terça-feira, 30 de setembro de 2014

CABRIOLICES DAS CATATUAS


Um conto que não se destina a qualquer livro, um mero exercício para a mão, motivado pela história verdadeira duma anónima, uma mulher que não conheço, mas me foi contada num café:

VASCULHAM OS BOLSOS DE FIO A PAVIO, À CATA de uma moeda perdida ou de nota dobrada, depois contam pela segunda vez o dinheiro que conseguiram juntar. Dá à justa para a dormida. Pensão Nacional. Sobrava cem meticais, segundo a tabela.
Desde que tocaram na sineta, escorrem cinco longos minutos sem que ninguém apareça na recepção, mas ficam hipnotizados pelas cabriolices das duas catatuas que se encarniçam a bicar-se, num rodopio de sílabas, pios, guinchos e penas arrancadas que multiplicam os cantos a uma pequena gaiola de bambu que se pendura ao lado dos cacifos.
- …se continuam neste ritmo, ainda acordam os hóspedes… - Observa ele.
- Bom… - Ratifica ela, entusiasmada – este desatino … é uma maravilha… não há dúvida que esta é uma casa do amor… qual delas é o macho?
- Não sei…
Ele voltou a badalar a sineta, poisada atrás da tabela, no balcão.
- Será que está cheia? – Inquieta-se ela.
- Se estiver, estamos fritos… ou vamos para minha casa.
- Ai, isso é que não… - Objecta ela - a minha primeira noite com alguém tem de ser em território neutro… desculpa, amigo, mas é uma regra de que não abdico.
- Por princípio parece-me bem… mas são duas da manhã, e já não temos dinheiro para mais nenhum pardieiro…
- Quiseste-me impressionar com aquele vinho francês…
- E deu certo, não?
Um pigarro precede um homem de anoraque lilás sobre um pijama às riscas e enfiado num gorro vermelho, que empurra a porta de batentes, vindo supostamente do escritório. Embezerrado ainda, cumprimenta-os:
- Boa-noite. Os senhores, querem quarto? – Baixou a voz, como se a si mesmo perguntasse - Com banho ou sem banho?
- Com banho… - Atalhou ela.
- Têm sorte… que estamos no Ramadão. Às sextas costumamos ter a casa esgotada…- Esclareceu, enquanto abria um livro encardido de hóspedes e pedia a Alberto, apontando com a unha suja:
- Importa-se de assinar.
Pagaram o quarto, foi-lhes dada a chave do quarto 12.
Na travessia do corredor, Célia franziu a testa, sondando o rebordo de bolor nas rosáceas de estuque, o pó acumulado no lambril da parede, e as glicínias empoladas do papel de parede.
Alberto enfiava a chave na ranhura quando ela perguntou:
- Já aqui vieste?
- Não, espera… - A chave encontrava resistência. Houve que desenfiá-la, e torná-la a meter, devagar, tenteando à esquerda e à direita até a serrilha encontrar o encaixe que move a lingueta.
- Detesto fechaduras que só se abrem com jeito… - observou ele – é como se fossem fechaduras com cheiro…
- Com cheiro? - Redarguiu Célia – Tu falas umas coisas que me fazem cócegas no céu-da-boca… - exclamou, rindo alto.
- Shiu… - sussurrou ele, puxando-a para o quarto – não acordes os mortos vivos.
Atiraram-se para a cama, acolchoada a verde. Um verde berrante, de lagarto. As molas rangeram, desengonçadas. Que espelunca, comentou ele, e riram, desafogadamente, como aliás acontecera toda a noite, desde que se haviam encontrado no jantar de despedida de uma amiga comum, que regressava a Portugal.
Beijaram-se. Alberto sentia-se ligeiramente anestesiado pelo álcool mas a maior fogosidade dela compensava. Num ímpeto, sincronizadamente, como se tivesse sido combinado, levantaram-se e cada um do seu lado da cama pegou nas orelhas da colcha e lançaram-na para os pés da cama.
