quarta-feira, 30 de abril de 2014

DE LOBO PARA LOBO

                                                            foto de Luís Cardoso

Ocorreu ontem o lançamento de dois livros meus, com apresentação do texto do Luís Carlos Patraquim. Mas como ainda não tenho o belíssimo texto com que o Patraquim me honrou, aqui vou deixando o meu e o poema que a seguir foi lido:


Às vezes perguntam-me porque escrevo e costumo dizer que o faço porque em minha casa havia muitos lápis. A minha tia surda, que connosco morava, e me levava à missa, introduzindo-me logo ali nos mistérios de distribuição da fé, trabalhava na minha meninice no armazém de uma grande papelaria e de vez em quando, com a inocência de quem não ouve as censuras alheias, fazia uns desvios supimpas de uns lápis e de uns cadernos para o seu Toninho, que era eu.
Era muito difícil falar com ela porque além de surda ela como diria o Mia encompridava as poucas palavras que articulava, pelo que o seu carinho manifestava-se em abraços calosos e em plumbaginas (- um extraordinário sinónimo para lápis). Centenas. Todas por afiar.
Um dia, achando-me finalmente apto para fazer-lhe a pergunta que me assaltava as meninges, fui às três gavetas da escrivaninha que se abarrotavam de grafitas, tirei um e perguntei: para que serve isto? E a minha tia, sem uma palavra de permeio, sacou de um canivete que tinha na mala e descascou-me ali o lápis, isto é afiou-o.
Soube depois que a minha tia também fazia colecção de canivetes, o que me empurraria para outras derivas, que não vêm agora ao caso. Para o que interessa, a minha tia foi buscar um caderno a uma outra gaveta da escrivaninha, e rabiscou numa página um peixe que depois apagaria para desenhar um burro, cujas linhas dorsais  apagaria também, parcialmente, para desenhar nesses intervalos duas bossas, transformando o burro naquilo que ela mesmo designou: um ca-ca-meeelo, pois, como já disse, ela encompridava as palavras.
Esta capacidade de com um lápis e uma borracha transformar uma figura noutra ou encandear as palavras umas nas noutras, como pescadinhas de rabo na boca, encantou-me. E por isso dispus-me a aprender a ler um bocadinho mais cedo que as outras crianças para ver como na página podia transformar a palavra mar em amêndoa amarga. Sem saber tinha descoberto que as palavras são como as matrioskas, uma boneca contendo outra, e inaugurei o método de escavar na linguagem.
Esta faculdade que os lápis tinham de poder escrever outra coisa na mesma linha que acabara de ser apagada estendi-a às paredes onde passei a renomear as coisas. Numa parede cega escrevia janela, ou sobre a tinta azul bebé do meu quarto taxei amarelo, e passei a chamar borboleta preta ao choco que me obriagvam a comer, até o meu pai me dar um grande carolo e ordenar, pára lá com esses jogos parvos.
Os jogos parvos passaram à clandestinidade e descobri então que as palavras
despertavam acções, como os beijos das raparigas, ou até promessas nupciais, desde que eu adornasse as frases com brilhos espampanantes. Foi a minha primeira noção de estilo e este foi um período de muitas promessas e um período muito feliz.
De tal modo, que me fui inteirando que, para além do seu efeito prático, me interessavam tanto as palavras como as saias das raparigas, tendo intuitivamente deduzido aí que o meu futuro me destinava a ser um intelectual, visto que outros ânimos me entusiasmavam tanto ou mais do que o sexo.
Mais tarde descobri que as palavras, e dado que sou ateu, me proporcionavam um território de extrema liberdade mas sulcado por uma espécie de saudade de Deus, que é uma forma de rastrear através da diferença e do múltiplo uma relação espiritual que nos funde.  Porque não devemos limitar-nos a ser só seres históricos e seres materiais mas devemos sondar algo da natureza da luz, território onde acontece essa troca de olhares que nos liga ao mundo e aos outros e faz de nós seres de fidelidades. A esta rede de olhares que nos sustenta e religa chamou o filósofo Merleau-Ponty «a carne do mundo», território onde me sinto em casa.
Eis porque me considero um toxicodepente da palavra.
Fiquei pior quando percebi que o grego Heráclito sustentava que "à alma pertence uma expressão que acresce a si mesma".
Que raio queria dizer o magano, interrogava-me. Bebi muitos cafés e alguns suplementos a matutar no grego. Achei a resposta já trintão no Oriente, na Índia, pois lá ensina-se que o espaço mental de cada um é elástico, é como um balão que se enche e cresce consoante o nosso fôlego. E que pode mirrar, se o nosso sentido de responsabilidade sobre os meios que arquitectam o nosso espaço mental, a palavra e o silêncio, forem nulos.
Ou seja, compreendi nessa viagem que a alma é como a caixa preta dos aviões um lugar que pode estar extremamente vago ou cheinho de vozes e de partilhas, uma memória que pode anular-se ou pode dilatar-se e que afinal a tal expressão da alma que acresce a si mesma traduz-se numa fórmula simples: a alma não é uma coisa que se tenha mas que se ganha.
Antes de se ganhar é apenas um vestígio, uma possibilidade – daí que as igrejas se preocupem tanto com o baptismo.
Exultava com esta minha descoberta quando a vi ilustrada num romance da Agustina Bessa Luís, O Bicho da Terra.
Fiquei furioso porque ela me tinha subtraído os direitos de autor, mas senti-me em convergência e em companhia. E aí deixei de querer ser original à força.
Desde que quis deixar de ser original à força sou vítima duma espécie de rio subterrâneo que me faz escrever o dobro.
É de tal forma que ando já à cata de algumas ideias originais que estanquem este derrame. Porque quando tenho ideias originais só leio e estudo, não escrevo uma linha. Sento-me e sou gratamente aturdido, como a galinha que vê a manhã nascer e deixa para o estulto do galo o canto.
Enquanto as ideias originais não me chegam aí vos deixo dois livros. Um livro de poesia, em sonetos, imagine-se, é certo que nem todos engravatados, mas que não pretendem ter quinze linhas.
Porquê Bagagem não Reclamada? É simples, como dizia o Octavio Paz, a poesia é o fruto da colaboração ou do choque entre a metade obscura e a metade lúcida do homem, e uma parte substancial destes poemas eu não os programei escrever, eles impuseram-se ou desceram sobre mim como uma dádiva. Eu não os reclamei, portanto.
Para se perceber o processo vou falar-vos do último poema que fiz um poema de amor.
Eram seis da manhã e passava os olhos por uma antologia de poemas portugueses do século XX sobre o Oriente, que tinha recebido de Portugal. E aí redescobri o bulbul, uma ave canora da Índia, cujo nome tem ressonâncias fonéticas fantásticas. No mesmo exactíssimo momento ouço que no terraço é despejado um balde de água. A junção do bulbul com o barulho do balde despejou-me de imediato este poema de amor:


