlético Mineiro

Ontem houve derby, e distraído, ia-me esquecendo. Quando liguei o televisor ia a 13 minutos da segunda parte, já um jogador tinha parido pela cabeça, a avaliar pelas ligaduras, e o Benfica manquejava com 10.
Mas foi um consolo, que me decidiu a reabilitar um velho texto sobre poesia e futebol, que está inédito em Portugal. É o que corre em baixo:
Pode-se falhar um poema como se falha um penalty? Claramente. E acontece aos melhores. Veja-se esta quadra do mais secreto dos modernistas brasileiros, Dante Milano:
«Lírio extenuado sob um sonho imenso,
Enlevada no giro
De uma nuvem sonâmbula de incenso,
Sufocado suspiro».
O extraordinário primeiro verso é quase afogado pela pedra que o poeta lhe colocou ao pescoço no terceiro verso, que só serve para rimar, como era comum aos poemas simbolistas. A quadra teria tudo a ganhar se fosse reduzida a dois versos, o primeiro e o último, o resto é a gordura da época.
Imagine-se que o Garrincha, depois de ter fintado duas vezes o guarda-redes atira a bola por cima da trave – seria o equivalente: um excesso de técnica traída pela falta de sentido da oportunidade.
Por vezes interrogo por que terá o futebol adquirido uma excessiva importância nas nossas vidas. Talvez porque é uma «arte presencial» e fidedigna do momento em que o pensamento se faz emoção. Mas já explicaremos isto.
Comecemos por recordar outro poema de Dante Milano, O Beco:
«No beco escuro e nocturno
Vem um gato rente ao muro.
Os passos são de gatuno.
Os olhos são de assassino.

Esgueirando-se, soturno,
Ele me fita no escuro.
Seus passos são de gatuno.
Seus olhos são de assassino.

Afasta-se, taciturno.
Espanta-o o meu vulto obscuro.
Meus passos são de gatuno.
Meus olhos são de assassino.»
Esta dinâmica interpessoal entre o homem e o gato, assemelha-se à que se delineia no futebol: um jogo é como um bailado onde nós vemos uma comum experiência transformar os homens e fazê-los reagir. Não há no terreno de jogo forma de delegar aquilo que se vive, ou modo de sublimar o sentimento de perda ou de derrota que não seja superação ou morte «em directo». Aquele que era vítima passa a verdugo e vice-versa, o gato, tão altaneiro na mira de ratos, encontra pela frente um gatuno que lhe rouba “as peneiras”, também o jogo participa desta oscilação da experiência de quem lida com os próprios medos e as fintas alheios.    
Mas quem era afinal Dante Milano, o autor do poema? Nasceu este carioca de gema em 1899, numa família de músicos. Foi um companheiro de estrada de Manuel Bandeira, Villa-Lobos, Portinari, Pedro Nava e outros e apesar de só ter publicado tardiamente, Poesias, em 1948, Manuel Bandeira não hesitou em declarar que era uma das cinco figuras principais do modernismo brasileiro.
Escrevia muito mas para a gaveta e era extremamente selectivo. Transcrevamos alguns versos seus:
«A luz do mundo é como a de um farol
Na névoa. E a vida assim é coisa vaga.»;
«Sou como quem, depois de um bombardeio,
se levanta no meio dos escombros
E sente a dor das pedras rebentadas,
Mais altas que o grito das criaturas»;
«Oh, este pensamento
Não vem de mim, vem do alto.
Tive de pensá-lo porque se fez presente
Como o abismo ao suicida»;
«Eu vi o que a luz expele e a sombra engole»;
«Tirando a mulher, o resto é paisagem»;
e acabo com uma metáfora estupenda, que corresponde a um mortífero passe vertical no futebol:
«A alma é uma espada que atravessa o corpo e vence a batalha!». 
Um dia chamou o seu amigo Martins Napoleão, como ele poeta e implacável autocrítico, e pôs-lhe na mão uma selecção de cem poemas, dentre o milhar de coisas que teria escrito em 25 anos de vida. Mas ao ouvir que não eram melhores do que aquilo que anteriormente publicara rasgou-os sem uma hesitação. Sobraram trinta.
Este sacrifício transfere o rigor do seu carácter para a ordem performática e talvez resida aqui a superioridade do modernismo sobre o pós-modernismo: o Modernismo, mais que uma escola literária ou artística foi um momento de consciência e de comunhão com a vida da cidade. Ninguém se baldava a actuar.
Nenhum grande escritor modernista se furtou à ilusão de contribuir para «mudar a vida e a sociedade», na esteira de Marx, Rimbaud, Nietzsche, e ao esforço de crescer consentâneo como pessoa no rebordo da exigência que tal implicava. Por isso foi fácil embarcar na ilusão de dizer – e chegou a ser refrão -, “a arte é toda de esquerda”, mesmo a dos direitistas equivocados como Ezra Pound.
De Courbet a Rimbaud, de Picasso a James Joyce, de Vàrese a Hemingway, os ícones do modernismo, por um lado rompiam com o que estava para trás na arte e nos valores, por outro comprometiam-se com a vida da cidade; além da visão “missionária” do trabalho artístico, arte e quotidiano confluíam neles.
Eram seres de uma percepção em delta, superlativos na forma como encarnavam a linguagem e esta, quando não os tornou suicidas, articulou neles um outro entendimento do humano, próximo da sageza e do despojamento – mesmo quando não permeada por qualquer tipo de sossego.
Depois deles, com suaves excepções – o polaco Czeslaw Milosz, o mexicano Octávio Paz, o luso-moçambicano João Pedro Grabato Dias, o brasileiro Ferreira Gullar (que se bateu sempre pelas suas convicções e não teme ser controverso), por exemplo – é quase tudo arte de literatos: «words, words, words», como escarnecia Hamlet dos seus próprios pensamentos.
Poucos são os escritores que hoje se entranham no que fazem, mais do que aquilo que lhes for socialmente requerido. Implanta-se um abismo entre o que a maior parte dos escritores escreve e as suas vidas, a sua piquena dimensão humana. Vida e obra divergem: o que em Pessoa é intrínseco, a heteronomia, voltou como pose, convencimento ou farsa lúdica. Já ninguém aspira a mudar a vida ou a sociedade, o mercado é o grande mediador, e, pior, o poeta mais lírico já não teme mostrar-se um escroque como pessoa (-não estou a diser que todos os poetas líricos são escroques, ó iluminárias!) , pois um escritor - alienado de intervir na cidade - é doravante apenas um homem que assumiu o “seu direito de mentir”.
Por isso triunfa o futebol: no campo os jogadores não podem estar divididos, o espectáculo não vinga se eles não estiverem inteiros, a  mostrarem a sua melhor face. Quanto mais indivisíveis, mais presentes e contagiantes, e nesta intensidade se transcendem e a equipa com eles. E quando tal acontece, a equipa e os espectadores conhecem a comunhão, como o homem que ama a sua cidade e descobre num relance colectivo que ainda nela se cultivam os valores da reciprocidade.       

1 comentário:

  1. Dante Milano dos meu afectos, tão poucos falam dele, aqui ninguém, e poucos no Brasil. É um gosto vir aqui.

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