Despiram-se, entreolhando-se com lampejos malandros, piscadelas de olho. O sinal castanho dele, acima do umbigo, com a caprichosa forma de uma língua-de-gato retiniu nos olhos dela:
- Uau!
- Para o caso de depois nos dar a fomeca, temos biscoito… - Brincou ele, antes de, feito um relance pelo corpo dela, enxuto, perfeito, como se de bronze fosse, a gabar – És bonita.
- Negra bonita! – Graceja ela, pestanejando.
- Sabe-la toda, bandida…
Ela continua o jogo, imitando o sotaque brasileiro:
- Vamos, siô branco?
Levantaram o lençol e deitaram-se, enlaçando-se de imediato. Num primeiro abraço. Pelo canto do olho, ele viu os lençóis cheios de borboto, e atirou sarcástico:
- Vieram directamente de Pompeia, para aqui.
- O quê, indagou ele, intrigada.
- Os lençóis.
- Se queres que olhe muito, muito, para tudo, murcho… - Acentua, mudando de tom, antes de dar uma risada- …perco a vontade… 
- Tens razão… - Amenizou ele, beijando-lhe o ombro – Passemos à acção… O que me dá pica é a tua pele… quero lá saber da pele do mundo, merda para o mundo… - e deslizando-lhe a mão pelo dorso chegou ao sexo dela. Estava húmido.
Beijaram-se. Um beijo à francesa, diria um narrador vegetariano. Ela fechava os olhos, ele só a espaços – e de viés rememorava os borbotos de outros lençóis, noutro manhoso quarto de pensão, em outras eras da sua vida.
Estava apaixonado, então. Há quinze dias que batiam os hotéis de Lisboa. Na primeira noite calhou, por brincadeira, terem entrado no Hotel Londres, na Pedro V, a caminho do Príncipe Real. Ainda no elevador, a caminho do quarto, decidiram que doravante só dormiriam em hotéis com nomes de países ou cidades europeias. Pela sugestão da viagem. Passaram “a lua-de-mel” numa longa viagem pela Europa: na noite seguinte escolheram o Hotel Paris, seguiu-se o Hotel Roma, a residencial Madrid, a Rock House, etc. Todas as noites aterravam num país diferente, e entredevoravam-se nele. Ao cabo de 15 dias de turismo sexual estavam lisos, a rapar todas as moedas, e era a última noite de liberdade para ambos – a mulher dele regressava do Algarve, com a cria e uma gravidez de quatro meses, razão pelo qual ele adiava romper o casamento de imediato. Sentiam que precisavam de fechar em grande aquele primeiro ciclo de enamoramento. Mas estavam tesos e tristes.
Jantaram num restaurante barato e agora palmilhavam a cidade de pensão em pensão à procura de uma dormida que pudessem pagar. Perambularam durante horas a cidade em silêncio, de avenida em avenida, ruas, viela, becos, subindo e descendo colinas, travessas, escadarias, desenhando no corpo um labirinto de cansaço. Só na Praça da Alegria encontraram o sítio que lhes convinha. Num segundo andar, por cima dos bombeiros. Pagava-se à hora. Uma pensão de putas. Mas era tão barato que conseguiram negociar a noite, até às sete da manhã. A senhora, de óculos garrafais sobre um buço de galega, ficava a arder em duas horas, mas aquele intervalo entre as 5 e as 7 era quase sempre morto. Acedeu.
O quarto era chungoso, com uma asa de bolor que se infiltrava nas narinas. A luz glauca dos candeeiros não disfarçava os borbotos dos lençóis, a gordura colada ao esmalte cariado da bacia, a sordidez que os feria. Fizeram o que tinham a fazer, num soluço, transidos de nojo e desejo.
Dois dias depois, em casa, Alberto tomava duche e deu conta de que uns bichos se passeavam nos seus pêlos púbicos. Chatos. Pôs a água no limite do aquecimento que aguentava e dirigiu o jacto de água para a púbis. Mais de um minuto. Enxaguado o corpo, pesquisou. Não via nada.