E NA AMURADA CANTA O BULBUL

Alguém despeja um balde de água no terraço.
Quem, cansado do sol, pode querer  
manhã dentro os pés frescos como juncos?
Abnegadamente teu, hesito – para quê
arejá-los, se me esbraseia o resto
do corpo ao teu contacto? Quem
acrescenta assim a amenidade de um jorro
ao orvalho que a alba ainda escolta?
Eu encosto os meus pés aos dela -
valoriza sim, o meu amor, o pequeno
istmo que faltava carbonizar
no seu fogo. Um balde despeja um coração
abúlico no chão frio do terraço,
e na amurada canta o bulbul.

Os Elevadores… é um livro de pequenos ensaios que afloram a literatura mas é sobretudo um livro de admirações, sobre alguma poesia alheia. E onde há bastante poesia moçambicana mas sempre num diálogo, num reenvio, à poesia do mundo, posta a condição que descobri: somos em arquipélago e a identidade isolada é quase sempre o trampolim para os maiores disparates.
Mesmo que seja atractiva eu sei, e eu a busque apaixonadamente para finalmente deixar de escrever, sentado sobre a tremenda originalidade do meu silêncio. Desejem-me sorte.



Lido o texto a actriz Josefina Massango declamou o seguinte poema inédito:


DE LOBO PARA LOBO

Há dois lobos que lutam
no coração de todos os homens.
                   Um deles é o amor.

Olho a tua nudez (a mão
precipita o musgo
onde a fonte parecia
                           áfona)
e pergunto-me:
que terei eu feito
para merecer esta feliz morada
                   do esquecimento?

O coração tem dois lobos
que se disputam.
Um deles é o amor.

               Anda,
devolve-me ao sangue
que todos vertemos,
restitui-me ao cunho
das palavras em desuso,
                como desejo
ou néon.
Se quiseres quebrar
o velório,
eu alinho.

Saudades de amoras.

