sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

NÃO SE EMENDA, A CHUVA III

Há três semanas que dois exemplares do meu livro «Não se emenda, a chuva», saído quentinho da tipografia, me foram enviados por Vergílio Alberto Vieira e que não lhes ponho a vista em cima.
Debilidades tropicais. Nem sei se já foi distribuído em Portugal – suponho que sim. Viver à distância obriga-nos à paciência. Mas só com ela se decifram os hieróglifos na casca das tartarugas, diria um orientalista. Merda para os contemplativos. Queria senti-los, cheirá-los, sopesá-los, irritar-me com as gralhas, embebedar-me com as letras – já. Ainda por cima o desenho do José Mouga, a sua variante sobre a Rapariga do Brinco do Vermeer, caiu como ginjas, servindo como uma luva à melancolia do livro. Faço finalmente (?) um livro eivado de melancolia (ainda que surrada) e não o vejo? Terá sido desviado para o Zimbabué, ou aparecerá à venda nas bancas de livros de rua de Maputo? Enquanto me desidrato em ansiedade, sinto-me como os sapatos de Man Ray, e só por desabafo descarrego em baixo qualquer coisinha:

VARIAÇÕES EM BACON
para o José Luís Tavares e José Forjaz
1
A carne escorrega dos pés para a cabeça. É um movimento que contraria a gravidade e por raros entrevisto.
Assim que o peso da carne aflui inteiro à cabeça contrai o olhar em milhentas rugas.
Então, na mente, uma figura com o palor das sombras de Turner, vivifica o que foi, o que o tempo não curou e inverteu, para sempre, no bojo da inocência.

2
No estudo para um retrato de Van Gogh a sombra da figura está truncada, carcomida a meio por uma fome branca.
É um fruto do acaso mas que realça o que dá pertinácia à pintura: um instinto com pernas desamarra de si o torso das forças racionais.
O que o pintor de corvos não desdenharia.


3
Pintar um grito humano que desactive os direitos
conexos da carne e imponha à manhã
o silêncio que lhe perfura os olhos.
Uma boca de onde surda
a proa de um navio.


4
Como atingir um máximo de semelhança, da maneira mais inconsciente?
Atravesso o Tamisa sob o estardalhaço de uma prova de motonáutica e o espírito repõe-me o silêncio que infligiu a Florença um golaço do George Best.


5
Jura Sylvester que enquanto posava para o retrato eu examinava fotografias
de animais selvagens.
Tigres, suponho, a incendiar o bambu.


6
Poças de carne sobre um fundo em acrílico.
Tem sentido falar de um nu em Cézanne?
Vidas esmaecidas em pinceladas bruscas, a cuja transparência luzem ossos.


7
Chega de fora-de-campo, como o falcão desfechado pela opalescente nuvem
sobre a codorniz, ou estava de antemão numa pincelada
que fez cintilar o medo no olho da ave?
Formas fugazes sobre a tela, interceptadas por outras que se impõem,
poderosas como pensamentos carnívoros.
Só no México são os feijões saltitantes.


8
Ah, a sorte de ter um pai treinador de cavalos, ébrio pelas capitais do mundo,
a urinar de esguelha os miosótis, escondida a face,
músculo e lente afinados pelo amarelecido desaire.
O meu pai, Francis, um “retratista de danos”, ensandeceu
a fixar no vento os matizes da transparência, o nó que lhe esborratou o coração.
E legou-me o que intuiu de véspera: a improbabilidade de armistício
nas naturezas mortas.
Treinará agora com o teu os centauros do empíreo!

Ah, um morto é uma escultura que devora o buxo, não há escapatória,
sou sincero, não há como fugir a um pedaço de carne cravado na erva.
Como expor, sem retorcer a imagem, os níveis da emoção de Inocêncio X?
Que coisas pode o modelo trazer de volta, iludida a agressão do tempo?
Aquele que sonda através dos reflexos tem de porfiar no olhar,
aquele que escuta atrás da palavra tem de visar a atenção do açude,
a que peremptória mima o gafanhoto quando rumina as hastes e os
brotos da melancolia, pois, barqueiros aziagos,
matamos sempre aquilo que amamos.



de SETE FACETAS DO TEMPO
ENTRE OS CORSÁRIOS DA MACANETA*

4
A ideia de que o tempo pudesse ser massa folha-
da: uma ideia de garoto,
competia ainda o mil-folhas de domingo com o
reclamo do primeiro beijo,
sonho fatídico, onde me transmuto ainda.
Não se retalia. Pode-se até esquecê-lo, empres-
tar-lhe a sinusite,
deixá-lo a debulhar lágrimas com a fotografia, à
beira da catástrofe
onde um morto lacera, de olhos verdes.
Mas, incessante, sinuoso como o pulmão que sin-
croniza um bando de flamingos, hás-de voltar a ele como
ao pobre nome que percutes
contra os dentes, ansiando por tertúlia.
Não se retalia, ao tempo não se retalia. Pois quem
vive de travões emprestados? Como eu,
nessa noite especial, ondulante,
em que forcei a insónia para ouvir pela rádio o último
round entre Ali e Frazier
– dois lençóis friáticos treinados para ficarem
num fiapo muito antes de lhes chegar traça –
eu, um miúdo ainda de todo alheio
aos knock- outs de Cortázar, à malsã
auto-piedade do Sísifo de Camus, às laranjas azuis
de Éluard, criança ainda de todo inepta
para deduzir que contra os relógios só o alho-porro
e, sobretudo, não picar com a mesma faca amor e ciúme.
E disposto a confiar nele como na vitalidade do
nariz que pinga,
e a incutir: você é quem sabe, você faz o preço!
E o tempo, sorna, de sorriso a tiracolo, a descar-
nar-me as gengivas,
a enrodilhar-me nas suas veias de lobo
( - a sua pata de papelão não perdia de vista
o meu mealheiro sobre o frigorífico), (atenção, há um corte no texto)
enquanto Ali - grafitos indeléveis no céu
de Órion - ginga ao canto, furtando-se
ao amasso de Frazier, e resiste,
uma e outra vez, dando enlace e realce
ao delicado equilíbrio das estrelas ascendentes.


6
Mais meia-hora da carga valente que caiu e podia
apresentar às miúdas o general Custer.
A Luna dançou à chuva, a Jade adormeceu no ful-
cro da tempestade.
Eu, dado o adiantado da água temi que o dragão
sem freio do tempo nos mergulhasse,
a mim e à T’resa, nas comportas do amor para
nos cuspir depois nas suas margens
já sem o escalpe da memória.
O Capão, depois de examinar no tecto a qualidade
da construção – nem uma gota digna de um dedal –,
mais tranquilo, explica à Isa as manobras do seu exercício
de Sudoku.
Encho a fornilho do cachimbo com o tabaco que
me trouxe Sitting Bull, de tudo aliviado.

*A Macaneta é uma praia a 40 km de Maputo

1 comentário:

  1. Que grande, mas que grande porcaria de (pseudo)poemas. E diz-se você, poeta!
    Oh homem, vá mas é catar macacos, que lhe fica melhor.

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