Mas duas horas depois, ao vestir a filha, que tinha dois anos, deu conta de que num tufo de cabelos em pé da miúda se baloiçava um intruso. Catou-o e num sentimento de culpa fez estalar o bicho entre as unhas.
Três dias depois toda a gente em casa era obrigada a usar shampoo contra os parasitas capilares. E ficou sem reacção quando a mulher lhe perguntou, directa:
- Com quem apanhaste tu, os chatos?
Respondeu, sacana:
- Ah, então tu distingues entre chatos e piolhos, donde te vem tal saber enciclopédico? E como sabes que a miúda não os apanhou na escola?
Teve de engolir a resposta pronta:
- Andas tão distraído com mulheres vulgares que nem te ocorre que a tua filha está de férias da creche há um mês.
Foi nocaute puro. O primeiro num longo débito de mentiras que o levaram nos meses seguintes a perder a mulher e a amante, porque a perfídia, mesmo a que se infiltra em nome do amor, bicha todas as maçãs e abre os portões do jardim à desconfiança e ao tumulto.
Os chatos. Perscrutava agora os borbotos, desconfiado, vigilante, a mão inerte sobre o sexo de Célia. Há seis anos que não via as filhas. O que o magoava, muito. Ela nota o desconforto dele. Célia mudou de posição, desencaixando o corpo dela do dele:
- Se preferires dormir, estás à vontade...
Ele faz estalar os lábios. Ela reforça, ternurenta:
- Sério… acontece…
Alberto soergue-se, sentando-se contra o espaldar da cama. Não quer ser descortês, mas remói a pergunta dela, antes de admitir:
- Não sei o que me deu… Importas-te? Ainda lambo os selos de algumas feridas.
- Os selos de algumas feridas? Tu não falas como as pessoas normais. És muito doido, engenheiro.
- Não é nada contigo. Estou estoirado.
- Ya, sempre me disseram que homens de 50 anos davam negas… Mas como estavas cheio de humor…
- Desculpa. Um dia destes convido-te para jantar e havemos de ir para um quarto que te mereça. Juro.
- Ok, ficas a dever-me uma noite de arromba.
Alberto deu-lhe um beijo na testa, e ela vira-lhe as costas. Disposta a dormir. Alberto, afunda a sua mão na omoplata dela, a sua pele é extraordinariamente macia, depois apalpa-lhe o ombro e, suavemente, segue com o indicador a linha direita das clavículas, recortadas, perfeitas; Célia encolhe o ombro, coloca a sua mão sobre a dele, roga:
- Estás-me a fazer cócegas...
- Desculpa…
Retira a mão. Ela ameniza:
- Não te esqueças… uma noite de arromba.
- Está prometido.

Passados quinze minutos de uma incomodidade fúngica (donde lhe vinham tantas cócegas sob a barba grisalha, no peito, nos cotovelos?), ele resolve acender a luz do candeeiro de mesa e espiolhar a revista que adorna a mesa-de-cabeceira. Um número velho da Super Interessante.
- Importas-te? – Desculpa-se – Tem aqui uma revista.
- Está à vontade, não me incomoda a luz… - Murmura ela.
Folheia-a distraidamente, na obliquidade. Na página 28, uma notícia prende-lhe a atenção, lê-a e desmancha-se às gargalhadas… Ri tão a gosto que ela se vira curiosa:
- Que foi… que há aí de tão engraçado.
Ele não responde logo, enreda-se num rodeio:
- Sabes, fui sempre um ingénuo. Era tão atado que nunca me confessei...
- Confessar, como? Na igreja?
- Sim… Hoje sei que fiz bem, que à mínima menção dos meus pecadilhos (eu tinha uma imaginação prodigiosa para a mentira) uma mão esguia me procuraria o reduto, o zip, e me descascaria o pepino.