Saudades de ler Cortázar na cama,
a dois, sublinhando
           “dói negar uma colher,
negar uma porta,
negar tudo o que o hábito seduz
            com suavidade satisfatória,
e não há nada de mal em que as coisas
nos não vejam mudar”.

Dói a saudade de surpreender
      na tua mão
      o espesso corrimento
                  e de que um dente
bata no meu
                  - praguejando
contra as línguas mortas.

Tudo o mais é a poça
           onde estrelas se inquinam
coalhadas pelos hábitos
      que engessam
                          nos sonhos
barcas e barcas de mortos.

Porém amanhece,
tudo tem a precisão do que amanhece,

a sombra é agora o lobo
necessário, aquele que no seu coração
entrelaçará
     o teu passo,
                 a claudicação
                           do teu salto
no piso arrombado da cidade
       sob o suculento fogo das acácias,

enquanto
nos teus olhos se deslaçará o passado,
              vagas só as do mar.

Não há aqui sentimentos à deriva –

assim que sorris
       sei que a tua função
                 é tornar-me imortal,
dessa imortalidade que se mede a pulso
                            nas torneiras
e se auto-intitula:
“A que mantém a água na boca!”

Sem tréguas, quem dança?
                 Talvez os cubanos.
E os homens de ocupação rara,
como os toureiros.

E o sol que quando pranteia
              faz vicejar o pólen.

              E as tuas ancas
no jogo do arame
quando a noite nos perde finalmente
para lá do último candeeiro
e a si mesmo se perde
na escarpa do amor

enquanto dois lobos
             se lambem, convalescentes.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

TEOREMAS POÉTICOS

matta
 
 Vários Teoremas Poéticos de Basarab Nicolescu, físico quântico e “apóstolo” do Terceiro Secretamente Incluído. As traduções são minhas.
 
Estou de acordo com Raymond Ledruc: não pode despertar qualquer sentido sem o encontro prévio entre uma presença e uma ausência. É a relação contraditória presença-ausência que engendra o sentido. Sem a presença interior não pode despontar o sentido. A experiência interior revela a presença da ausência.
 
Os poetas são os físicos do sentido. Eles tomam as palavras por instrumento de investigação do que ocorre para lá para das palavras – natureza universal de qual o universo físico não passa de uma das facetas.
 
Uma das significações possíveis da alquimia: transformar a estrutura binária do contrasenso numa estrutura ternária do sentido.
 
A transdisciplinariedade é uma tentativa para reencontrar um equilíbrio entre o saber e o ser.
 
No culminar da especialização: a incompetência. As diferentes disciplinas não são portas para o desconhecido, mas antes territórios ciosamente guardados. O viajante do desconhecido deve devotar-se ao estreito caminho que não pertence a nenhum desses territórios. Sob a ameaça dos guardiões de todos esses territórios. 
 
O imaginário quântico é a circulação energética entre dois ou mais níveis de Realidade cerzidos pela descontinuidade. A inspiração poética é a percepção da respiração solidária entre diferentes níveis da realidade.
 
A matéria poética é a energia da unidade cósmica. Assim, a mais humilde poesia tem uma dimensão cósmica. Como o grão de areia, que contém o universo todo inteiro.
 
Tudo na vida é relação de forças. Salvo a poesia, que é a força das proporções.
 
Uma palavra não é feita para ser dita, mas para ser pensada, sentida e olhada. Como quem diz, uma palavra dita é uma palavra maldita.
 
A estupidez está para lá do bem e do mal: ela procura fazer-nos crer na existência de um só nível da Realidade. Há uma grande diferença entre a estupidez e a inteligência: a estupidez é terrestre enquanto a inteligência é universal.
 
A confusão entre o mal e a estupidez é perniciosa: o mal não é senão uma das múltiplas faces da estupidez.
 
A Natureza é um pré-texto. E a livro da Natureza não se lê, sobretudo escreve-se.
 
O amor é uma ressonância energética. É por isso que há tantos amores como qualidades xde energia.
 
Os três infinitos – o infinitamente grande, o infinitamente pequenio e o infinitamente consciente - definem o sistema de referência da Natureza.
 
Pela sua própria natureza, o mental não pode compreender a linguagem do terceiro secretamente incluído. É por isso que ele oproclama a sua inexistência.
 
A lógica do terceiro excluído está adaptada à descrição de um só nível da Realidade. Ela é então necessária e útil: ela faz-nos sobreviver. Mas ao mesmo tempo impede-nos de viver.
 
O vazio é pleno, o pleno é vazio. Entre os dois – o nosso olhar.