Orson Welles: o bruto estava-se nas tintas para os Óscares. Como é possível?
Da mesma forma que passei ao lado duma carreira de crítico de cinema, embora tivesse exercido o ofício durante vinte anos, dezasseis no melhor jornal de Lisboa, o semanário Expresso, onde pontuava os filmes com estrelinhas e botava faladura (- para muitos incompreensível, pois claro!), nunca compreendi a excitação entre os meus colegas encartados com a cerimónia dos Óscares. Com as suaves excepções que honram as regras, o que pode a grande indústria oferecer-nos senão o esplendor da sua afirmação e, portanto, marcas de reconhecimento? Perde-se semanas em pleonasmo puro, quer nas redacções dos jornais ou televisões, quer na mente dos que anualmente, texto a texto, repetem os mesmos argumentos gizados há décadas. Se se quiser conhecer a preguiça dum jornalista cultural basta encarregá-lo de cobrir os Óscares. Vejo na televisão o meu amigo João Lopes (um homem inteligentíssimo e com um olhar particular sobre o cinema) e verifico que nem ele pode escapar ao formato imposto: pede-se que se chova no molhado, e considera-se isso um espectáculo. É um enigma. Nunca participei destes festins na televisão. Na verdade fui a uma vez a um programa da Clara Ferreira Alves, por causa de um livro de ficção que havia lançado, As Cinzas de Maria Callas, e o meu organismo portou-se tão vergonhosamente que fiquei banido de qualquer convite por décadas. Descanse a rapaziada, não me masturbei em directo, ou tirei burriés do nariz. Simplesmente, era a primeira vez que estava em directo num programa de televisão durante 50 minutos (ainda que acompanhado iriam recair 15 minutos sobre mim), e a minha mente bolsou num alarme: está um milhão de pessoas a ver-te neste instante. O que fez o meu corpo portar-se como o da Madre Calcutá quando possuída por mafarrico: com o pânico gravado no olhar e no meu raciocínio, bloqueado, afásico, brutalmente em círculo, desatei a transpirar o Ganges. Eu metamorfoseei-me na fonte do Ganges em directo. Não é preciso consultar o mapa para saber onde fica a dita, é na minha testa. No dia seguinte fui com a minha mulher ao Pingo-doce e tive a alegria de ver repetida em 200 ecrãs alinhados na secção de electrodomésticos a minha figura de ribeiro desenfiado em barroso delta, o que mereceu, ali mesmo, ao meu lado, o comentário duma criança de quatro anos que apontou o meu olhar de pânico na televisão e o caudal concomitante, e resumiu: “aquele senhor é um cocó!”. Nunca mais o cocó foi convidado para ir à televisão, fosse qual fosse o pretexto e a sua competência: definitivamente carimbado como excelso cocó. Curiosamente, foi no Brasil, onde fui lançar uma revista literária onde colaboravam vários escritores de S. Paulo e Belém do Pará, que aprendi a apresentar-me compostinho na televisão e escorreito como Pã que vê a ninfa cabriolar à sua frente. Foi só o camaramen ter tido a simpatia de me sussurrar: “olha que atrás da câmara, só estou eu”, e uma pergunta idiota da pivot, mais concentrada no penteado, sobre se o Manoel de Oliveira não seria um teenager divorciado, para me descontrair, soltar, e ter até pegado na conversa e nos seus ritmos. Nunca mais soltei o Ganges que há em mim ou tive medo da câmara – mas a minha carreira de showman televisivo estava perdida. Ó Gugu, perdeste um concorrente à altura! Se um dia tiver que ter um epitáfio – porque enfim, embora ainda me veja detentor de uma insofismável imortalidade, e não vislumbre a mínima necessidade disso, enfim, quem sabe se um dia não renuncio e começo a declinar, tudo voluntariamente, esclareça-se -, se um dia for mesmo preciso, então poderá ser: “Era tão humilde que os jovens telespectadores do seu tempo quando o viam julgavam ter encontrado o Ganges e os seus esgotos!” |
Para mim, que vi esse programa, achei-te mais bonito que a Clara Ferreira Alves. Mesmo suado...
ResponderEliminarFalou tudo sobre o Oscar
ResponderEliminarÉs muito mais limpinho e simpático que o Ganges, compara-te antes ao amazonas, que é largo mas compostinho.
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