- Falas de quê?
- Do padre, na igreja. Sabes que eles abrem os zipes dos miúdos, e zás….
- Brincas…
- O pior é que eu ia gostar…
Ela arregala os olhos:
- Tu? Ias gostar?
- Os miúdos, numa determinada fase, não distinguem uma mão de outra, isso só lhes vem mais tarde, com a educação, por isso nunca me confessei, aterrado pela ideia de gostar tanto de ser punheteado como de mentir. Mas sabes, fui sempre assim com tudo, à mínima suspeita que ia gostar de alguma coisa, renunciava... Foi igual para a tropa. Via farda e salivava. Farda de bombeiro, de polícia, de soldado, pelava-me por uma farda…
- Juras?! – Sublinha ela, divertida.
- Juro… Por um triz não sou brigadeiro. O triz que me fez objector de consciência. Ainda que hoje esteja arrependido. Até na sexualidade me esquivei. Sabes que na Grécia houve um mago chamado Tirésias que foi homem e mulher. E os deuses chamaram-no lá em cima para arbitrar uma discussão sobre quem tinha mais prazer na cama, se o homem ou a mulher e ele foi peremptório: a mulher tem nove vezes mais prazer que o homem na cama… e por isso, desde as minhas vidas pretéritas, fiz sempre o possível para reencarnar em homem, só para não sucumbir a uma voluptuosidade impossível de rejeitar…
- Olha… - Atira ela, divertida - desconfio que isso não seja verdade, e não sei se percebo o que estás a tentar dizer-me. Tu abres a boca e fazes assim umas cabriolas… - sorri - como as catatuas… mas, sabes, és um barra nos preliminares, estou a adorar…
Ele abre o jogo:
- Trata-se de que agora posso finalmente confessar-me sem receio. Finalmente. Andava tão precisado. Está aqui… - lê - é um aplicativo para iPhone chama-se "Confession: A Roman Catholic App" e, diz aqui, foi desenvolvido com a colaboração de representantes da Igreja dos Estados Unidos. Custa 1,59 euros e pretende ajudar o utilizador a fazer um exame de consciência. Inclui os mandamentos, uma lista de pecados, a data da última confissão e sete preces diferentes. Amén! É fabuloso…
- Gosto de te ver animado de novo… - Encosta-se a ele, dengosa - isso dá-me esperanças…
- Façamos uma coisa… vamos os dois fazer uma grande confissão, e depois desse repasto espiritual atiramo-nos à febra, que tal?
- Hum, tudo bem… começa tu, conta-me a verdade sobre o que te deixou murchinho, à bocado…
- Vamos a confidências? – Hesita ele.
- Tu é que propuseste.
- Deixa-me fumar… - Puxa de um cigarro, senta-se na cama e acende-o. Ela senta-se também. Ele expele uma baforada e começa a contar – A minha mulher estava grávida da nossa segunda filha há quatro meses quando eu me apaixonei por uma colega do serviço… Perdidamente… Eu não fui capaz de romper com a minha mulher de imediato porque ela estava grávida, nem de me privar de estar com a outra porque estava embeiçado… Foram meses de mentiras em que frequentei todas as pensões de Lisboa… e algumas bem rascas, era o que podia ser, consoante se avançava no mês… e acabei por destruir nos seis meses em que durou a coisa as relações com toda a gente, com ela, necessariamente, com a minha amante… e com as minhas filhas… e nenhuma delas merecia tantas mentiras à esquerda e à direita…
- Com as tuas filhas, como, se eram tão pequenas? Uma delas estava para nascer…
- Essa, descobri depois que se julgava culpada da separação entre o pai e a mãe e isso foi pesando no modo como ela se relacionava comigo… O facto é que as minhas filhas nunca tiveram muita confiança em mim, chegaram até a viver comigo, um períodomas… ao mínimo pretexto vinha um capital de queixas inigualável… E a mãe escarafunchava nos pormenores mais sórdidos, o facto é que nos fomos perdendo… a pouco e pouco tudo não passava de comércio, de obrigações… e tudo começou nestas pensões com borbotos…
Ela desvaloriza:
- Não sei se entendes que o teu problema, para aqui… nesta terra… não existe…
- Tens razão, os homens daqui têm duas mulheres, às vezes três… filhos à esquerda e à direita…
- Vocês complicam muito a vida… os teus pecados são menores…
- Espera lá, eu não disse que se voltasse atrás eu não repetiria tudo aquilo que vivi sem um desvio… eu estava apaixonado e a nossa história foi uma coisa bonita que mereceu todos os passos indignos que foram dados… chato foi ter perdido os filhos, a seguir… isso é que às vezes me chega como um fantasma e… me faz perder a tusa. Mas diz lá porque é que achas que é um pecado menor, se é um caso de confiança perdida…
- Menoríssimo…
- Tens mais grave?
- Hum, hum…
- É o que vais contar?
- Se me deixares…
Olham-se. Ele oferece-lhe um cigarro, ela aceita-o e acende-o. Dá uma passa, olha para ele, indecisa, prolonga o impasse com uma segunda passa, enquanto o examina de soslaio, de alto a baixo, avaliando a matéria do silêncio dele, e desfere:
- Estava com uma prima na praia da Macaneta, a apanhar ameijoas. Tínhamos lá ido ver um terreno que ela queria comprar… aproveitámos e fomos à água… a maré estava baixa, ela tinha fato de banho, eu não, estava com uns calções de ganga, e ela apanhou uma ameixa, outra, e entusiasmou-se…- Ameixas?
- Ameijoas, que disparate…é da hora… - tem um momento de vacilação – não sei se quero falar isto…
- Então?    
- Combinámos, não é?
- Hum, hum…
- Bom, que seja o que deus quiser… Eu achei graça à facilidade com que ela apanhava as ameijoas e pus-me a imitá-la, de costas para o mar… e de telemóvel na outra mão. Veio uma onda mais brava e rebentou nas minhas costas… com força no meu rabo… e na surpresa deixei cair o telemóvel à água… Estás a ver a cena…
- Isto até agora parece-me: “Como eu converti a minha primeira alforreca ao islamismo”…
- Espera para veres… Estou uma barata tonta, a tentar salvar um cell submarino e deixo de o ver na espuma… Estive para ali mais de um minuto a amaldiçoar-me e à pesca do telemóvel, que desapareceu e nem reparo que vindo do mar se aproxima alguém num fato de mergulhador e que numa das mãos tem um peixe-serra que se contorce no arpão… e, na outra, o meu telemóvel… e pergunta-me num inglês arrevesado, minina o cell é seu? Era o Lambert, um holandês. Um mês depois estávamos enrolados. Nunca soube bem o que ele fazia, mas o dinheiro caía-lhe do céu escorria, ele falava que tinha sido uma herança… e vai pede-me para ir por ele ao Suriname levar uns papéis para serem assinados… que confiava muito em mim, tra lá lá, eu fico baralhada, mas acredito nele, e o que há a fazer parece-me simples. E ele fala que, na mesma data ele tem de ir ao Cabo assegurar outro contracto, etc. Bom, na véspera de eu ir morre o meu pai… e fico sem condições de viajar. Ele dá-lhe uma coisa, mas que fazer, e contrariado, vai. E assim que chega ao Suriname e é preso… o forro da mala estava cheio de droga. Eu estive prestes a ser um correio da droga, percebes? Foi uma sorte dar um treco ao meu pai, e tudo se alterar à última hora. Podia ser eu a estar presa. Ele apanhou dez anos. E fica baratinado de todo, ainda passei lá seis meses, até à confirmação da pena, eu estava furiosa com ele, mas ao mesmo tempo gostava dele, e ele não estava preparado para aquilo, para ele era uma aventura, e não estava preparado para a dureza da prisão e ficou muito mal… E quando estou para me vir embora, fui visitá-lo à prisão, e ele está desesperado e fala-me em suicídio… e eu, sem saber como acudir-lhe, digo-lhe que estou grávida… Menti-lhe. Ele ficou felicíssimo. A partir daí, agarrou-se a isso como uma jangada para a vida, e está convencido de que ao fim de cinco anos sai e as coisas se recompõem e envia-me duas cartas por semana falando dos planos para o nosso filho…
- Mas ele continuou convencido que ele existe?
- Eu cheguei a Moçambique e a minha melhor amiga estava de barriga, de um filho com um italiano. E sem saber muito bem o que estava a fazer, porque o Lambert me sufocava com as suas cartas a falar de um filho que não existia, depois de o ter visto na merda, tirei fotografias à barriga dela e enviei-lhe, fui-lhe enviando e quando nasceu o filho da minha amiga mandei mais fotografias do miúdo… não foi premeditado, queria apenas ajudá-lo, tirar-lhe o peso do que estava a viver… era ele que falava que aquilo o ajudava, para mim era um jogo… mas de repente, há três anos para cá, decide mandar-me uma pensão mensal para um Filipe que não existe, e eu retribuo com fotos do filho da minha amiga e algumas cartas em que conto como vai a criança, as primeiras palavras que disse, como caiu contra o bico da mesinha da sala e fez um golpe fundo na sobrancelha que teve de levar dois pontos, o sarilho que foi com a varicela, sei lá… Eu não queria, não calculei a coisa como um esquema, mas fui-lhe ajudando e fui-me acomodando, e ele manda-me o dobro do dinheiro que eu ganho como secretária de administração no banco, é difícil ter a honestidade que ele, afinal, não teve comigo… É isto…
Alberto acendeu um cigarro e ofereceu-lhe outro:
- Bom… - Procurava suavizar o juízo que ele próprio se sentia inseguro de ter – tu não quebraste a confiança de ninguém, só lhe deste mais confiança e manténs a ilusão de que ele necessita para sobreviver. 
- Sim, enquanto ele estiver preso é uma ilusão, depois passa a ser uma burla… - E remata lacónica - E eu não consigo evitar gastar o dinheiro…
- Há atenuantes… fizeste-o de boa fé… Podias tu estar presa… porque ele sabia, tu não…E para te ser franco… - acaricia-a, sente o sexo entumecido - essa pequena safadeza dá-te um certo encanto…
Tenta beijá-lo, ela não reage.
- Que é?
- Desculpa… não sei se fiz bem falar-te… sinto até um certo alívio, mas agora não me sinto à vontade, percebes?
Ele sustém o olhar dela e esmaga o cigarro no cinzeiro que tem poisado nas pernas. Pisca-lhe o olho:
- Compreendo, ficas a dever-me uma noite de arromba…   
Beija-a no ombro e deita-se.
Pelos cortinados translúcidos lucilam as luzes do bar que, clandestinamente, se mantém aberto nas traseiras da pensão. Ele comenta:
- Este foi o meu último cigarro... Devo-me uma dívida maior que a morte.
Ao fundo, o alarido das catatuas cabriola no ar.


domingo, 28 de setembro de 2014

DUAS NOTAS DE DOMINGO PARA A AMNÉSIA GLOBAL TRANSITÓRIA

                                                                     inge morath



 Com insistência se propõe – Holderlin, Baudelaire, Eluard, Gonzalo Rojas, Adonis ou Bachelard, por exemplo – que a pátria do poeta é a sua infância. E que os nossos devaneios infantis se reactualizam na poesia. No meu caso, tenho as maiores dúvidas, da infância só aproveitei o mecanismo, o devaneio de criança isolada, ao ponto de se ter tornado quase um tique com contornos patológicos, mas sou pouco saudoso da infância.
Esse meu estádio de vida foi completamente saturado de burburinhos e acontecimentos, no seio de uma família intranquila, eivada de desequilíbrios relacionais e de muitas instabilidades na pauta emotiva, e isso, que me deu um volume de “informações” a granel que levei décadas a processar e converter em algo potável, arrastava-me num estado de estupor prolongado que não me foi nada favorável. 
Descobri a literatura como um instrumento para a resiliência, como o outro lado do espelho. Por isso dediquei cinco anos da minha vida e dois livros a reinventar a infância, mas senti-la como a minha pátria é uma descarga que não me cabe.
O comum das infâncias é carenciado, falho disto ou daquilo, sacudido por medos, espectativas e traumas, e lança a criança num sentimento de incompletude inevitável, mas ver na arte ou na poesia uma sua projecção simétrica implica esquecer que, no trajecto, essa “vivência de mutilações” conheceu conversões e transformações, e que o adulto é já uma liga onde as reversões da memória geraram um novo impulso que nem sempre coincide com uma re-actualização do vivido.  
Há, contudo, uma tese de Bachelard que me agrada, quando ele escreve, “A solidão do menino é mais secreta que a solidão do homem… e o menino sonhador conhece o devaneio cósmico, o que nos une ao mundo…”. Gosto muito desta ideia do devaneio cósmico, que eu leio como uma transpessoalidade, embora seja redutor assumi-la como uma reminiscência da infância… Se o primeiro contacto com tal “estado de abertura” da percepção pode, de facto, suceder-se na infância, porém, quando ela se repete no homem, e este tem a felicidade, rara, de viver um igual sentimento de indivisibilidade, vê convergirem na sua consciência um feixe de unidades de muito maior amplitude - na mesma proporção com que uma asfixia momentânea se separa do primeiro golfo de ar.
Ou seja, não localizo na infância, nem qualquer pátria, nem qualquer paraíso perdido. 


Para o chileno Gonzalo Rojas o exercício poético não se funda tanto num projecto de invenção como num mecanismo de resgate, ideia estimável mas a verdade está no meio, como o sabia Baudelaire, para quem uma obra devia ser feita de metade de novidade e de metade de eternidade (isto é, de tradição – um coisa no oposto de ser “tradicional”), radicando então a originalidade na morfologia da sua capacidade combinatória.

domingo, 21 de setembro de 2014

DOZE NOTAS SOBRE A DIGNIDADE / 3



Se nós, como acredito, somos a cada nova ocasião o sulco do que diferimos de ontem, imagine-se os equívocos a que pode levar a menor pegada que deixámos.
Suspeito que a forma como acabei o segundo texto desta série pode desencadear leituras erróneas.
Devolver a morte à morte não significa “dessimbolizá-la”, mas antes desobstrui-la, aliviá-la do espesso manto de imagens que a soterram num ritmo que não é o seu, duma “evidência” que não lhe pertence.
Devolver a opacidade à morte, repõe uma experiência única e singular que só cada um, a conta-gotas, confirma.
Séneca relata, em A Brevidade da Vida, o estado de exaltação daquele condenado à morte que espera na fila a sua vez de ser decapitado e que em vez de estar, como os outros, tolhido por antecipação, se adianta sempre à frente para ver melhor o que se passa com os seus companheiros de infortúnio, mostrando uma curiosidade tão doentia como inapropriada. E um deles interpela-o, a quem ele responde, “Não sei o que temem. Eu estou curiosíssimo em saber o que há para além da morte e se esforçar suficientemente a atenção estou certo de que surpreenderei o fluido da alma a sair do pescoço cortado”.
Eis um modo grotesco de transformar uma suposta serenidade pessoal numa incapacidade de empatia, sinónima de uma auto-ilusão que merece o gume do machado.
Também Robespierre mereceu o gume da lâmina (depois de ter inventado a guilhotina Robespierre assistiu, fascinado, a acima de trinta mil execuções, antes de ser testemunha da sua), neste caso por corresponder a sua à obsessão do encenador que deseja substituir-se ao actor, após milhentas actuações sempre imperfeitas - o que finalmente lhe calhou.
O terror que imprimiu foi o da serialização da morte (compreendida a guilhotina como o primeiro fotograma duma reprodução industrial), num ritmo que impôs por decreto.
Himmler, por seu turno, assistiu a uma execução maciça de camponeses e judeus russos em Smolensky e sentiu náuseas desde a primeira salva de disparos, a ponto de se ter de retirar. Foi já à distância necessária, no quartel, que escreveu cartas de agradecimentos aos seus homens pelo seu abnegado sentido do dever.  A “inecessidade” das cartas revela o vómito que sentiu face à esquizofrenia do comportamento próprio à guerra, numa espécie de arrependimento mitigado carta a carta, pois apesar de ser um guerreiro, sentiu a execução como um esforço de letalidade não natural. Himmler acusou, psicologicamente, o peso do irracionalismo que perpetrava. Embora possamos dizer: merda para as dores psicológicas de Himmler… o mal ainda tinha um nome, um rosto.
Agora com esta nova investida do Estado Islâmico, que provoca em dois dias mais um êxodo de cem mil pessoas, o horror faz-se em nome de uma abstracção, sendo Alá assumido como essa máscara irracional que dá álibi à cobardia. Pois se, como sustentava Tucídedes, todos os dia somos confrontados com o dilema de escolher entre a vontade de descansar e os trabalhos que dá a liberdade, estes jovens “islâmicos” encaram Alá e a violência como luxuosas almofadadas.
O que importa é que esta nova investida do horror coloca as suas vítimas diante de um dos mais poderosos marcadores do tempo, o medo. O medo encharca o horizonte de “stress”, e onde este se instala desencadeia-se uma dupla morte: a física e a que potencia o domínio dos marcadores do tempo, ao constranger o refém a um único campo de visão.
No oposto, lemos em Wittgenstein um parágrafo inesquecível. No Tratactus, diz-se assim: “A morte não é um evento da vida. Não se vive a morte. Se se entende por eternidade não a duração interminável do tempo, mas sim a atemporalidade, então vive eternamente aquele que vive o presente. A nossa vida é tão sem fim como ilimitado é o nosso campo de visão.
A morte só é aceitável se for antecipada por uma realidade atemporal mediata. Esse experimentado abandono do tempo é, com certeza, uma das últimas tangibilidades exaltantes que nos “consolam” da morte.
De modo contrário, a morte não passa de um “mal-estar” que se inocula e apodera, martelando-nos como um dor irredimível.
Faz parte da dignidade da nossa morte aceder ao expandido campo de possibilidade a que Wittgenstein alude: uma espécie de ociosidade do tempo que sai voluntariamente dos seus eixos.
Eis então a morte e a vida concebidas como dois irmãos gémeos que se desconhecem, duas faces de uma mesma moeda cega à sua sombra. O que pressupõe que o mundo “real” só ali se manifesta onde as nossas construções fracassam, reduzindo o campo de visão.
Daí que me agrade muito uma ideia de Einstein que ainda hoje poderemos considerar revolucionária: para Einstein, no mundo físico, não existe simultaneidade alguma sem um observador que a crie.
Essa simultaneidade é a que nós podemos criar numa dimensão trágica em que a vida e a morte coabitam num palco onde se confirmam mutuamente, com o decoro e o respeito que gera o reconhecimento do outro - havendo embora um momento em que nos devemos retirar nos bastidores para morrer, navegando brevemente noutro (expandido) leito do tempo.
O terror acontece não só quando arbitrariamente alastra a violência no reduto da infância como quando o domínio desta violência cega se impõe como exclusivo marcador do tempo.
Eu quero viver a minha “pequena eternidade”, não consinto que ma roubam, e creio que a própria morte, sem este paliativo, se sentirá ultrajada.
Suponho que a minha ideia de deserto é muito distinta da dos lacraus que por lá se movimentam.